Uma universidade no campo voltada para os camponeses. É assim que o Instituto Agroecológico Latino-americano (Iala) Maria Cano define seu propósito como centro de formação e capacitação para trabalhadores rurais na Colômbia.
Localizada no município de Viotá, interior da região central do país, a iniciativa, que leva o nome de uma histórica militante comunista colombiana, foi inaugurada em 2016 pela Federação Nacional Sindical Unitária Agropecuária da Colômbia (Fensuagro). Em parceria com a Via Campesina, a organização quer transmitir aos camponeses técnicas agroecológicas na produção de alimentos.
O Iala Maria Cano não é uma iniciativa isolada. Ele é um dos nove projetos apoiados pela Via Campesina ao redor do mundo de centros de formação de sobre agroecologia. A plataforma, que reúne os principais movimentos de luta no campo de todos os continentes, busca fortalecer os movimentos locais para promover a produção de alimentos de maneira saudável e autônoma.
No caso colombiano a ideia é capacitar trabalhadores de distintas regiões do país para conter o avanço do agronegócio, gerar renda para as famílias e seguir produzindo alimentos saudáveis para o consumo da população.
“O agronegócio, os métodos vendidos por pacotes tecnológicos e o expansionismo rural que é ensinado nas universidades não apresentam saídas aos problemas que temos enquanto humanidade”, alega Fabián Pachón, uma das lideranças do Iala Maria Cano. “Quem está apresentando saídas são os camponeses quando demonstramos que somos nós, com nossa sabedoria dos territórios, que produzimos os alimentos. Então quem é que deve ensinar quem?”, questiona.
O espaço com mais de 16 hectares (160 mil m²) conta com diversas salas de aula para receber turmas regulares compostas por camponeses de vários departamentos colombianos, mas é nas chamadas “plantas produtivas” que o trabalho e o aprendizado acontecem na prática. Elas servem para produzir diversos tipos de alimentos, como legumes e verduras, que são destinados para a alimentação dos alunos e trabalhadores, e conta até mesmo um pasto para a criação agroecológica de gado.
O leite produzido é processado pelos próprios alunos e, graças a equipamentos conquistados pela Fensuagro, hoje o instituto consegue ensinar seus alunos a produzir diversos derivados, como queijo e iogurtes.
“Foi por isso que decidimos que os nossos espaços formativos não podem ser apenas salas de aula com um professor querendo impor conhecimentos isolados da realidade dos territórios. Isso partiu de uma análise lógica, assumindo que na Colômbia produzimos mais de 80% do que os colombianos consomem. Então quem tem a capacidade de solucionar o problema da fome? Não é o agronegócio, que só aquece o planeta e destrói os camponeses”, diz Pachón.
O dirigente ainda explica que o Iala Maria Cano quer fortalecer os camponeses locais promovendo espaços para trocas comerciais, os chamados “mercados campesinos”, que consistem em eventos regulares em distintas localidades para que outros trabalhadores rurais e potenciais consumidores possam ter acesso ao que os alunos e os moradores da região de Viotá estão produzindo.
“Isso tudo serve para construirmos a soberania alimentar e a reforma agrária nos territórios. No começo, pensamos em um centro de formação, mas não queríamos que o conhecimento saísse totalmente daqui. Estamos em uma área de pequenos agricultores e há uma infinidade de conhecimento de práticas agroecológicas que podem ser transmitidas de camponês para camponês”, afirma.
Conflito, terra e a chegada da paz
O surgimento do Iala Maria Cano está diretamente ligado ao conflito armado na Colômbia que envolve diversos grupos guerrilheiros, paramilitares e Exército. “Essa zona foi completamente esquecida pelo Estado porque eles sabiam que era uma zona guerrilheira”, afirma Idali Vanegas. Uma das coordenadoras do Iala Maria Cano, ela explica que a região de Viotá foi muito impactada pelos enfrentamentos entre grupos armados não apenas pelo risco de violência iminente que os camponeses corriam, mas pela negligência das autoridades.
Lucas Estanislau
Iala Maria Cano quer capacitar camponeses para produção saudável e ecológica de alimentos
“Todos os camponeses e camponesas que moravam nesse espaço foram catalogados como guerrilheiros e guerrilheiras e isso fez com que os camponeses fossem esquecidos e excluídos de uma série de iniciativas que aconteciam ao redor da região. O que eles fizeram diante disso? Assumiram essa realidade e se organizaram”, diz.
Com um histórico particular de movimentos guerrilheiros, a Colômbia vive um conflito armado que se arrasta desde o início da segunda metade do século 20. O surgimento de grupos paramilitares durante os anos 1970 e 1980 só aumentaram o grau de violência das confrontações e o campo se tornou a região mais afetada do país.
Segundo a Comissão da Verdade colombiana, ao menos 45,5% das violações de direitos humanos cometidas em decorrência do conflito armado ocorreram em áreas rurais. São mais de 4,8 milhões de vítimas camponesas e mais de 50% dos casos de violências registrados contra esses trabalhadores estão relacionados ao abandono ou à tomada forçada de suas terras.
Maria Isabel Caicedo é trabalhadora rural e vive há mais de 20 anos no município de Viotá. Ao Brasil de Fato, ela contou que, atualmente, consegue sustentar a família com a produção e comercialização do próprio café e dos artesanatos de sua própria marca, a “Chavitas”. Mas os tempos nem sempre foram de paz, principalmente durante a fase mais violenta do conflito armado.
“Era muito difícil, as pessoas viviam com medo. Eu ficava meses sem ir à cidade porque tinha medo, pensava que poderia morrer em um tiroteio. Sempre gostei muito dos estudos, mas preferi não estudar por conta disso”, explica.
Em 2016, o Estado colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), então a maior guerrilha do país, assinaram um acordo de paz que colocou fim à confrontação entre as partes. Junto do acordo, autoridades e desarmados se comprometeram a realizar uma série de atividades para promover o trabalho no campo e devolver a segurança necessária para que os trabalhadores pudessem produzir.
“Quase toda a nossa produção se perdia, não tínhamos a oportunidade que hoje nos dá o ‘mercado campesino’”, diz Maria Isabel. “A maioria da produção aqui era café, e vendíamos muito pouco, apenas o grão cru, sem nenhum valor agregado. Nunca imaginei que poderíamos fazer coisas tão grandes como as que estamos fazendo agora, apoiando nossos lares, ensinando e aprendendo a nos alimentar melhor”, afirma.
Um dos coordenadores do Iala Maria Cano, Fabián Pachón explica que, com a assinatura dos acordos de paz, os trabalhadores puderam permanecer nos territórios “para construir iniciativas como a Universidade Camponesa e evitar que a juventude do campo tenha que migrar para as principais cidades em busca de estudo ou de emprego”. “Nós acreditamos que, no momento em que a nossa educação é direcionada ao trabalho, ela também é uma proposta de paz”, diz.
Maria Isabel garante que o arrefecimento do conflito e a existência de projetos como o Iala Maria Cano foram essenciais para que ela pudesse produzir e gerar renda para a família. “Depois do processo de paz, que foi um processo muito bonito, começamos a tomar iniciativas todos juntos porque foi possível perdoar e trabalhar em união”, afirma.