Noticiada à exaustão e festejada com toda a pompa nos dois lados do Atlântico, a chegada do coração de Dom Pedro 1º a terras tupiniquins em comemoração aos 200 anos da Independência reacende o interesse por como Portugal lida com o passado de uma nação que, um dia, foi a sua maior colônia.
O traslado da relíquia é controverso, e o governo do presidente Jair Bolsonaro é acusado de instrumentalizar a ação com fins políticos a poucos dias do 7 de Setembro. Representantes da cidade do Porto, guardiã do coração de D. Pedro 1º, porém, negam qualquer conotação política no empréstimo do órgão.
Historiadora e colunista da DW Brasil, Ynaê Lopes Santos diz não se surpreender com o entusiasmo português com o envio da relíquia ao Brasil. “Eu acho que eles [autoridades portuguesas] sabem exatamente o que estão fazendo — estão reafirmando a perspectiva de que a Independência brasileira é devedora de português”, analisa.
Para o pesquisador português Vítor Manuel Fernandes Oliveira de Sousa, mais sensato do que ações como o traslado do coração do monarca é devolver artefatos em museus, “peças pilhadas de territórios longínquos”, aos seus locais de origem.
“Isso tem a ver com a própria identidade dos países de onde foram roubados e saqueados e que ficaram sem esse espólio, que poderá ser importante para mostrar às várias gerações como é que foi constituído o próprio país”, afirma Sousa, pesquisador de estudos pós-coloniais no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho.
Ele pondera que isso deve ser feito contextualizando a violência subjacente a essas peças e a história delas. Tentativas simplistas podem acabar como o criticado envio do coração de D. Pedro 1º ao Brasil, algo que Sousa considera “arcaico e de mau gosto”.
Visão ilusória sobre o passado colonizador
Para Sousa, a ação é ufanista e usar o coração como “objeto-fetiche” não contribui para as relações entre Brasil e Portugal. “Afinal de contas, existe um passado comum, que foi violento por parte de Portugal e tem de ser assumido enquanto tal”, explica.
Numa perspectiva que ainda precisa ser desconstruída e muitas vezes é ensinada em sala de aula, a colonização portuguesa seria distinta da de outros impérios europeus, aponta Sousa. “Como se fosse uma colonização fofinha, doce e, portanto, menos violenta, o que não corresponde à verdade.”
A jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques afirma que esse olhar açucarado sobre o passado é parte da identidade nacional portuguesa. “É muito antiga e aceita na cultura portuguesa a ideia ilusória de que Portugal foi um país que colonizou de maneira mais branda”, pontua.
Doutoranda do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, onde pesquisa a memória do colonialismo português, a brasileira Luciana Martinez faz coro com Sousa e Henriques e diz que ainda impera em Portugal a ideia de “um país que desbravou o mundo e que foi colonizador, mas não colonialista, que é benevolente”.
Martinez diz ver nos últimos anos um esforço maior por parte da nação europeia em repensar seu passado colonial, mas assinala que as reflexões ainda ficam, em sua maioria, restritas às ex-colônias africanas.
“O que a gente tem ainda muito forte é esse imaginário de nação portuguesa calcado na ideia do que eles chamam de descobrimento, que é a expansão colonial na América”, afirma.
Narrativas de heroísmo e grandeza
De acordo com a pesquisadora brasileira, referências fortes ao imaginário popular lusitano — às grandes navegações, às viagens, ao mar — estariam presentes no discurso público ainda hoje. “Tem um outro nome, mas é a mesma coisa que eles estão dizendo, é sobre esse ser português que desbravou o mundo.”
Essa visão de colonizador bonzinho, somada aos desbravamentos navais, contribui, segundo Sousa, para que os portugueses enxerguem o próprio país como “heroico” e “mais extenso que sua dimensão geográfica”. São perspectivas que se fortaleceram durante a ditadura portuguesa (1933-74) e permaneceriam firmes até hoje no que é lecionado em sala de aula.
“O ensino da história em Portugal ainda reflete uma visão do luso-tropicalismo, uma quase teoria do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre adotada pela ditadura portuguesa”, comenta. Por essa lógica, a colonização portuguesa seria diferente da de outros impérios europeus, sendo marcada por empatia e até afeição por parte dos colonizadores para com os povos subjugados.
Para o pesquisador, é necessário discutir a história não só dos descobrimentos, mas também do que ele chama de “encobrimentos” — por exemplo, pretextos usados por Portugal para justificar o extermínio de povos originários nas antigas colônias.
Sousa concorda que “a ideia de que Portugal teve uma importância imensa no mundo” é comum e bastante evocada em momentos solenes, quando se fazem referências aos descobrimentos e aos poetas Luís de Camões e Fernando Pessoa.
Ele diz ver características luso-tropicalistas em diversos pronunciamentos do atual presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa; por exemplo, quando ele usa palavras como “portugalidade” ao falar à pátria. O termo foi adotado em meio à tentativa de barrar processos de independência das antigas colônias na década de 1950, quando Portugal argumentou, perante a Organização das Nações Unidas (ONU), que elas eram parte integrante do território português em vez de territórios autônomos.