“Lutaremos nas ruas de Nairóbi por nossos irmãos e irmãs no Haiti”, disse Booker Ngesa Omole, secretário nacional de organização do Partido Comunista do Quênia (CPK), ao Peoples Dispatch. Ele fez essa declaração em resposta à possibilidade de o governo do Quênia enviar sua polícia para a nação caribenha. Apesar da proibição pelo Tribunal Superior, o presidente Willian Ruto afirmou em 30 de janeiro que “os policiais quenianos podem ser enviados ao Haiti já na próxima semana”, enquanto estava em Roma, buscando investidores europeus na Cúpula Itália-África.
“A decisão de qualquer órgão estatal ou oficial do estado de enviar policiais ao Haiti contraria a constituição e a lei, e é, portanto, inconstitucional, ilegal e inválido”, conforme determinado pelo Tribunal Superior do Quênia em 26 de janeiro. Essa decisão representa um revés para a intervenção planejada pelos Estados Unidos no Haiti, na qual o Quênia contribuiria com mil policiais para liderar a missão. O objetivo declarado dessa missão é restaurar a segurança, combatendo as gangues no país.
Após o assassinato do então presidente Jovenel Moïse em junho de 2021, o Haiti, já desestabilizado por três intervenções estrangeiras nas últimas três décadas, mergulhou em uma anarquia marcada pela violência das gangues. Relatos indicam que milhares de pessoas foram mortas ou sequestradas pelas gangues, levando outras centenas de milhares a fugirem no último ano, estabelecendo um novo recorde de crimes violentos.
A Jamaica também enfrenta uma taxa comparável de violência de gangues. Sua taxa de homicídios “tem sido uma das mais altas no Hemisfério Ocidental por vários anos”, os EUA disseram em um comunicado de viagem em 23 de janeiro. “Crimes violentos, como invasões de domicílios, assaltos à mão armada, agressões sexuais e homicídios, são comuns”, explicou o país. Apesar disso, a Jamaica não está sujeita à intervenção estrangeira e, na verdade, contribuirá com policiais para a missão financiada pelos EUA visando restaurar a segurança no Haiti.
Outros 150 policiais também foram prometidos pelas Bahamas, onde a embaixada dos Estados Unidos emitiu um alerta de segurança, avisando sobre a “violência de gangues” e os “assassinatos” ocorrendo “a qualquer hora, inclusive à luz do dia nas ruas”. As pequenas ilhas de Antígua e Barbuda, cujo governo prometeu contribuir com uma força policial para essa missão, também enfrentam violência de gangues. Essa implantação menor no Caribe visa complementar o destaque de mais de mil policiais quenianos, que Booker descreveu como uma “força extremamente não profissional, frequentemente usada por líderes políticos para realizar atividades criminosas, incluindo assassinatos políticos”.
O dirigente comunista alegou que o “maior assassino de jovens no Quênia não é a malária ou qualquer outra doença, mas a polícia. Segundo ele, todos os dias continuamos registrando o assassinato de vários jovens pobres pela polícia queniana nos assentamentos informais de Nairóbi. É esse tipo de polícia que os EUA escolheram para liderar sua intervenção no Haiti”.
Com abstenções da Rússia e da China, o Conselho de Segurança das Nações Unidas autorizou essa missão com uma votação em 2 de outubro de 2023. No entanto, não se trata de uma missão oficial de paz da ONU. Ela foi batizada como “Missão de Apoio à Segurança Multinacional (MSS)”, um mecanismo inovador, conforme reconhecido pelos EUA, que estão financiando na maioria a missão e já prometeram 200 milhões de dólares.
Booker argumentou que, se a polícia queniana estivesse realmente comprometida em eliminar as gangues, teria feito isso primeiro no Quênia. Em vez disso, ele afirma que a polícia tem colaborado com gangues que têm conexões com líderes políticos. “Existe apenas uma linha tênue entre a polícia queniana e as gangues criminosas que continuam a aterrorizar os moradores da província nordeste ou dos bairros pobres em Nairóbi”.
Essa linha é ainda mais tênue no Haiti, onde muitos dos atuais criminosos são ex-membros da Polícia Nacional Haitiana, cuja missão liderada pelos Estados Unidos e pelo Quênia visa ajudar a restaurar a lei e a ordem. Essa coligação “acabará apenas por cometer mais crimes no Haiti, aumentando a violência que o povo já está sofrendo”, argumentou Booker.
O secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, afirmou em setembro passado que “esta [missão] respeitará totalmente os direitos humanos de todos os civis no Haiti”. No entanto, os haitianos não estão convencidos de que “esta” intervenção estrangeira específica respeitará os direitos humanos, ao contrário das três anteriores nas últimas três décadas, ou das “41 nos últimos 108 anos”, conforme relatado pela FP. Percebendo essas intervenções pelos EUA e seus representantes como a raiz da crise atual, os haitianos organizaram várias rodadas de protestos desde que o presidente interino Ariel Henry pediu intervenção estrangeira em outubro de 2022.
Henry não é um representante eleito dos haitianos, nem foi escolhido pelos representantes eleitos. Ele foi nomeado para o segundo cargo mais alto no governo, o de primeiro-ministro, pelo então presidente Jovenel Moïse em meados de 2021, apenas dois dias antes de seu assassinato. Henry, que era o principal suspeito do assassinato, foi orientado a assumir o poder pelo chamado Grupo Central.
Ao lado dos EUA, esse grupo é composto por representantes da França, Canadá, Alemanha, Espanha, Brasil, ONU, Organização dos Estados Americanos (OEA) e União Europeia (UE). Henry é, na verdade, “um fantoche nomeado pelo ocidente”, insiste Booker. Quando a crise humanitária, que piorou desde que ele assumiu o poder, provocou protestos pedindo sua renúncia, Henry pediu uma intervenção estrangeira para “libertar” o Haiti das gangues, que estão inundadas de armas e munições dos EUA.
Os Estados Unidos primeiro pressionaram o Canadá e, em seguida, o Brasil, para liderar a intervenção. Ambos recusaram. A mais de 12.000 km de distância do Haiti, o país da África Oriental do Quênia, que tem sido coadjuvante dos interesses dos EUA desde que Ruto assumiu a presidência no final de 2022, se apressou em se voluntariar, pedindo 237,55 milhões de dólares em troca.
Paul Kagame/Flickr
Presidente Willian Ruto afirmou em 30 de janeiro que “ policiais quenianos podem ser enviados ao Haiti já na próxima semana”
Ruto, que havia “cunhado o termo “diplomacia econômica”, que significa “diplomacia sem princípios”, está vendendo a política externa do Quênia para o maior licitante, criticou Booker. Com essa abordagem, Ruto reduziu o governo do Quênia a uma “marionete americana”. Pouco após chegar ao poder, Ruto apressou-se em rescindir o reconhecimento da Sahara Ocidental pelo Quênia e a legitimar a ocupação do país por Marrocos, apenas para retroceder a uma reação negativa.
Incentivado pelos EUA e pelo FMI, Ruto introduziu a Lei de Finanças de 2023 no meio do ano passado, o que agravou a crise do custo de vida, mas foi elogiado pelo embaixador dos EUA no Quênia por proporcionar aos americanos “segurança ao investir no país”. As “reformas” provocaram protestos em massa contra o governo de Ruto, que liberou a polícia que matou dezenas e prendeu centenas de pessoas em julho de 2023. Quando o Tribunal Superior declarou partes da Lei de Finanças como inconstitucionais, “o partido governante até patrocinou protestos contra o judiciário”, lembrou Booker.
‘Uma continuação da política’
“Ruto até defendeu o genocídio em Gaza, afirmando inequivocamente que Israel tem o direito à autodefesa, mesmo que o público queniano veja um massivo genocídio sendo apoiado por seu próprio governo”, disse Booker. A oferta de Ruto de enviar a polícia queniana para cumprir os desejos dos EUA e seus aliados no Haiti é uma continuação de sua política de apaziguar “seus mestres ocidentais”, argumentou Booker.
No entanto, o Conselho de Segurança Nacional (NSC), liderado pelo presidente Ruto, não tem autoridade para implantar a força policial fora do país, conforme determinado pelo Tribunal Superior do Quênia em 26 de janeiro. O Artigo 240 da Constituição do Quênia, que estabeleceu o NSC, permite apenas que o conselho implante as forças armadas fora do Quênia, não a polícia.
O juiz acrescentou que a polícia só pode ser implantada conforme a Lei de Serviço de Polícia Nacional, que exige “arranjos recíprocos” com o país que hospeda o destacamento estrangeiro. “Não há acordo recíproco entre o Quênia e o Haiti e, por esse motivo, não pode haver implantação de policiais para esse país”, afirma a sentença.
Ruto tranquilizou os repórteres em Roma de que o requisito de “arranjos recíprocos” será rapidamente atendido e a polícia será implantada nos próximos dias, “se toda a papelada for feita entre o Quênia e o Haiti na rota bilateral sugerida pelo tribunal”.
No entanto, resolver a “papelada” pode ser fácil para o presidente não eleito e dirigido por estrangeiros do Haiti, que não precisa garantir a confiança dos parlamentares, cujos mandatos expiraram, já que ele se recusou a realizar eleições parlamentares. Resta saber se o Supremo Tribunal do Quênia aceitará a “papelada” com um governo de legitimidade tão questionável como prova suficiente de um “acordo recíproco” com o Haiti.
Independentemente da posição do Tribunal Superior, “a classe dominante do Quênia, liderada pela administração de Ruto, está determinada a seguir seu próprio caminho, mesmo que isso signifique violar o judiciário e a constituição”, afirma Booker.
Apenas dias após o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovar essa missão em outubro passado, o Tribunal Superior do Quênia já havia emitido uma “ordem conservatória” contra o envio de policiais para o Haiti, enquanto considerava o caso apresentado contra ele pelo the Third Way Alliance (Aliança da Terceira Via), que Booker descreve como um “partido irmão”. Apesar da ordem, o Parlamento do Quênia aprovou o envio apenas um mês depois, em novembro. O Parlamento não goza da confiança do povo, argumenta Booker, desconsiderando a legitimidade do aval dado ao envio.
“Toda vez que o presidente quer aprovar uma lei, ele convida os parlamentares para a casa do governo e lhes entrega envelopes de dinheiro, e a maioria deles se alinha. Mesmo os parlamentares de partidos de oposição, que se posicionaram contra esse envio, se abstiveram de votar ou não compareceram à sessão. O partido governante consegue aprovar qualquer coisa neste parlamento”, disse ele.
Horas após a aprovação do parlamento, o Tribunal Superior estendeu o bloqueio ao envio até sua decisão em 26 de janeiro. Sem esperar pela decisão, uma “conferência de pré-planejamento” foi realizada em Nairóbi, com representantes dos EUA, Quênia e Jamaica presentes.
O processo judicial pendente foi meramente “reconhecido” nesta conferência, enquanto Ruto foi “elogiado” por “garantir autorização do Gabinete e parlamentar para a implantação”, de acordo com um comunicado conjunto publicado no site do Departamento de Estado dos EUA. No início de janeiro, semanas antes da decisão, a formação das unidades policiais previstas para serem destacadas foi concluída.
“Lembramos a esses policiais que eles precisam estar preparados para pagar com suas vidas se permitirem que sejam usados por líderes políticos corruptos em benefício do imperialismo”, disse Booker. “Se eles acham que podem simplesmente entrar e atirar em alguns gângsteres, estão sendo ingênuos – eles não conhecem a história do Haiti de resistência ao imperialismo.”
(*) Tradução por Brasil de Fato