O presidente argentino, Alberto Fernández, visitou a primeira planta piloto de baterias de lítio do país, em La Plata, nesta terça-feira (16/08). O projeto faz parte de uma aposta no desenvolvimento científico e tecnológico para a diversificação da matriz energética, por um lado, e da exportação, por outro.
“O valor do lítio é muito diferente se exportado apenas como mineral do que como bateria”, afirmou Fernández durante a visita à nova fábrica, ressaltando que a Argentina possui a segunda maior reserva de lítio do mundo. “Isso supõe a criação de fábricas, de trabalho, mas também a multiplicação do preço do lítio.”
O projeto entra em uma série de investimentos que o país vem fazendo em energias renováveis e maior aproveitamento de seus recursos, em um contexto de forte crise econômica. Julho registrou a variação mensal de inflação mais alta do ano, com um aumento de 7,4% dos preços.
Neste sentido, a Argentina busca diversificar sua matriz exportadora e geração de divisas, hoje concentrada na agroexportação. Esse objetivo é buscado com a ampliação da capacidade produtiva e tecnológica para explorar fontes de energia poluentes como petróleo, gás e minérios e, também, de projetos mais alinhados com a transição energética. Nesse cenário também entra o o trigo transgênico desenvolvido no país, aprovado em sete países para comercialização mundial.
É o caso da extração e produção de lítio e de hidrogênio verde, cuja regulamentação está em curso para dar início às atividades.
“Já há bastante tempo, mas principalmente após o endividamento com o Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2018, a Argentina busca produzir divisas e, nesse sentido, os projetos extrativistas entram com toda a força”, aponta Jonatan Nuñez, historiador e integrante do Grupo de Estudos em Geopolítica e Bens Comuns da Universidade de Buenos Aires (UBA).
Ambientalistas e setores da sociedade que se opõem a tais projetos alertam para os impactos imediatos nos locais onde as atividades extrativistas se desenvolvem. É o caso da exploração de Vaca Muerta, na Patagônia, quarta maior reserva de petróleo não convencional e a segunda em gás não convencional do mundo.
“As necessidades energéticas internas da Argentina estão atendidas pelo gás extraído de Vaca Muerta através do fracking, ou fratura hidráulica”, aponta Nuñez. “O preços dos hidrocarbonetos aumentou com a guerra na Ucrânia e, segundo especialistas na geopolítica do gás e do petróleo, não vão se estabilizar nos próximos três anos. Isso pauta um aumento de oportunidades de exploração de Vaca Muerta; e as populações que vivem na zona já começaram a experimentar consequências cotidianas. Próximo à capital de Neuquén, foram registrados terremotos que não ocorriam previamente ao início da atividade do fracking na região”, afirma.
Ainda que o ativismo ambientalista e das próprias comunidades locais seja persistente e, inclusive, consiga barrar alguns desses projetos, eles avançam sob a perspectiva nacionalista e desenvolvimentista, enquanto as portas são abertas para multinacionais e para o capital estrangeiro.
“Há firmas alemãs, estadunidenses, francesas, cujos países de origem possuem legislações avançadas em termos de proteção ambiental, e onde não aplicam determinadas técnicas, mas aplicam na América do Sul e na África, diz Nuñez. “São países que fornecem as etapas com menor valor agregado e, por isso, utilizam o discurso desenvolvimentista, como o que foi implementado na Argentina.”
Investimento em lítio
Como um minério essencial para a produção de baterias de artefatos elétricos, o lítio se situa no centro da transição energética em termos de mobilidade e meios de transportes elétricos. Portanto, o investimento no lítio aumentou notavelmente na Argentina nos últimos anos.
A construção da planta em La Plata contou com um investimento de 770 milhões de pesos (cerca de R$ 29 milhões) do Ministério da Ciência e Tecnologia, da universidade pública nacional de La Plata e da Y-Tec, empresa de tecnologia da YPF, petrolífera majoritamente estatal argentina.
Também foram crescentes os anúncios de investimento estrangeiro para a construção de fábricas e aumento de produção de lítio, com capital francês, chinês e estadunidense. É o caso da francesa Eramet e a siderúrgica chinesa Tsingshan, que anunciaram o investimento de US$ 400 milhões para uma planta de lítio na província de Salta. Já a mineradora chinesa Zijin Mining Group destinará US$ 380 milhões para uma planta de carbonato de lítio em Catamarca.
Twitter/Alberto Fernández
Argentina busca diversificar sua matriz exportadora e geração de divisas, hoje concentrada na agroexportação
Argentina, Bolívia e Chile possuem cerca de 60% das reservas de lítio do mundo, conformando o chamado Triângulo do Lítio. Os três países inauguraram as discussões para decisões horizontais em relação ao minério com o Fórum Permanente de Diálogo Técnico sobre Inovação, Desenvolvimento Tecnológico e Agregação de Valor ao Lítio em junho deste ano. O fórum é promovido pela Divisão de Recursos Naturais da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
México e Brasil, com reservas menores, também investem na exploração do lítio.
Parte do avanço tecnológico aponta para projetos de energia renováveis, como é o caso da extração e produção de baterias de lítio, e de hidrogênio verde. Durante a COP26, em 2021, a mineradora australiana Fortescue anunciou um investimento de US$ 8,4 bilhões na Argentina até 2028 para um projeto de produção de hidrogênio verde, no sul do país, em Río Negro.
Hidrogênio verde: combustível do futuro?
O hidrogênio é um elemento químico abundante na natureza, mas para ser utilizado como combustível, precisa ser separado da molécula de água. Quando obtido de maneira tradicional, com gás natural, sua produção é altamente emissora de gás carbônico (CO2); já o hidrogênio verde é extraído com eletricidade gerada por energias renováveis, como a eólica ou placas solares.
Por isso, é chamado de “combustível do futuro”, como o próprio presidente Alberto Fernández disse durante a COP26, em Glasgow.
O hidrogênio verde é útil especialmente para transportes pesados, como caminhões, aviões e navios, e para os setores químicos, calefação e siderurgia.
Multinacionais de olho no sul global
O desenvolvimento de tais projetos depende — e busca — capital estrangeiro. A entrada de multinacionais nos territórios do sul global que guardam recursos de interesse para o norte global ilustram um cenário de sujeição ao capital, uma vez que são burladas regulamentações que estabelecem a necessidade de consultar a população, principalmente a local, sobre a exploração dos territórios.
“Com todos esses projetos de mineração, lítio e hidrogênio verde, que envolvem empresas chinesas, norte-americanas e outras, o que a Argentina faz é contribuir para a transição energética desses países”, ressalta o biólogo e filósofo argentino Guillermo Folguera. “Além disso, é necessário questionar a magnitude dessa transição. As discussões sobre a mudança para veículos com bateria de lítio não incluem uma perspectiva estrutural”, afirma.
“Claro que os gases de efeito estufa estão mostrando o nível irreversível do dano no nosso planeta, mas vejo nitidamente uma estrutura epistêmica: a ideia de construir a crise climática como um problema global do qual sairemos com o sacrifício de algumas comunidades”, diz.
Efetivamente, essas áreas têm um nome em contextos de extrativismo e formas de exploração diversas, e são as chamadas “zonas de sacrifício”.
Jonatan Nuñez, que pesquisou sobre o pré-sal no Brasil, ressalta os paralelos possíveis em termos de exploração dos territórios na América Latina seguindo os ciclos políticos da região.
“Em 2010, uma lei em Brasil conferiu poder à Petrobras para explorar o pré-sal, e as concessões para terceiras empresas eram regidas por cláusulas bastante estritas. A Argentina, também em um ciclo político que acompanha o Brasil e outros países da região nesse momento, expropria [estatiza] a YPF em 2012, também com o objetivo de explorar soberanamente Vaca Muerta.”
“Em 2016, com o impeachment de Dilma [Rousseff], dias depois a lei do petróleo foi alterada. No mesmo ano, com a posse de Mauricio Macri, também foram modificadas uma série de regulamentações para a exploração. A primeira etapa de desenvolvimento foi elaborada por estatais ou semi-estatais e, após 2016, foi marcante o aumento da presença de empresas multinacionais”, diz o historiador, destacando que, no caso do Brasil, a presença majoritária foi da britânica Shell.
A complexidade da discussão abre, então, questionamentos sobre a possível sujeição econômica e dos territórios do sul global à extração dos chamados recursos naturais, uma vez que o contexto global já anuncia pouca margem para prosseguir com a exploração da natureza.
“Entramos em uma discussão estranha em que a dicotomia passa a ser ‘empresa nacional ou internacional’, em que multinacionais são ruins, mas festejamos a exploração de empresas nacionais”, aponta Guillermo Folguera. “Toda uma confusão que perde o ponto mais importante, que é: para que? Para que a Argentina vai exportar o trigo HB4, por exemplo? O que confere a um país como a Argentina, que tem o trigo na base da alimentação, um transgênico? Por que seria uma boa notícia? O discurso desenvolvimentista busca naturalizar e silenciar essas questões”, afirma.