Lílian Celiberti, militante de esquerda uruguaia que em 1978 foi sequestrada em Porto Alegre por agentes do país vizinho e do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) gaúcho, conta em entrevista exclusiva a Opera Mundi os momentos que viveu nas mãos de Pedro Seelig, então chefe do aparelho estatal brasileiro de repressão, dentro de delegacia na capital do Rio Grande do Sul.
Na conversa, Celiberti destacou a importância da existência de uma justiça de transição, com a prisão dos militares envolvidos, principalmente neste momento em que é crescente o revisionismo sob o foco da direita. Confessou ainda que teve medo de ser morta e que o processo judicial que condenou seus sequestradores não chegasse ao fim.
Em 1978, a então militante residia no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, com os filhos Camilo, de sete anos, e Francesca, três anos, e Universindo Rodriguez Dias. Todos foram sequestrados após invasão do imóvel e levados de volta ao Uruguai em uma ação integrada por agentes da repressão brasileira e uruguaia, que depois ficou conhecida como Operação Condor.
Na semana passada, 44 anos depois de ocorrido o crime, a Justiça uruguaia determinou a prisão de dois militares do Exército do Uruguai, acusados desse sequestro e de terem praticado abusos físicos contra prisioneiros políticos.
A militante classifica a prisão dos coronéis Carlos Alberto Rossel Argimon e Glauco José Yannone de Leon como exemplo de uma Justiça que continua trabalhando sobre casos pendentes da ditadura militar. Em tom de desabafo, disse que chegou a imaginar que nunca iria ver o momento de condenação e prisão de seus sequestradores.
Além de Argimon e Yannone, também são réus nesse processo o coronel Eduardo Ferro, preso desde 2021, e o capitão José Bassani, que responde ao processo em liberdade. No lado brasileiro, participaram da ação o ex-jogador de futebol Orandir Portassi Lucas, conhecido pelo apelido de Didi Pedalada, além de João Augusto Rosa e Janito Keppler, todos agentes do DOPS.
Celiberti, hoje com 73 anos de idade, mora em Montevideo, capital uruguaia, e está aposentada. Tem a sua agenda cheia devido ao desenvolvimento de ações em defesa de uma pauta cidadã e progressista. Ela destaca o trabalho da Promotoria Pública do país nas investigações dos crimes praticados durante a ditadura e a capacidade dos promotores de superar o que chamou de artimanhas dos defensores dos militares que atuaram na repressão.
A Opera Mundi contou ainda que, na ação judicial sobre o seu sequestro, de seus dois filhos e de Universindo, os militares uruguaios mentiram “descaradamente” e disseram que a responsabilidade pelo ocorrido era das forças brasileiras.
“Nos prenderam com a presença do DOPS do Brasil, porque de fato o Brasil usou o DOPS de Porto Alegre, o pôs como aparato militar-policial nos lugares de detenção, tortura, interrogatório e também o pessoal para fazer isso, e os militares uruguaios estavam cumprindo um acordo que haviam firmado para essa atividade”, conta.
A denúncia contra os militares uruguaios e agentes brasileiros foi realizada pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (MJDH-RS), em 1984.
Veja abaixo a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: qual a importância e como a senhora avalia a prisão dos dois militares que participaram de seu sequestro em Porto Alegre em 1978?
Lílian Celiberti: creio que é super importante, num momento em que os debates sobre as ditaduras voltam a ser colocados debaixo do tapete e em que há posturas revisionistas focadas sob a ótica da direita, que se volte a falar dos dois militares que participaram do sequestro em Porto Alegre, em 1978. Há mais dois militares envolvidos nesta questão, e um deles já preso por envolvimento em outro caso.
Essas duas prisões recentes refletem a existência da Justiça de Transição e podem servir de exemplo para outros casos com crime semelhante tanto no Uruguai como em outros países, como o Brasil?
Realmente, a importância dessa detenção é que a Justiça continua trabalhando sobre casos ainda pendentes, que são muitos; principalmente a (ação da) Promotoria (Pública do Uruguai) sobre um passado recente, que tem a tarefa específica de investigar e levar adiante essas investigações. Está trabalhando com muita seriedade na recopilação de informações. Mas o que dilata os processamentos é a artimanha que os advogados dos militares usam continuamente.
A senhora pode contar como foi o momento do sequestro e o que se passou depois?
Em 1978 fui sequestrada, eu primeiro, em Porto Alegre, na rodoviária, por uma equipe do DOPS de Porto Alegre e militares uruguaios que estavam coordenando ações, de forma clandestina na cidade, com o aval de pelo menos um setor importante das forças repressivas.
Depois foi que nos levaram ao Uruguai e daí de novo ao Brasil. E estive (sequestrada) uma semana ou mais até que meus companheiros localizaram o (jornalista) Luiz Cláudio Cunha, não porque o conhecesse, mas porque ele era redator da revista Veja e chegou à minha casa na hora que, supostamente, ia ter uma reunião. Ele foi testemunha do sequestro.
Reprodução/ PIT-CNT
Celiberti destacou a importância da existência de uma justiça que investigue e prende militares envolvidos nos crimes ditatoriais
(Na época do sequestro, parte da imprensa brasileira publicou reportagens que denunciavam o sequestro dos uruguaios em Porto Alegre. Contudo, nem o governo brasileiro, que vivia período de distensão ampla e gradual, nem a Polícia Federal classificaram o caso como sequestro. As apurações dos jornalistas brasileiros Luiz Cláudio Cunha e J. B. Scalco identificaram ainda a participação de outros dois agentes do DOPS gaúcho no sequestro, além de Pedro Seelig e Didi Pedalada: João Augusto Rosa e Janito Keppler).
Por que a Justiça uruguaia consegue punir os responsáveis pelos crimes cometidos durante a ditadura tanto tempo depois?
A Justiça uruguaia pode sancionar os responsáveis pelos crimes cometidos porque existe uma sanção da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Uruguai pelo caso da esposa do filho de Juan Gelman, que foi levado aos tribunais, e então se considera que os delitos de lesa humanidade não prescrevem.
(Gelman, poeta argentino falecido em 2014, foi militante dos direitos humanos e lutou por justiça e memória. Durante a ditadura argentina teve o filho Marcelo Ariel, e a nora María Iruretagoyena, sequestrados e mortos. O corpo do rapaz só foi identificado em janeiro de 1990, estava dentro de um tonel de ferro cheio de cimento num rio na cidade de San Fernando, região metropolitana de Buenos Aires. Em 1998, Gelman descobriu que María havia sido levada ao Uruguai pela Operação Condor, onde deu à luz a uma menina no Hospital Militar de Montevideo. A neta de Gelman, Macarena, foi criada por uma família de um policial uruguaio, que manteve escondida a verdadeira identidade da menina. Avô e neta só se conheceram em 2000).
Como foi o posicionamento dos militares e agentes da repressão uruguaios durante o andamento do processo judicial?
Observando os processos, vemos que os militares mentem descaradamente a respeito de suas funções, e chegam a dizer que o sequestro, na verdade, não foi um sequestro e sim uma detenção, e uma detenção comandada em Porto Alegre pelas forças de segurança do Brasil, porque teríamos passaportes falsos, coisa que não é verdade, porque eu não tinha meu passaporte falso.
Eu tinha passaporte com meu nome e entrei no Brasil com esse passaporte. Então, na verdade, mentem descaradamente nos processos dizendo que a responsabilidade é das forças brasileiras que nos prenderam e que eles mesmos só foram (a Porto Alegre) levar atestados de antecedentes, como se isso fosse possível. Por sorte, a Justiça (uruguaia) não acreditou neles.
Qual foi seu maior medo enquanto esteve nas mãos dos agentes da repressão?
O maior temor que eu senti, desde o momento em que se anunciou o sequestro, foi justamente que nos trouxessem ao Uruguai e que desaparecêssemos como outros companheiros e companheiras na Argentina, detidos uruguaios na Argentina, e transladados ilegalmente ao Uruguai, como é o caso do segundo voo de militantes uruguaios que foram presos na Argentina e que, se supõe, foram trazidos ilegalmente e desapareceram. Então, na verdade, meu maior temor era que acontecesse isso, pela rapidez com que se precipitavam os fatos.
A cooperação de agentes da repressão no Brasil foi fundamental para a sua prisão e de Universindo?
Nos prenderam com a presença (de policiais) do DOPS do Brasil. Porque de fato o Brasil usou o DOPS de Porto Alegre, o pôs como aparato militar-policial nos lugares de detenção, tortura, interrogatório e também o pessoal para fazer isso. E os militares uruguaios estavam cumprindo um acordo que haviam firmado para essa atividade.
A senhora teve contato com os policiais brasileiros durante o sequestro? O que eles fizeram com vocês?
Durante o sequestro tive sim contato com os policiais brasileiros, até porque fui interrogada por eles, e com Pedro Seelig, que me levou à minha casa, onde sofri uma sessão de tortura na qual ele participou dentro da delegacia em Porto Alegre. E também na ratoeira que se montou na minha casa nos dias seguintes, em que voltaram a me levar.
(Houve contato direto com os agentes da repressão brasileiros) Quando voltaram a me levar ao Brasil, no momento após ter sido separada dos meus filhos, que foram levados a Montevidéu, e Universindo, que também foi levado para Montevidéu.
Como a senhora vê a interpretação judicial de todo esse processo e qual o caminho percorrido até se chegar à condenação e prisão dos envolvidos?
Na verdade, essa é uma interpretação da Justiça que significa o reconhecimento da violação dos direitos humanos como delitos de lesa humanidade que, na verdade, é um avanço da concepção e doutrina dos direitos humanos que surge em nível global e que, por isso, podem ser sancionados e também presos aqueles que participaram.
Eles apresentaram várias apelações, pensemos que essa causa foi iniciada em 1984, por Universindo e por mim, e que agora apresenta um processamento ou uma falha judicial. Nesse ínterim, passaram mil coisas, desde a aplicação da Lei de Caducidade da pretensão punitiva do Estado até a revisão das causas pendentes.
Depois foi encaminhada umas três vezes à Suprema Corte de Justiça e impugnada pelos advogados de defesa dos militares envolvidos, e finalmente se chegou até esta sanção (prisão dos militares) que eu nunca pensei que fôssemos chegar.