A passos lentos, mas determinados, a União Europeia avança rumo à adoção do euro digital, com o qual os mais de 340 milhões de usuários da moeda única poderão realizar transferências e pagamentos correntes. Já faz três anos que o bloco desenha os contornos da versão virtual da moeda, cujo projeto legal a Comissão Europeia revelou no fim de junho.
Dezenas de países do mundo buscam o melhor caminho para criar as suas moedas digitais – o Brasil, por exemplo, é um dos mais avançados na questão e vai lançar os testes com o real digital neste segundo semestre. Mas na UE, o desafio é particularmente complexo: nada menos do que 20 países, com idiomas diferentes, adotam o euro, que também é a segunda divisa mais importante do mundo, atrás do dólar.
“Os países em desenvolvimento avançaram rápido nas moedas virtuais utilizadas no varejo, e não no atacado. Isso faz toda a diferença. Nesses países, inclusive a China, ainda há um desafio importante de inclusão financeira. O euro digital não tem esse objetivo”, explica Victor Warhem, especialista em Finanças do Centro de Política Europeia. “Aqui, o grande propósito é a soberania monetária e unificar o setor de pagamentos na Europa, algo que até hoje não conseguimos fazer bem. A principal utilidade seria dispor de um instrumento que poderá ser usado nos mercados financeiros internacionais, e assim reduzir as fricções nos mercados de câmbio internacionais e dentro da própria UE”, salienta.
Concorrência de moedas
Nos últimos anos, a moeda única foi ficando para trás em termos de modernização de pagamentos correntes. As transações bancárias tradicionais, como compras e transferências, são realizadas por cartão bancário e um punhado de multinacionais privadas, como Lydia e PayPal.
Num ambiente em que as moedas enfrentam não só uma concorrência entre elas cada vez mais acirrada, mas também se adaptam à expansão das criptomoedas, o euro digital, que deverá se chamar Cash+, chega na hora certa, na avaliação de Nathalie Janson, professora associada de Finanças da Neoma Business School. A expectativa é de que, se tudo der certo em termos de regulamentação, aprovação e implementação, o euro digital comece a operar em 2027, no cenário mais otimista.
“A exceção da China, um grande país que começou bem mais cedo, mas que ainda não adotou totalmente a sua moeda digital, a maioria dos países industrializados não chegou ao nível que a UE chegou. Se olhamos os Estados Unidos, vemos que estão ainda bem longe de nós, que estamos em fase de prototipagem”, observa. “Estamos bem posicionados no mercado de divisas internacionais, nessa corrida em que o dólar está bem atrás”, afirma Janson.
Public Domain Pictures
Modalidades de funcionamento da futura moeda ainda não foram determinadas pelo Banco Central Europeu
Ameaça aos bancos tradicionais
As modalidades de funcionamento da futura moeda ainda não foram determinadas pelo Banco Central Europeu. O euro digital deve poder ser estocado em um cartão bancário, um telefone ou um aplicativo específico a ser desenvolvido, sem necessidade de conexão à internet. As transações serão gratuitas e em larga escala – desde a compra de pão na padaria até aquisições mais volumosas, num limite que deve ficar em € 3 mil.
O comissário europeu encarregado dos serviços financeiros, Mairead McGuinness, tem esclarecido que, apesar da queda da utilização de dinheiro em espécie, acentuada pela pandemia, o objetivo não é acabar com o dinheiro vivo, essencial para a estabilidade financeira e monetária no bloco.
Para Warhem, o principal desafio será convencer os bancos comerciais de que a moeda virtual é uma boa ideia – afinal ela lhes priva de depósitos. “Vão impor um limite, mas também vão aceitar que as pessoas e comerciantes tenham várias contas ao mesmo tempo. Eles poderiam, então, retirar todo o seu dinheiro do banco e colocar na carteira digital, o que poderia ser muito desestabilizador para o sistema bancário, principalmente em caso de crise na zona do euro”, ressalta o pesquisador do Centro de Política Europeia, de Paris. “Além disso, vamos criar uma solução de pagamentos pública que vai entrar em competição com as centenas de opções privadas que já existem. Acho difícil imaginar que a solução pública vai vencer. Ou seja, a questão da adesão é um verdadeiro desafio e ainda está sendo subestimada, a meu ver.”
É por isso que, a princípio, os bancos e as médias e grandes empresas serão obrigadas a oferecer o Cash+ nas suas transações, mas as pessoas físicas e pequenas empresas poderão optar se querem ou não. Não será necessário ter uma conta bancária para usar o serviço, ao contrário dos aplicativos disponíveis no mercado.
Apesar das aparentes vantagens, a adesão dos europeus a essa alternativa ao dinheiro físico ainda é uma incógnita, principalmente por temores quanto à segurança e à preservação da privacidade, salienta Nathalie Janson.
“Vai ser preciso ver como garantir aos cidadãos que o euro digital não será uma porta de entrada para eles serem controlados. Esse é um aspecto que bloqueia muito a questão nos Estados Unidos”, disse a especialista. “Hoje, no projeto de lei, o Banco Central se compromete a não olhar as transações e elas deverão se concentrar ao nível das carteiras digitais dos usuários. Entretanto, acho que mesmo assim poderemos ter reticências ao projeto. Não temos, todos, a mesma confiança no Estado, entre os países que compõem a União Europeia.”