Em poucas semanas a comunidade internacional se mobilizou em peso para ajudar na reconstrução da Faixa de Gaza, destruída pela ofensiva militar israelense em dezembro e janeiro passados, onde mais de 1,4 mil pessoas morreram. Na época, um grupo de países encaminhou ao todo 151 milhões de dólares para a UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos) – incluindo o Brasil, que deu 10 milhões de dólares. No entanto, o organismo ainda não conseguiu utilizar os fundos, pois Israel não permite a entrada de material de construção ou de dinheiro vivo no território.
Quem faz a denúncia é a comissária-geral da UNRWA, Karen Koning AbuZayd, que mora e trabalha em Gaza desde 2000. A funcionária da ONU (Organização nas Nações Unidas) concedeu entrevista ao Opera Mundi durante a 17ª edição do Seminário Internacional de Mídia sobre a Paz no Oriente Médio, realizada ontem (28), no Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro.
Qual é a situação hoje em Gaza, seis meses após o fim dos bombardeios?
Basicamente, nada mudou. Recebemos muitas doações, mas não podemos usar o capital nem diretamente, pois Israel proíbe a entrada de dinheiro na Faixa de Gaza, nem indiretamente, já que o país não permite a importação de materiais de construção. Logo, começamos a implementar programas de criação de empregos devido ao alto índice de desemprego, que é de 70%, um recorde mundial.
A situação é muito precária na Faixa de Gaza: mais de 3 mil casas foram totalmente destruídas e 58 mil estão muito danificadas. A maioria das pessoas mora em prédios semi-destruídos e mesmo assim, Israel não deixa passar carregamentos de cimento ou vidro. É preciso ter em conta que não há quase nenhum prédio com vidros nas janelas, sejam casas, administrações ou hospitais. Até nas escolas da ONU tivemos de colocar plástico nas janelas para proteger os alunos da chuva e do frio. Também não temos papel, o que dificulta a atividades educativas. Outro problema grave é a questão do lixo e do esgoto. Não há estações de tratamento suficientes e a saúde das pessoas está sempre ameaçada.
Qual é o critério usado por Israel para a liberação de importações?
As autoridades israelenses autorizaram apenas uma lista muito restrita de remédios e alimentos. Para o resto, a decisão é totalmente arbitrária, e não temos acesso a uma lista clara. Além dos materiais de construção, eles negam a entrada do tudo o que consideram como 'luxo', como itens básicos para a higiene. Depois de muita negociação, conseguimos a autorização para a entrada de xampu, mas não de condicionador. Tentamos resolver o problema enviando xampus 'dois em um', mas o Exército bloqueou a carga. É uma humilhação constante para o povo de Gaza.
Até quando conseguimos uma autorização, importar é complicado, pois um caminhão de Israel não pode entrar na Faixa de Gaza e vice-versa. Ele deve chegar à fronteira, descarregar a mercadoria e então, outro veículo em Gaza ser carregado.
Qual é o objetivo do embargo?
O argumento é como sempre a segurança. Israel tem medo que o Hamas, que chefia as autoridades políticas na Faixa de Gaza, aproveite estes materiais para, por exemplo, construir abrigos antiaéreos. Ou simplesmente, que eles usem a ajuda para aparecerem como os únicos que trabalham na sobrevivência da população. Quero reafirmar aqui que isso não faz sentido: a UNRWA não colabora com o Hamas. Como em todos os outros lugares do mundo onde há refugiados, nosso trabalho é paralelo às atividades governamentais.
Em compensação, acho que o bloqueio fortalece a economia paralela, concentrada nas mãos do Hamas. Estou falando dos mais de mil túneis ligados ao Egito e por onde transitam produtos vendidos por preços abusivos, já que não há dinheiro circulando.
Como é o relacionamento da UNRWA com o Hamas e a ANP (Autoridade Nacional Palestina)?
Não tratamos diretamente com o Hamas, por decisão do secretário-geral da ONU. Apenas nosso chefe de segurança comparece a encontros para que o nosso staff não tenha problemas. Funcionários e voluntários não têm mais medo de seqüestros, como no passado. O pessoal do Hamas entendeu que estamos ajudando os refugiados e que 70% da população de Gaza depende de nós.
Em relação à ANP, com quem trabalhamos na Cisjordânia, a situação é sensível, pois alguns deles acreditam que estamos ajudando o Hamas. E por outro lado, outros pensam que somos uma alternativa às autoridades de Gaza, ou seja, ao Hamas. É preciso muita diplomacia.
Qual é o impacto desta situação nas negociações para a paz?
Não estamos frente a um conflito equilibrado. De um lado, temos um Estado com poder militar e do outro, cidadãos exilados, marcados por privações econômicas, violações de direitos humanos e agora, divisões internas. A assimetria entre os dois lados está aumentando com a barreira construída na Cisjordânia e o regime de isolamento total que sofre Gaza há 26 meses.
Deve-se levar em conta que são 1,5 milhões de pessoas que passaram a depender quase que exclusivamente de ajuda humanitária. Não há mais nenhuma atividade econômica privada. Há dez anos, a Faixa de Gaza tinha um nível de desenvolvimento similar a países como Marrocos ou Tunísia. Agora, chegou ao patamar do Chade, ou seja, está entre as nações mais pobres do mundo. Os jovens estão com problemas de saúde e desnutrição, não vão à escola. A frustração e o desespero são enormes. É cada vez mais difícil para eles acreditarem na criação de um Estado autônomo e viável economicamente. Isso beneficia os mais radicais e prejudica os que querem a paz.
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