As fronteiras nacionais já não são mais suficientes para abarcar os produtos que chegaram à Feira Nacional da Reforma Agrária, que aconteceu até este domingo (14/05) no Parque da Água Branca, em São Paulo (SP).
Pela primeira vez, o evento recebeu delegações internacionais, que vieram da Ásia, Europa e países da América Latina. Em suas bagagens, os participantes estrangeiros trouxeram itens desenvolvidos a partir de processos de cultivo agroecológicos, isto é, que adotam técnicas de manejo que mitigam os impactos no ecossistema.
Segundo Cássia Bechara, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e organizadora da barraca internacionalista, que mescla produtos com cartazes que pedem a liberdade de Julian Assange e da Palestina, os itens expostos tem mais do que o fato de virem de camponeses como característica.
Eles carregam, em suas palavras, “bandeiras em comum”, tais como a “construção da agroecologia, da soberania alimentar e a comercialização” para fomentar o que ela define como “economia camponesa”, uma alternativa ao modelo dominante de produção em monoculturas.
A feira recebeu delegações e produtos oriundos do México, Colômbia, Argentina, Venezuela, Bolívia, Sri Lanka, Nepal, Indonésia, Palestina, Congo Brazzaville e Noruega. Durante os quatro dias, os membros das delegações estrangeiras venderam seus produtos e participaram de painéis de discussão.
Entre eles, estavam temas que foram de campanhas contra bloqueios econômicos – tais como os vividos atualmente por Cuba e Venezuela – e a solidariedade a países que lutam pela sua soberania territorial, cultural e política.
Dessa forma, diz Cassia, foi possível “trazer um pouco da luta dos camponeses de todo o mundo a partir da sua produção”, fundamenta. E completa: “é a primeira vez que a união comunera [da Venezuela] vai ter uma experiência de comercialização.”
Na feira, puderam ser encontrados do azeite de Mendonza, região famosa pela produção de vinho na Argentina, passando pelo café colombiano, a quinoa boliviana até o curry de pimenta do Sri Lanka. O mole mexicano – mistura de especiarias – saiu por apenas R$ 15, a preço de custo.
Pelo céu ou pela terra: os caminhos que levam à Feira do MST
Transportar a produção agroecológica de tantos lugares do mundo exigiu esforço e até um pouco de improviso. Boa parte dos volumes vendidos foram trazidos por meio de malas por Cássia depois de uma reunião, na Colômbia, com líderes de organizações campesinas. Mas também houve quem preferiu cortar milhares de quilômetros por terra.
Esse é o caso de Juan Martin, que dividiu o volante de uma caminhonete com um parceiro de viagem e de movimento. Juan faz parte da Federación Rural de Argentina e vive na província de Buenos Aires. De carro, transportou mel, azeite, azeitonas e panfletos até o Parque da Água Branca, local que recebeu a Feira da Reforma Agrária.
Ele conta que estava entusiasmado em “compartilhar a barraca internacionalista com o MST” e que em seu país participa da “luta pelo acesso à terra, pela lei da reforma agrária e para combater a inflação.”
A Argentina sofre com um grave problema inflacionário, que tem levado parte da sua população à pobreza. Martin conta que a desigualdade não tem sido exclusividade de seu país e que esse é um “problema em todo mundo, pois existe muita produção [de alimentos] e fome ao mesmo tempo. Por isso os alimentos tem um papel central na economia.”
Patrícia de Matos/Brasil de Fato
Barraca internacionalista misturou produtos à venda com debate político sobre produção e consumo de alimentos no mundo
Segundo Martin, a federação da qual participa está em 20 das 23 províncias argentinas e abarcam mais de 30 mil famílias a nível nacional que comercializam sua produção por meio da plataforma “Pueblo al Pueblo”.
A experiência da produção de alimentos a partir do movimento social também tem servido de inspiração às comunas venezuelanas, organizações de base criadas no governo de Hugo Chávez. Hoje, o país latino americano conta com 3.940 unidades desse tipo, que dedicam-se, entre outras atividades, à produção de alimentos agroecológicos.
Para Carmen Reyes, diretora de Movimentos Sociais do Ministério para Comunas da Venezuela, a comercialização de produtos venezuelanos na Feira do MST “abre muitas possibilidades. É uma oportunidade que se dá com o novo governo de Lula, agora se pode gerar condições de intercâmbio e a Venezuela voltar a ser um parceiro econômico.”
Reyes ainda contextualiza que em “2025 há expectativa que a população da venezuelana seja 100% urbana.” Com isso, a produção teria que vir de fora, aumentando ainda mais a dependência do país às importações. Contudo, as comunas têm, em suas palavras, “revertido essa tendência.”
Alimentar o mundo
Dados revelam, ano a ano, que a fome e a alimentação precária não respeitam fronteiras e podem ser vividas de forma intensa inclusive em países que lideram a produção de alimentos, como o Brasil.
Um total de 828 milhões de pessoas estão nessa situação em todo o mundo, de acordo a Organização das Nações Unidas (ONU). Mais da metade da população brasileira – 125 milhões de pessoas – vive em situação de insegurança alimentar, ou seja, quando não há acesso integral aos alimentos.
Apesar disso, a experiência brasileira pode ser um guia sobre como fazer para superar esse problema. É o que afirma Rafael Arantes, pesquisador em Nutrição em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP).
Segundo ele, apesar dos últimos recuos em importantes indicadores, “o Brasil não deixou de ser uma referência para o mundo no que diz respeito a políticas públicas. Já ensinamos como lidar de maneira significativa e contundente no combate à fome”, alerta.
Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome produzido pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Em 2018, o país voltou ao ranking.
Arantes explica que o Brasil melhorou os seus índices nas primeiras duas décadas deste século por conta de políticas públicas combinadas e o avanço na compreensão de que o acesso à alimentação é também um direito humano.
Sobre os últimos retrocessos, argumenta que “houve uma desestruturação [dessas políticas] nos últimos anos. Tudo isso foi agravado pela pandemia e pelas políticas de austeridade, que tiveram impacto direto na vida das pessoas.”
Rafael Arantes ainda afirma que a produção de alimentos por parte do MST é algo relevante, não só pela produção de arroz agroecológico, pois isso mostra o “potencial dos movimentos em geral.”
Ele sustenta que os “movimentos sempre estiveram se articulando e produzindo, independente de governos”, mas agora o “Brasil pode se colocar de uma forma mais robusta no mundo em relação à produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos. Precisamos reverter a lógica dos incentivos, precisamos favorecer os agricultores que estão nessa produção de alimentos e o inverso também: motivar outros a fazerem a transição para esse modelo.”
E finaliza: “a expectativa é que com o retorno do investimento do Brasil em políticas públicas para a alimentação faça que o país volte a protagonizar essa agenda, nos próximos anos, no mundo.”