A cerimônia de posse dos 51 membros do Conselho Constitucional do Chile acontece neste quarta-feira (07/06). O órgão que será responsável por escrever a segunda proposta da Carta Magna, em um processo iniciado no país em outubro de 2020, quando a sociedade decidiu, em plebiscito, realizar a primeira constituinte participativa de sua história, responsável por escrever uma nova Constituição que irá substituir a imposta pelo ditador Augusto Pinochet em 1980.
A nova etapa do processo marca uma guinada ideológica importante, já que, após aquele plebiscito, a sociedade chilena elegeu uma Convenção Constitucional, em maio de 2021, com ampla maioria de políticos de esquerda e representantes de movimentos sociais e de povos originários.
Porém, a proposta escrita foi a referendo em setembro de 2022 e terminou rechaçada por 62% dos chilenos.
A partir de então, se iniciou uma nova etapa do processo, na qual se decidiu criar o Conselho Constitucional. A eleição dessa organização, realizada em maio passado, terminou com uma vitória do Partido Republicano, representante da extrema direita chilena. A legenda terá 23 membros dentro do órgão.
Para analisar o que pode acontecer no Chile a partir da conformação desse Conselho, Opera Mundi entrevistou o jurista Fernando Atria, que foi membro da Convenção Constitucional anterior, além de ser um dos constitucionalistas mais reconhecidos em seu país.
Atria também é membro do partido Convergência Social, que é parte da Frente Ampla, coalizão a qual pertence o presidente chileno Gabriel Boric.
Leia a entrevista de Opera Mundi com Fernando Atria:
Opera Mundi: como podemos explicar o que aconteceu no Chile desde outubro de 2019, quando o país viveu uma revolta social com mais de dois milhões de pessoas nas ruas em algumas manifestações, com um referendo, no ano seguinte, onde 75%das pessoas decidem mudar a Constituição.
Em 2021, é eleita a Convenção Constitucional, uma constituinte com ampla maioria progressista, e no mesmo ano se elege o presidente mais jovem de história do país, também progressista, mas meses após, a Constituição escrita por aquela maioria progressista, com um texto fiel às demandas da revolta social, é rechaçada em referendo por mais 60% dos votos.
E agora, em maio de 2023, menos de quatro anos após a revolta, se elege o Conselho Constitucional, uma nova constituinte com clara maioria não só de direita, mas de extrema direita. O que gerou essa reviravolta no país em tão pouco tempo?
Fernando Atria: essa é uma situação que ainda será analisada e refletida aqui no Chile durante muito tempo. Talvez seja difícil de responder isso agora, quando as coisas ainda estão acontecendo. Acho que aquilo que se manifestou no Chile em 2019 foi uma força popular impulsionada por um sentimento de rejeição à ordem estabelecida. Esse momento de negação teve um efeito brutal, porque forçou a abertura de um processo constituinte.
Porém, era um movimento que tinha muito mais clareza sobre suas queixas que sobre suas demandas. Era claro o que as pessoas não queriam mais, mas não tanto o que elas queriam em troca. Isso explica, por exemplo, porque os partidos políticos identificados com aquela ordem rechaçada tiveram um resultado tão ruim na primeira eleição constituinte.
O primeiro processo constituinte foi uma tentativa de conduzir essa energia negativa a algo positivo, a afirmação de uma nova Constituição. Nessa primeira constituinte, estavam representados não só os partidos políticos como também muitos líderes de movimentos sociais, aqueles que se sentiam como “os que sempre foram excluídos”, e isso levou que o texto buscasse reivindicar mais as demandas desses grupos, e isso consistia, na lógica que se assentou durante aquele processo, em excluir “os que sempre estavam incluídos”.
Creio que essa decisão foi equivocada, porque levou muitos setores sociais a desconfiar daquela proposta constitucional, porque os “sempre incluídos” não são apenas os representantes do poder econômico, mas também boa parte da classe acadêmica, os formadores de opinião e algumas lideranças sociais e comunitárias que não eram progressistas. Esses setores formaram uma ampla aliança em torno da extrema direita, que soube captar os anseios desse grupo que estava contra o projeto, incluindo até mesmo setores ligados aos partidos progressistas mais tradicionais, que sentiam que estavam tendo uma derrota não só política como também cultural, devido ao protagonismo de lideranças dos movimentos sociais naquele processo.
Por tudo isso, tivemos o resultado negativo no plebiscito que rechaçou aquele primeiro texto constitucional.
Daí surgiu essa nova onda favorável à extrema direita.
Sim, mas é importante ressaltar que aquele resultado não mudou a alta rejeição à Constituição de 1980, algo que já estava estabelecido desde a revolta social. Então, criou-se um problema, porque o texto juridicamente vigente ainda era aquele que estava deslegitimado pelo povo.
Para solucionar isso, se lançou um novo processo constituinte, que foi desenhado para estar muito mais sob o controle dos partidos políticos tradicionais. Antes havia uma Convenção Constitucional de 150 membros dos quais havia ampla representação de líderes de movimentos sociais e vagas reservadas aos povos originários.
Agora, temos um Conselho Constitucional composto por 50 pessoas e esse órgão não vai começar seu trabalho do zero, como naquele primeiro processo. Eles receberão um texto já preparado por uma “comissão de especialistas” que foi criada pelo Congresso, cuja visão ideológica se adequou à correlação de forças dentro do atual Legislativo.
Portanto, este novo processo estará muito mais restrito, porque além de trabalhar em cima de um texto já pré-aprovado, essa atuação deverá estar sujeita a um órgão revisor, que também nomeado pelo Congresso, que se encarregará de impedir que o Conselho tente evadir os conteúdos pré-estabelecidos.
Mas esse Conselho, com maioria de ultradireita, pode aproveitar esse sistema para fazer um texto muito mais de acordo com as suas ideias, mesmo com todas essas restrições?
Nesse Conselho Constitucional de 50 pessoas, 23 são representantes do Partido Republicano, que é a extrema direita aqui do Chile. Para que o público brasileiro entenda, é uma força política muito similar àquela que estava no poder no Brasil junto com Jair Bolsonaro.
Inclusive, o presidenciável desse partido nas últimas eleições chilenas [em 2021], José Antonio Kast, usou o apoio manifestado abertamente pelo Bolsonaro em sua campanha.
Exato. Há muitos reconhecimentos recíprocos entre Kast e Bolsonaro. A questão é que, com esses 23 representantes, o Partido Republicano sozinho tem os votos suficientes para vetar qualquer conteúdo no texto final. Além disso, somando os votos da direita tradicional, que elegeu menos representantes, apenas 11, mas juntas, a direita tradicional e a extrema direita possuem maioria para aprovar todos os artigos da nova Constituição sem precisar negociar com os demais setores.
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Segundo Fernando Atria, maioria da sociedade chilena continua sendo a favor de abandonar a Constituição de Pinochet
Esse cenário é o mais provável? É possível imaginar que o processo possa ser diferente disso?
O que pode mudar as coisas é o fato de que este Conselho conta com a experiência do que já aconteceu durante o processo anterior. Uma das razões pelas quais a primeira proposta constitucional foi rechaçada foi o fato de que boa parte dos constituintes daquele então nunca imaginaram que aquele texto poderia terminar sendo rejeitado.
O fato de que já houve um texto derrotado em referendo faz com que os membros do Conselho estejam mais cientes de que isso é uma possibilidade, e que, portanto, precisam produzir uma proposta que não termine como a anterior. Talvez isso faça com que eles entendam que é preciso se abrir para a possibilidade de um texto mais transversal. Isso numa visão otimista.
Claro que não podemos ignorar a hipótese de que o Partido Republicano decida impor sua hegemonia, considerando que chegou a essa posição de poder pelo sucesso do seu discurso e que precisa ser fiel a ele em seu atuar, sem ceder aos demais setores, e eles estão em condições de impor essa maioria.
Que conteúdo podemos esperar dessa constituinte então? Como a minoria de esquerda deverá atuar nesse cenário para obter algumas vitórias?
Essa nova proposta certamente será muito mais parecida com a atual Carta Magna do que a proposta que foi rechaçada em 2022. Eu não tenho dúvidas de que algumas partes do texto da atual Constituição serão exatamente iguais na proposta que o Conselho irá apresentar.
Creio que o melhor cenário possível é que essa nova proposta constitucional que, mesmo que não contenha as principais demandas da revolta social de 2019, ao menos elimine alguns dos mecanismos dessa atual Constituição, que foram os que impediram a transformação do modelo neoliberal no Chile. Mecanismos que estabeleciam um quórum muito alto para poder aprovar novas leis e reformas constitucionais.
O melhor cenário para aqueles que acreditam na necessidade de uma transformação no Chile não é que esta proposta traga essa transformação, mas sim que crie uma institucionalidade política menos amarrada, deixando mais espaço para que, através da política, possam ser feitas mudanças no futuro.
Você acha que o governo do presidente Gabriel Boric foi em parte responsável pelo resultado do referendo que rechaçou a primeira proposta constitucional?
O governo do Boric não teve muita incidência no processo anterior em si. Primeiro porque ele assumiu o poder em março de 2022, então ele acompanhou somente os últimos três meses de trabalho da Convenção Constitucional. Os primeiros nove meses aconteceram durante o governo anterior – do presidente de direita Sebastián Piñera.
Além disso, dentro daquela Convenção de 150 membros, a Frente Ampla e o Partido Comunista, que são a base do atual governo, tinham uma maioria, mas não igual ao Partido Republicano tem nesse atual Conselho. Não era uma maioria capaz de aprovar tudo e precisou negociar não só com os representantes de partidos tradicionais, de esquerda e de direita, mas também com líderes de movimentos sociais, com quem muitas vezes tinham sintonia ideológica, mas que eram pessoas que atuavam por uma lógica diferente dos paradigmas institucionais.
Mas o governo de Boric assumiu sim, durante a campanha do referendo de 2022, uma clara postura de apoio à opção de aprovar o texto constitucional, e há quem diga que o fato de ser um governo com baixa aprovação nas pesquisas, isso pode ter influenciado no resultado. Pessoalmente, eu acho que o apoio do presidente era inevitável, porque ele foi uma das figuras que liderou o acordo que gerou o processo constituinte, então se ele não fizesse esse gesto de apoiar o texto constitucional, passaria uma imagem ruim para o próprio governo e para a campanha pela aprovação da proposta.
Durante este novo processo, a partir de hoje e até o próximo plebiscito, em dezembro de 2023, qual você acha que deveria ser a postura do governo?
O mais provável é que o governo adote uma posição de se manter afastado do processo, deixando que o Conselho trabalhe sem interferências. A questão vai ser quando o presidente se veja, novamente, chamado a tomar uma posição com relação ao referendo de dezembro. Uma posição contra ou a favor de nova proposta constitucional.
Não podemos antecipar qual será essa postura, já que precisamos saber o conteúdo dessa proposta. Mas certamente esse é o grande dilema para o qual o presidente Boric terá que se preparar.
Fazendo um exercício de futurologia: o que aconteceria se, nesse novo referendo, a população decidir novamente rechaçar a proposta? Haveria uma terceira tentativa ou o processo constituinte fracassaria definitivamente?
O Chile está vivendo atualmente sob um marco constitucional claramente deslegitimado, mas juridicamente vigente. A base dessa ilegitimidade é o fato de que a sociedade não se sente representada pela institucionalidade, e isso continuaria se o referendo de dezembro rechaçar a segunda proposta constitucional.
Pois seria mantida essa situação, que não é uma questão irrelevante politicamente, porque isso significa que o marco legal que continuará ordenando o país não é reconhecido por todos os setores sociais e políticos desse país.
Isso pode levar a uma crise política mais profunda no Chile. Provavelmente, surgirão vozes dizendo que, como alguns mecanismos da Constituição de 1980 já foram modificados pelo Congresso Nacional durante o processo, o melhor será seguir avançando nesse processo de reformas constitucionais pontuais.
Mas eu não me atrevo a dizer muito mais do que esta análise das variáveis políticas que podem acontecer. As variáveis sociais, que também são importantes para saber o que vai acontecer no caso de uma nova rejeição, eu não consigo prever.