O mecanismo de dissolução do Congresso do Peru foi cogitado diversas vezes pelo presidente Matín Vizcarra desde que ele assumiu a presidência, em março de 2018, ao ver que as reformas institucionais prometidas no início de seu governo enfrentavam resistência e sofriam protelação no Legislativo controlado pela maioria fujimorista – deputados do partido de extrema direita Força Popular. Porém, na noite desta segunda-feira (30/09), após ter mais uma moção de confiança ignorada pela oposição, Vizcarra anunciou a dissolução do Legislativo e convocou novas eleições para, segundo ele, colocar fim “a este impasse político”.
Para Wagner Iglecias, professor do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam-USP), a medida anunciada pelo presidente peruano pretende romper com uma “paralisia institucional” criada pela bancada da oposição e “devolver legitimidade popular” ao governo.
“Vizcarra pegou uma situação muito difícil, o Congresso não está deixando ele governar. Os fujimoristas têm o controle [do Legislativo] com uma bancada que gerou um quadro de paralisia institucional”, afirma o professor.
Porém, a medida de Vizcarra teve reação imediata do Congresso. Ainda na noite desta segunda, não aceitando a dissolução, a Casa aprovou por 86 votos favoráveis a suspensão temporária do presidente por 12 meses, alegando “incapacidade moral”, e empossaram a vice-presidente Mercedes Aráoz como chefe interina de Estado, o que transformou o Peru em “um país com dois mandatários”.
Segundo o Legislativo, a ação de Vizcarra é inconstitucional, uma vez que os deputados “não rejeitaram” a moção de confiança apresentada pelo governo, mas adiaram a votação para depois da escolha de novos membros da Suprema Corte. Porém, segundo membros do governo, a bancada fujimorista agiu “sem transparência”, uma vez que a moção tratava justamente de mudanças na escolha dos novos integrantes do Judiciário. Mais tarde, a moção foi votada e aprovada segundos antes do pronunciamento do presidente no qual anunciou a dissolução da Casa.
Para Iglecias, a decisão de Vizcarra não desrespeita a Constituição porque “é um dispositivo previsto legalmente que ele está utilizando para devolver ao eleitorado a legitimidade de um novo caminho diante do impasse gerado pelos fujimoristas. O cenário é muito nebuloso, embora a Constituição permita esses mecanismos”.
Segundo a Constituição do Peru, um presidente pode dissolver o Legislativo e chamar novas eleições se o Congresso rejeitar duas propostas apresentadas pelo Executivo no caráter de “moção de confiança”. De acordo com Vizcarra, os deputados rejeitaram duas moções do governo: a primeira, quando seus projetos de reforma foram ignorados pela Casa, e a segunda, mais recente, que dizia respeito às mudanças na escolha de ministros para a Suprema Corte, o que daria a prerrogativa legal para a dissolução.
Wikicommons
Para Iglecias, presidente do Peru pretende acabar com uma ‘paralisia institucional’ criada pela bancada fujimorista de extrema direita
Forças Armadas, OEA e eleições
Diante da resistência do Congresso, diversos setores da população em várias regiões do país foram às ruas para apoiar a ação do presidente. Além disso, governadores e prefeitos se reuniram com o mandatário ao longo desta terça-feira (01/10) e assinaram documentos de apoio à dissolução do Parlamento.
Ainda nesta segunda, as Forças Armadas do Peru se pronunciaram a favor do presidente e reiteraram a legitimidade da atitude de Vizcarra. “De acordo com o artigo 167 da Carta Magna, o senhor presidente constitucional da República, Martín Vizcarra Cornejo, é o chefe supremo das Forças Armadas e da Polícia Nacional do Peru”, disse o Exército em comunicado.
Por sua vez, a Organização dos Estados Americanos (OEA) destacou a importância do cumprimento do “exercício efetivo da democracia […] com base no Estado de Direito” e afirmou “que compete ao Tribunal Constitucional do Peru se pronunciar sobre a legalidade e legitimidade das decisões institucionais adotadas”.
Para o professor do Prolam, o mais provável é que, embora o cenário seja de crise, as novas eleições aconteçam na data prevista (26 de janeiro de 2020) e a institucionalidade seja restaurada no país. “Embora o sistema do Peru tenha esses mecanismos, o cenário ainda é muito nebuloso. Minha aposta é que, como Vizcarra tem o apoio das Forças Armadas e de partes expressivas da sociedade civil, esse processo pode terminar em novas eleições”, afirma Iglecias.
De acordo com o especialista, a crise atual no Peru envolve os três Poderes da República e que o argumento utilizado por alguns setores políticos de que a bancada fujimorista gera instabilidade para se ver livre de acusações por corrupção parece provável.
“Podemos dizer que é uma crise institucional que envolve os três Poderes, pois a Suprema Corte está envolvida também. Eles podem querer favorecer esses deputados fujimoristas com alguma espécie de indulto. A Keiko [Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujirmori], liderança do partido, está envolvida em escândalos”, destaca.