A deputada federal Sahra Wagenknecht, uma das figuras mais proeminentes e controversas da esquerda alemã anunciou nesta segunda-feira (23/10) que está deixando a legenda oposicionista A Esquerda (Die Linke, em alemão) para fundar uma nova agremiação, que deve cortejar tanto eleitores da esquerda quanto da direita.
O plano, segundo observadores, deve enfraquecer ainda mais A Esquerda, que sofreu um encolhimento na última eleição nacional, e também tem potencial de tirar votos da ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD), legenda oposicionista que nos últimos anos cresceu entre eleitores insatisfeitos, especialmente no leste do país.
Há anos em conflito com vários de seus agora antigos correligionários na esquerda por causa de suas posições heterodoxas, Wagenknecht é conhecida por mesclar bandeiras econômicas típicas da esquerda com posições mais conservadores em temas sociais, como oposição à imigração ilegal e ao “identitarismo” – que, na sua visão, enfraquece a coesão social e o senso de comunidade.
Mais recentemente, ela se notabilizou pela sua oposição ao auxílio fornecido pelo governo alemão à Ucrânia, às sanções contra a Rússia e ao que ela chama de “ecoativismo cego”. Segundo ela, tudo isso vem agravando a crise do custo de vida na Alemanha.
“Decidimos criar um novo partido, porque estamos convencidos de que as coisas não podem continuar como estão”, disse Wagenknecht, detalhando que a nova legenda deve ser inicialmente formada a partir de uma nova associação, chamada BSW ou Bündnis Sahra Wagenknecht” (Aliança Sahra Wagenknecht), que será responsável por coletar doações, que, posteriormente, serão usadas para estruturar o novo partido, a tempo das próximas eleições europeias, em junho de 2024.
Enfraquecimento da esquerda
Wagenknecht não está deixando A Esquerda sozinha. Outros nove deputados devem acompanhá-la, enfraquecendo ainda mais a legenda, formada em 2007 por remanescentes do antigo partido comunista da Alemanha Oriental e uma ala dissidente mais à esquerda do Partido Social-Democrata (SPD), a atual sigla do chanceler federal Olaf Schoz.
Na última eleição nacional, em 2021, A Esquerda somou apenas 38 deputados e por pouco não ficou fora do Parlamento (Bundestag), quase batendo na clausula de barreira de 5% dos votos. Com a saída de 10 deputados, incluindo Wagenknecht, a bancada da legenda A Esquerda no Parlamento deve perder seu status de grupo parlamentar – e consequentemente recursos federais para seu funcionamento.
Nascida na antiga Alemanha Oriental, de uma mãe alemã e um pai iraniano, Wagenknecht, de 54 anos, havia sido justamente uma das fundadoras do partido A Esquerda, ao lado do seu atual marido, o ex-ministro Oskar Lafontaine, outro político conhecido por posições heterodoxas e pela dissidência partidária, e que rompeu com o SPD.
Críticas a Scholz
Nesta segunda-feira, durante o anúncio dos seus planos, Wagenknecht atacou o governo de centro-esquerda de Olaf Scholz, cujo partido social-democrata é aliado dos verdes e dos liberais.
“A República Federal da Alemanha tem o pior governo de sua história, que age de forma incompetente, ou sem rumo”, afirmou a deputada, voltando a criticar, entre outras coisas, os envios de armas para a Ucrânia, as sanções econômicas contra Moscou, que, segundo ela, privam a Alemanha de energia barata, crucial para sua indústria focada em exportações.
“É claro que isso preocupa muitas pessoas, que já não sabem em quem votar, ou que votam na extrema direita por raiva, ou desespero”, argumentou.
Twitter/Janine Wissler
Evento sindcal que legenda oposicionista A Esquerda esteve presente
A deputada também voltou a criticar a agenda verde do governo face à mudança climática, também disse ser a favor da redução da entrada de migrantes, pediu a “manutenção das nossas forças econômicas”, mais justiça social, investimentos em infraestrutura e uma “política externa baseada na paz”.
“Um retorno à razão”, resumiu Wagenknecht.
Após o anúncio, o líder do grupo parlamentar do partido A Esquerda, Dietmar Bartsch, criticou os planos de Sahra Wagenknecht e a saída dos outros nove deputados como “irresponsável e inaceitável”.
Impacto na ultradireita
“Ela [Wagenknecht] quer uma AfD de esquerda”, apontou o tabloide conservador Bild, em referência à AfD, que no último ano conseguiu avançar nas pesquisas nacionais ao cortejar eleitores insastisfeitos com o governo Scholz. A AfD também tem sua principal base de apoio no leste alemão, que também possui redutos eleitorais do partido A Esquerda.
Vários analistas especularam que a posição política única de Wagenknecht – de esquerda em questões econômicas, mas mais próxima da ultradireita em questões como a imigração – pode representar um novo tipo de competição para a AfD no ano que vem, quando estão previstas quatro eleições estaduais no leste do país.
Sondagens indicam potencial para a iniciativa lançada por Wagenknecht. Uma pesquisa de opinião divulgada na segunda-feira pelo instituto de pesquisa Civey apontou que 20% dos alemães “imaginam, em princípio”, votar em um hipotético partido liderado pela política de esquerda. No leste da Alemanha, esse número chegou a 32%. A pesquisa também indicou que tanto apoiadores do partido A Esquerda quanto da AfD estão entre os eleitores mais abertos a votar nela.
Wagenknecht, que regularmente participa de programas de entrevistas sobre política na Alemanha, teve seu perfil público ampliado no ano passado, quando se tornou líder de uma “campanha de paz” para exigir que o Ocidente pare de armar a Ucrânia, que atualmente se defende de uma guerra de agressão lançada pela Rússia.
Em outras ocasiões, Wagenknecht criticou a liderança de seu próprio partido por adotar posições de “esquerdistas de estilo de vida”, cujas políticas de inclusão de minorias, segundo ela, estavam afastando eleitores do partido A Esquerda, especialmente as classes trabalhadoras do leste da Alemanha.
Wagenknecht tornou-se particularmente popular no leste da Alemanha. Uma pesquisa do instituto Insa, realizada na Turíngia em julho, apontou que o partido de Wagenknecht, ainda inexistente, poderia obter até 25% dos votos no estado do leste alemão, três pontos à frente do AfD.
Em fevereiro, o líder da AfD da Turíngia, o radical Björn Höcke, que já foi diversas vezes acusado de expressar ideias neonazistas, convidou Wagenknecht a se filiar ao partido de ultradireita. O convite não foi aceito, mas não deixou de exemplificar uma certa convergência de ideias entre dois políticos de oposição tão diferentes.
De acordo com o deputado de esquerda Christian Leye, que também está deixando a legenda, a AfD teme Wagenknecht mais do que qualquer outra pessoa no cenário político alemão.
“Muitas pessoas sentem, com razão, que o governo não está fazendo políticas para os trabalhadores: tudo está ficando cada vez mais caro, as políticas de guerra e sanções alimentaram a inflação, e a infraestrutura pública está em péssimo estado”, disse Leye à DW. “Para todos aqueles que estão insatisfeitos com razão, Sahra Wagenknecht pode se tornar uma opção de política social e de paz. E isso é extremamente necessário neste momento, precisamente porque não podemos deixar o campo aberto para um partido como a AfD.”