Israel foi palco de uma noite de violências após uma votação histórica no Parlamento na segunda-feira (24/07). Estradas foram bloqueadas, pneus incendiados, resultando em dezenas de prisões e ao menos 20 feridos em confrontos com a polícia.
A repressão é denunciada pela oposição israelense e o cancelamento da chamada Cláusula de Razoabilidade pelo Parlamento do país é alvo de duras críticas dos Estados Unidos e da Alemanha.
Dezenas de milhares de manifestantes saíram às ruas de Jerusalém e de Tel Aviv depois que a coalizão de governo conseguiu aprovar no Knesset, o Parlamento em Jerusalém, o cancelamento da chamada Cláusula de Razoabilidade – uma ferramenta jurídica importante que a Suprema Corte do país podia usar até então.
Sob ordens diretas do ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, chefe do partido de extrema direita Força Judaica, a polícia reprimiu os participantes dos protestos com jatos d’água. Na periferia de Tel Aviv, uma viatura policial avançou contra manifestantes, deixando feridos leves.
Os atos, que duraram mais de três horas, continuaram madrugada adentro.
Ao menos 58 pessoas foram detidas após os confrontos com a polícia. Entre os manifestantes, há cidadãos de diferentes posições políticas e meios sociais: laicos ou religiosos, militantes pacíficos, operários, trabalhadores do setor da tecnologia e até reservistas militares.
Nesta terça-feira (25/07), vários recursos foram registrados junto à Suprema Corte para invalidar a votação de segunda. Setores da sociedade israelense reagem: o sindicato dos médicos, por exemplo, iniciou hoje uma greve geral no serviço público.
Na segunda-feira, o líder da central sindical Histadrut, Arnon Bar David, alertou que “qualquer avanço unilateral na reforma teria sérias consequências”, evocando uma “greve geral, se necessário”.
Nesta manhã, diversos jornais israelenses publicam capas completamente pretas, com manchetes que denotam o temor pelo futuro da democracia no país.
Controverso projeto de reforma
A cláusula, que existia há cerca de 50 anos, estabelecia que a Suprema Corte de Israel poderia contestar, ou mesmo cancelar, uma decisão do governo que considerasse contrária ao bom senso e à proporcionalidade. A partir de agora, por exemplo, membros do governo – como ministros ou diretores de empresas, ou instituições públicas – poderão fazer indicações ou demissões consideradas dúbias sem intervenção do Judiciário.
O cancelamento da Cláusula de Razoabilidade certamente enfraquece a Suprema Corte e fortalece os Poderes Executivo e Legislativo – poderes que se confundem em Israel, já que o governo é sempre maioria no Parlamento.
A votação de segunda-feira foi apenas a primeira de um projeto de reforma judicial bem maior que o atual governo israelense – o mais direitista, religioso e ultranacionalista da história do país – pretende aprovar. A reforma foi anunciada em janeiro, de surpresa, pelo atual ministro da Justiça, Yariv Levin, braço direito do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.
Amos Ben Gershom
Reforma judicial também está causando danos à popularidade do premiê Netanyahu
Desde então, milhares de israelenses vão às ruas protestar todas as semanas contra o que consideraram ser um ataque à democracia do país. O objetivo inicial era colocar o plano em prática em poucas semanas, mas devido às pressões internas e também internacionais, os planos de Yariv Levin foram adiados por sete meses e picotados em diversas votações.
Apelidado de “método do salame” pelos israelenses, a ideia seria aprovar toda a reforma judicial aos poucos. Na segunda-feira, o ministro da Justiça conseguiu aprovar a primeira parte do projeto de lei.
Netanyahu em uma posição complicada
Em meio a tudo isso, o primeiro-ministro se encontra numa posição complicada. Ao mesmo tempo em que certamente não aprecia ser alvo de protestos, ele está nas mãos dos partidos que formam a atual coalizão de governo. Caso não apoiasse a reforma judicial, provavelmente perderia o apoio de seus parceiros de governo, principalmente de líderes de partidos de extrema direita que, pela primeira vez, ocupam cargos de destaque no governo.
Há quem sugira, no entanto, que Netanyahu quer enfraquecer a Suprema Corte por motivos pessoais. Ele enfrenta três indiciamentos por corrupção e busca alguma forma de evitar ir para a prisão.
Mas a reforma judicial está causando danos à popularidade de Netanyahu, sem contar os danos à economia nacional. A moeda local, o shekel, despencou desde janeiro e diversas empresas de alta tecnologia ameaçam retirar investimentos do país.
Fora isso, centenas de reservistas voluntários do exército israelense – principalmente pilotos da Força Aérea – têm anunciado que vão deixar de se apresentar voluntariamente para exercícios ou ações militares, podendo causar um enfraquecimento também militar do país.
Netanyahu enfrenta isso tudo em meio a problemas de saúde. Ele foi hospitalizado no fim de semana para colocar um marcapasso depois que médicos identificaram uma arritmia cardíaca no líder de 73 anos.
Rusga com o governo americano
O primeiro-ministro também enfrenta a oposição do presidente norte-americano, Joe Biden. Não é segredo que Netanyahu há anos demonstra mais simpatia pelo Partido Republicano e apoiou abertamente o ex-presidente Donald Trump na última eleição presidencial.
Mas ninguém podia imaginar que o relacionamento com Biden fosse chegar a esse ponto. O líder democrata nunca escondeu o apreço a Israel e até mesmo a Netanyahu – que ele conhece há décadas –, mesmo enquanto membros de seu próprio partido criticam abertamente Israel por conta do conflito com os palestinos. Mas Biden também tem se revelado um grande crítico da reforma judicial em Israel, que, para ele, irá enfraquecer a democracia do país, assim como aconteceu na Hungria, Polônia e Turquia.
Desde que Netanyahu voltou ao poder, no final de novembro – poucos dias antes do anúncio da reforma –, Biden não o convidou para visitá-lo na Casa Branca: uma clara puxada de orelha ao premiê israelense.
No domingo (23/07), Biden voltou a pedir que Netanyahu só aprove uma reforma judicial tão abrangente como essa caso haja um “amplo consenso nacional”.
O governo alemão, por meio do ministério das Relações Exteriores, manifestou hoje “grande preocupação” pelas tensões na sociedade israelense.