O discurso de ódio alimentado pelas redes sociais se tornou um problema crônico da sociedade brasileira, elevado a outros patamares pelo debate em torno do Projeto de Lei das Fake News e, até anteriormente, nas eleições presidenciais e a tentativa de golpe de Estado propagada no 8 de Janeiro, por apoiadores do então candidato derrotado, Jair Bolsonaro (PL-RJ).
Para tentar sanar o problema, o governo federal criou um grupo de trabalho, com integrantes da sociedade civil, do ministério dos Direitos Humanos, entre outros. Essa iniciativa, no entanto, tem sido atravessada pelos problemas decorrentes do tema, entre eles o próprio PL das Fake News, e os ataques violentos às escolas.
Um dos integrantes, o psicanalista e professor da Universidade de São Paulo, Christian Dunker, explica que “o assunto está batendo à nossa porta”. “Se a gente fosse pegar assim a crônica do cotidiano, ela poderia pautar as nossas reuniões”, afirma o psicanalista, que é o convidado desta semana no BdF Entrevista, publicada pelo Brasil de Fato.
“É uma conversa muito interessante, de altíssima qualidade. A gente estuda o discurso de ódio religioso, racial, étnico, de gênero, de orientação sexual. É um mapa muito diversificado e concentrado nessa tarefa”.
A constatação do grupo é de que o país, ao contrário do que acontece em outras partes do mundo, ainda é, de certa maneira, “primitivo” em relação a legislações que possam dar conta de casos e pessoas atingidas por discursos de ódio.
“Não tem uma delegacia, não tem um procedimento, não tem institucionalidade para você lidar com o discurso de ódio hoje no país. Se você é vítima – a gente tem vítimas ali entre os membros, pessoas que dão depoimentos, principalmente de discurso de ódio digital – você vê a miséria de recursos institucionais para enfrentar isso”.
Há, inclusive, no grupo de trabalho, debates sobre como implicar as grandes empresas de tecnologia nesse processo. ”Vocês estão mediando discurso de ódio, como é que vocês reparam isso? Investem em educação para direitos humanos? Investe em práticas de reparação, arbitragem, mediação dentro da escola? Para que isso se torne, de fato, uma situação de aprendizagem, uma situação de transformação paradigmática para todos os envolvidos”, questiona Dunker.
Na conversa, o professor fala ainda sobre as motivações para os ataques às escolas perpetradas neste ano, e que geraram além de comoção, um grande sinal de alerta para a vulnerabilidade de todo o sistema educacional e a insegurança de membros do corpo docente e alunos.
“A escola, como lugar de conflito, fazia uma certa passagem dessa experiência marginal, no sentido antropológico do termo, da experiência despertencimento. Como, em geral, isso era resolvido? Eu crio o meu grupo marginal: ‘eu estou na turma do rock, eu estou na turma da dança, eu estou na turma do futebol’. Eu crio um grupo, vamos dizer assim, de acolhimento, e vou percebendo que estamos todos nessa experiência de inadequação e vamos mais ou menos superando isso”.
“O que acontece no nosso momento atual? Você tem um discurso de fora dizendo: ‘é pela violência, não é pela palavra’. E você tem um recurso digital que diz assim: ‘a sua comunidade marginal, não é na escola. Ela é no redpills, ela é no grupo neonazista, ela é no Discord do vídeo game, onde você se comunica e monta as zonas de pertencimento incel, com russos, chilenos, com pessoas de outros países, onde muitas vezes a gramática de violência e de ódio pode ser muito, mas muito maior’”.
Para Dunker, após quatro anos de governo Bolsonaro e a propagação, até certo ponto, institucional de discursos de ódio, era esperado um aumento de violência generalizado. “Mas por que escolas?”
“A gente volta quatro, seis anos e vê que foi se criando – e essa é uma novidade, isso está fora do Brasil e a gente está comprando esse discurso – um discurso de ódio às escolas: professor de História; Escola Sem Partido; doutrinação; as universidades que só fumam maconha. E a gente foi tolerando isso. De repente, nós criamos a nossa – não tem nada que ver com o que acontece nos Estados Unidos, é outra dinâmica – violência nas escolas. ‘Oh, que susto, aconteceu aqui!’. Foi produzido durante seis anos. Aquilo, deu nisso”.
Brasil de Fato: O Projeto de Lei das Fake News, na verdade, não foi colocado como um debate público, mas sim como mais uma guerra de mentiras. Há diversos interesses em jogo nesse PL: as plataformas entraram nisso porque ganham engajamento com discursos de ódio e fizeram absurdos para denunciar o projeto; uma parte da sociedade, ainda bolsonarizada, talvez, aposta na mentira; e os evangélicos acreditam que serão censurados. O que há por trás de uma sociedade apaixonada pela mentira?
Christian Dunker: É uma ótima colocação. Eu acho que a gente pode dizer que essa é uma paixão antiga. A mentira, nesse caso, se compõe de ilusões. Ilusões são, como dizia o Freud, uma coisa importante para nossa sobrevivência psíquica. Então, crenças que, às vezes, o próprio sujeito desconfia delas, mas elas servem para sustentar um futuro possível, para aguentar um presente muito opressivo.
Mas as ilusões se combinam, de fato, com erros, falsidades e com mentiras. E a gente fala em mentiras, se referindo a essa parte específica, onde você consegue detectar sistemas de interesse, agindo de forma concentrada e dirigida. Então, em relação a esse PL, é muito curioso, porque o debate público, a retórica, é livre. A sofística faz parte disso desde que inventamos a Ágora Grega.
Mas, quando empresas de alta tecnologia usam seu poder para interferir na votação de um PL que limita essas empresas, elas conseguiram produzir provas contra si, irrefutáveis. Quer dizer, o que o Google fez, disseminando propaganda em seu favor, às vésperas da primeira votação, é o exemplo cabal de que elas devem ser controladas, porque naquele momento em que elas deviam manter sua função de mediação, sua função de cuidado com o discurso, sua função de suporte para o conflito e para as diferentes posições, elas expressaram seus interesses, usaram a máquina para vencer, ou para obstruir, ou para criar uma certa opinião popular.
Isso já vem sendo discutido desde que começaram as conversas sobre big data, e desde os experimentos concretos mostrando como, por exemplo, a seleção de postagens otimistas ou pessimistas, favorecem ou desfavorecem um determinado candidato, favorecem ou desfavorecem uma determinada apreciação de uma pauta. Então, esse controle é um controle intransparente, é um controle que não está posto quando você recebe as mensagens, ele não está posto quando você vê as seleções que o YouTube faz pra você. Ele não está posto pelos algoritmos e isso é gravíssimo.
É como se a gente, no meio de um espaço que a gente criou e educou as pessoas para imaginar que aquele é um espaço de debate transparente, você tem um filtro que está agindo de forma ideológica. O debate foi perdido aí, agora é só a gente tomar as consequências desse evento, e aprovar alguma lei, algum marco regulatório, porque nós estamos muito atrasados nisso.
E as redes sociais, as plataformas, das mais acessadas até a deep web, elas foram germens do fascismo brasileiro. É o suposto anonimato que faz essas pessoas colocarem toda essa carga de ódio para fora?
A gênese do ódio é mais complicada, vamos dizer assim. Ela se alimenta de conflitos mal tratados, desde conflitos negados, desde fatos históricos que não são colocados de forma comunitária, como parte da nossa História, desde a escravidão, até a ditadura militar, desde a opressão a grupos vulnerabilizados, até a produção de hegemonias, consensos, vamos dizer assim, autoritários.
Então, a gente pode dizer assim, você não começa no discurso de ódio, o discurso de ódio ele instrumentaliza vulnerabilidades e conflitos que estão ali já presentes e maltratados. Você não tem História, debate constituído, regras pra encaminhar as conflitivas, então, antes do ódio, está o medo. O medo que é capitalizado como insegurança. Insegurança, que é vertida em melancolização, porque ninguém pode fazer nada, você está impotente.
Isso caminha para a produção e localização de um objeto inimigo. Então, você reemprega os preconceitos e as zonas de segregação que já estão naquela comunidade, para produzir esse inimigo. Depois da produção desse inimigo, você encoraja o grupo formado para se identificar e produzir, aí sim, uma ilusão, uma mentira, um interesse para atacar esse inimigo imaginário. E aí você tem, de fato, o discurso do ódio caminhando, como a gente viu, de forma galopante.
Mas ele é uma escalada. O problema é que quando ele está nas suas fases iniciais, a gente o tolera como parte do humor, parte do, vamos dizer assim, dos nossos preconceitos, que já estão aí, dos nossos maus tratos à palavra e à maneira de resolver conflitos.
É também nesse lugar onde surgem os discursos de ódio que atingiram as escolas brasileiras com tamanha violência, por exemplo. Impedir que as crianças tenham acesso às redes é uma tarefa complicada. O que pode sanear essa relação com a internet?
Veja só, que interessante, porque a ideia é justamente essa: você tem um mau vindo da internet, então bloqueia, impede. Acho que o mais difícil em situações de transição cultural abrupta, como a que a gente está vivendo, é que isso dá muito trabalho. Não é impedir, é acompanhar. Você está disposto a assistir mais um episódio do Pikachu contra o Charmander, e entender como funciona a raposa de 9 caudas?: “Não, isso vai me dar um trabalho e eu não sei se eu quero, se eu vou entender esse negócio”.
Então, mas para você produzir um consumo em boas práticas de telas, você vai ter que ter, vamos dizer assim, um acompanhamento dos pais, das escolas, da cultura, em relação a isso. É muito mais simples você ligar a torneira e fechar a torneira. Mas isso, como você está dizendo, é obviamente equivocado. Agora, em tese, muitas crianças menores de 18 anos não podem entrar em certos sites. Como que a gente está lidando com isso?: “Ah, é impossível?”. Por que é impossível? Para os pais é impossível? E para as operadoras, é impossível também?
Ninguém pode entrar num site de relacionamento, ou em uma rede social, de forma anônima, com perfil falso. E a gente é totalmente leniente com isso. A gente se demitiu da ideia de que qualquer pessoa faz um perfil falso, tem bots, etcetera. Por que [se não fosse permitido] seria mais fácil de você controlar, de você acusar, de você responsabilizar.
Dizer: “olha, sofri um ataque de um hater. Cadê a política de privacidade, a política de uso deste site? Eu quero uma retratação. Eu quero uma mediação”. “Ah, mas vai custar muito caro”. Pois é, porque a gente simplesmente ignora o mais simples. Claro que depois podem vir outras medidas, a discussão dos direitos de expressão e várias coisas aí.
Mas vamos reconhecer que nós estamos vivendo fora da lei mais básica, que é: não pode anonimato. Mais especificamente: não posso usar anonimato para agredir outra pessoa. Que agredir outra pessoa? Bom, corra o risco, faz parte. “Ah, é justificável, não é justificável. É uma crítica, a pessoa merece ser punida”.
Faz parte do jogo, mas não pode fazer anonimamente, porque isso é covardia. Isso incita uma moralidade covarde, em que você junta gente para bater no outro. “Ah, mas sempre foi assim”. Pois é, é por isso que tem que acabar. É assim que a gente vai combater, indiretamente, racismo, assédio moral, assédio sexual, bullying e todas as outras violências que a gente está, assim, tolerando há tempo demais.
Brasil de Fato
Cristian Dunker participa de grupo de trabalho que debates sobre como implicar as big techs no processo de combate aos discursos de ódio
Você falou da palavra bullying e acho que vale também ressaltar que essa é uma questão que não é restrita à nossa sociedade e que sempre existiu, sempre esteve por aí. Você acredita que ele ganha um tamanho ainda maior após a popularização das redes sociais? Ele se prolonga para além do espaço escolar?
Sim. No caso das escolas, a gente tem um dado que eu gosto de ressaltar: entre 2003 e 2023, a gente teve 20 ataques à escolas, com vítimas. No ano de 2022, o último ano do registro, a gente teve sete ataques. E de 2022 a 2023, quase que dobrou. Quer dizer, o fenómeno estava aí, porquê da curva?
Daí você olha e, em 2022, o que a gente tinha? Um ano eleitoral, um ano que, vamos dizer assim, fecha um ciclo onde, publicamente, o estado brasileiro defendeu armas. Defendeu e produziu dispositivos legais para que as pessoas comprassem mais armas, não só a prática da compra das armas, mas isso vem com uma retórica que diz o seguinte: como enfrentar a violência? Com violência. Como enfrentar o seu sentimento de injustiça? Com violência.
Porque todos esses agressores, eles se sentiram injustiçados. E a gente vai olhar de perto e vai dizer: poxa, essa é uma condição comum, ou mais ou menos comum, na experiência adolescente. Porque a gente sente que o corpo não está justo, a gente sente que o comentário do outro nos espezinha, sentimos que somos inadequados, eu sinto que a escola não é o meu lugar, que eu pertenço a outro planeta.
Ou seja, isso já é um processo, vamos dizer assim, de transição e onde a escola como lugar de conflito, fazia uma certa passagem para essa experiência marginal, no sentido antropológico do termo, a experiência despertencimento. Como, em geral, isso era resolvido? Eu crio o meu grupo marginal: “eu estou na turma do rock, eu estou na turma da dança, eu estou na turma do futebol”. Eu crio um grupo, vamos dizer assim, de acolhimento, e vou percebendo que estamos todos nessa experiência de inadequação e vamos mais ou menos superando isso.
O que acontece no nosso momento atual? Você tem um discurso de fora dizendo: “é pela violência, não é pela palavra”. E você tem um recurso digital que diz assim: “a sua comunidade marginal, não é na escola. Ela é no redpills, ela é no grupo neonazista, ela é no Discord do vídeo game, onde você se comunica e você monta as zonas de pertencimento incel, com russos, chilenos, com pessoas de outros países, onde muitas vezes a gramática de violência e de ódio pode ser muito, mas muito maior.
E pior, esse grupo está em paralelo com a escola, ele vai aprofundando o despertencimento daquela criança, daquele adolescente, com a escola. Uma hora começam a entrar processos de desumanização, processos de produção de inimigos imaginários, processos de criação de uma discursividade viril e bélica, que incitam o sanctus, de ir lá e atacar a escola. Por quê? Porque você vai ser reconhecido, veja só o que está por trás do ato.
Claro que há vulnerabilidades de saúde mental envolvidas, há condições anteriores, mas a grande retórica é: “olha, aquele déficit de reconhecimento que você teve naquele mau encontro, ele vai ser suturado por um excesso de reconhecimento, num ato glorioso de diferenciação, que te torna alguém que se vingou”. Que é o outro lado dessa moeda.
Então, a pergunta aqui de fundo é: bom, o aumento de violência era esperado; o feminicídio era esperado; mas por que escolas? A gente volta há quatro anos e vê que, durante quatro, seis anos, foi se criando – e essa é uma novidade, isso está fora do Brasil e a gente está comprando esse discurso – um discurso de ódio às escolas: professor de história; Escola Sem Partido; doutrinação; as universidades que só fumam maconha.
E a gente foi tolerando isso aí. E daí, de repente, nós criamos a nossa – não tem nada que ver com o que acontece nos Estados Unidos, é outra dinâmica – violência nas escolas. “Oh, que susto, aconteceu aqui!”. Foi produzido durante seis anos. Aquilo, deu nisso.
E é muito natural que esse discurso de ódio, que acontece no mundo dos adultos, chegue também no mundo das crianças, dos adolescentes, dos jovens, não é?
Sim, inclusive porque parte do crescimento, da passagem da infância para a adolescência, da adolescência para a vida adulta, é de tensão com os mais velhos, tensão com o mundo que está aí. E com razão, porque querem outra coisa, querem transformação. Então veja, a solução não é a pacificação das escolas, com mais ronda ostensiva – ok, tudo bem, isso me remete a um outro problema – armando os professores, criando detectores de metais. A solução é: como é que a gente volta para uma situação em que este conflito crie novos brasis, crie novos futuros, que se mostre como uma alternativa, como visões transformativas da realidade, que vão ser incorporadas pelas instituições, pelas comunidades, pelos discursos.
Ocorre que faz parte dessa máquina dizer assim: “isso não vai acontecer, não tem ninguém te escutando, não tem ninguém dedicado ao problema da violência nas escolas. Vamos começar, de agora em diante, uma nova coisa”. Tudo falso, desmerecendo as pessoas que já estão quebrando a cabeça com políticas públicas bem antes de a gente ter nossa conversa aqui. Mas faz parte da aura da coisa dizer que nada está feito, então agora nós precisamos de um ato heroico de hiper poder.
E há também as chagas do próprio sistema educacional, que são, obviamente também, reflexos da sociedade que construímos e em que vivemos: são professores mal remunerados, alguns inclusive despreparados para o desafio de ensinar, e outras tantas questões. Há espaço, neste momento, para se repensar esse sistema, dadas essas questões sociais que estão imbricadas nele?
Há espaço, e mais do que espaço, há uma expectativa de que a gente tenha uma mudança de patamar na discussão sobre a educação do país, uma discussão que ficou seis anos parada. Uma discussão que ficou, vamos dizer assim, deslocada para assuntos periféricos e desmontada.
Veja-se os colapsos premeditados e semelhantes aos que a gente teve na política pública sanitária de enfrentamento ao covid, você teve um processo similar em relação à educação, inclusive universitária, um desmantelamento do financiamento à pesquisa e à ciência.
Mas, a gente tem que contar com o lugar que tinha chegado lá atrás, um grande feito que é a inclusão massiva, a gente tem crianças hoje na escola e muito tardiamente, uma coisa bizarra, efeito também da ditadura militar, mas nós chegamos lá. Em segundo lugar, a inclusão, outro passo gigantesco. Hoje, a gente não tem mais – o pessoal está querendo fazer voltar com as salas especiais e as máquinas de exclusão e produção de fracasso escolar.
Bom, estamos em um momento, então, em que fizemos a inclusão sem mediação. Fizemos as cotas e deram super certo. Hoje, a gente tem mais negros do que brancos nas universidades públicas brasileiras, mas onde estão os programas de permanência? Onde estão as bolsas para que os alunos que não tenham recursos de alimentação, de estadia, etc, possam permanecer? “É outro departamento, chama o pessoal da habitação, não é comigo”.
O que está acontecendo com a redefinição do ensino médio, dos percursos formativos, que é uma discussão complexa – tem prós e contras – mas, isso ia dar no desmonte de uma peça fundamental que são os nossos vestibulares exclusivistas, tinha um horizonte para transformar isso. A gente não está vendo mais, como é que isso vai acontecer. Estamos esperando uma mudança qualitativa em todos esses níveis da conversa.
Onde é que está a regulamentação de acompanhamento terapêutico, onde é que estão os psicólogos nas escolas, onde é que estão os percursos formativos, de fato, bem pensados? Eu não quero discutir o projeto em questão, mas alguma coisa precisa ser feita. Não são coisas tão complicadas assim, fora aumento de piso salarial e esse projeto que é muito audacioso, a gente torce para que dê certo, da implantação das escolas em turno integral para todo mundo. Se a gente conseguir fazer isso, garanto que a gente vai ter queda de índice de mortalidade de jovens negros de periferia. Que a gente vai sair dessa estatística bizarra, em que jovens entre 19 e 24 anos, a primeira causa de morte é violência e a segunda é suicídio.
O que fazer? Ensino integral de qualidade. Vai acabar com o problema? Não, mas isso é o que a gente pode fazer imediatamente, é o que a gente deve fazer, a gente está atrasado nisso.
Você integra o Grupo de Trabalho sobre discursos de ódio, que foi criado pelo governo federal. Como andam essas conversas e o que esperar como resolução desses trabalhos?
Olha, é uma tarefa que eu recebi com muita honra e orgulho, um tremendo reconhecimento fazer parte desse grupo. São 34 pessoas de diversas áreas, de direitos humanos, comunicação, antropologia, liderado pelo Camilo [Onoda Caldas], pela Manuela D’ávila, e que tem como tarefa uma coisa relativamente simples, que é definir o conceito de discurso de ódio – e que, curiosamente, não é fácil de fazer – e produzir uma definição que implique em estratégias de enfrentamento.
É uma conversa muito interessante, de altíssima qualidade. Tem pessoas realmente dedicadíssimas a essa matéria, então a gente estuda o discurso de ódio religioso, racial, étnico, de gênero, de orientação sexual. É um mapa muito diversificado e concentrado nessa tarefa, e que a gente tem sido atravessado, de certa forma, pela realidade. Porque começamos isso no começo desse ano e tivemos que lidar com o ataque às escolas, depois tivemos que lidar com o PL das Fake News, parece que o assunto está batendo à nossa porta a cada reunião.
Se a gente fosse pegar assim a crônica do cotidiano, ela poderia pautar as nossas reuniões. E que são reuniões assim: três horas por semana, intensas, com relatórios, pareceres, etc. E que, bom, a gente constata coisas assim, um pouco primitivas, do tipo: não tem uma delegacia, não tem um procedimento, não tem institucionalidade para você lidar com o discurso de ódio hoje no país.
Se você é vítima – a gente tem vítimas ali entre os membros, pessoas que dão depoimentos, principalmente de discurso de ódio digital – você vê a miséria de recursos institucionais para enfrentar isso. A quem você recorre, como que a gente – a gente tem uma orientação não punitivista – vai tratar processos como reparação, esquecimento, liberdade de expressão, como você vai traduzir isso em práticas concretas que hoje, bom, não tem zero regulamentação.
Até mesmo o bullying. Acontece um conflito dentro da escola, o que você faz? Chama os pais, chama o especialista? É a criação de uma cultura, é o reforço de uma educação em direitos humanos – a gente estava falando disso agora há pouco. Onde é que está essa pauta nas escolas? Será que ela tem que vir de fora? O que as grandes empresas de tecnologia têm a ver com isso? Será que elas não deviam se encarregar de… “olha, vocês estão mediando discurso de ódio, como é que vocês reparam isso? Investem em educação para direitos humanos? Investe em práticas de reparação, arbitragem, mediação dentro da escola?”.
Para que isso se torne, de fato, uma situação de aprendizagem, uma situação de transformação paradigmática para todos os envolvidos. Por que a gente tem efeitos e práticas como o cancelamento, o julgamento perpétuo? Porque ninguém opina nada sobre essa matéria e a gente, de fato, não tem estratégias de enfrentamento. Então, uma proposta desse grupo é, de criar uma política pública que possa, inclusive, colocar o Brasil nessa conversa, porque outros países estão discutindo isso há muito tempo. Nós, assim, parece que acordamos agora, ou agora nos é permitido olhar para isso como um problema que demanda trabalho continuado e formação de políticas públicas.