Na Amazônia, o verão é a estação chuvosa, a pior época do ano para Miguel Pontes. “Minha perna fica inchada, dói quando caminho”, queixa-se o camponês, que possui um pequeno lote de terra com maracujá, arroz e feijão preto. Quando o tempo fica nublado, a dor na perna o faz lembrar de um trágico episódio ocorrido 13 anos atrás.
Naquele 14 de abril de 1996, Miguel e cerca de 2 mil membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) saíram de Parauapebas em direção a Marabá para reivindicar alimentação. Após três dias de marcha, chegaram perto da pequena Eldorado dos Carajás, no trecho da rodovia PA-150, a principal do sudeste do Pará, conhecido como S, pela forma sinuosa da estrada.
“As autoridades se recusaram a negociar, então resolvemos ocupar a pista. Quando chegaram três ônibus da Polícia Militar do Pará, começaram a atirar no ar para nos intimidar. Ninguém pensou que iam nos matar”, conta Miguel Pontes.
As tropas não vacilaram. Dezenove pessoas foram mortas, três outras faleceram por causa das feridas, dezenas ficaram mutiladas. Miguel levou um tiro na perna. “Segui correndo até o mato, onde fiquei escondido”. A bala ficou alojada perto do joelho por três meses. “Os médicos falaram que não dava para fazer nada”.
Daí a dor que até hoje se manifesta quando o ar está úmido. Apesar de tudo, o militante do MST considera-se um homem de sorte. Sobreviveu, ganhou uma pensão vitalícia de um salário mínimo e está na expectativa de receber uma indenização de R$ 20 mil.
“A maioria das viúvas ainda não recebeu nada. Dezenove companheiros morreram e aqueles que ordenaram o massacre estão livres. Não tem justiça nessa região”, desabafa. Dois oficiais foram condenados, mas não foram presos.
O estado do Pará, cuja capital, Belém, recebe a partir de hoje (27) cerca de 120 mil pessoas para o Fórum Social Mundial, é um símbolo de violência, ausência do Estado e impunidade. Realizado em Porto Alegre em 2001, 2002, 2003 e 2005, o FSM passou pela Índia, em 2004, pela Venezuela, em 2006, pelo Quênia, em 2007, e no último ano não teve um epicentro, com a realização de eventos simultâneos em 82 países. O retorno ao Brasil coincide com uma grave crise econômica mundial e o questionamento do modelo de capitalismo vigente.
“Dezenas morrem todos os anos”
O massacre de Eldorado dos Carajás ficou famoso no mundo inteiro pelo número de pessoas mortas e pela implicação direta da polícia e das autoridades políticas, mas não é um fato isolado. “Dezenas de pessoas morrem todos os anos”, denuncia José Batista, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na região.
Os assassinatos de sindicalistas rurais, ativistas do movimento sem-terra, líderes indígenas e até religiosos são ordenados regularmente, e cumpridos por pistoleiros conhecidos por todos, que andam livres na rua, de arma na mão. A razão da violência é sempre a mesma: a luta pela terra.
Nesse território enorme, que ocupa 16% do Brasil, moram 7 milhões de pessoas. Mas a terra nunca parece suficiente com tantos latifúndios. José Batista calcula que pelo menos 876 pessoas foram assassinadas nos últimos 30 anos. Mas nenhum responsável por essas mortes está na cadeia, nem os que ordenaram a execução a sangue-frio da missionária norte-americana Dorothy Stang, em fevereiro 2005.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu justiça. Em 2007, dois fazendeiros foram condenados a 30 anos de prisão. A pena foi revogada no ano seguinte, provocando um escândalo internacional. “Por muito tempo, a Justiça, a polícia e os caciques políticos locais trabalharam juntos, o que garante a impunidade”, explica Jean-Pierre Leroy, francês que mora no Brasil desde 1971 e trabalha com a Amazônia dentro da organização não-governamental Fase.
Rasgando a Lei Áurea
Neste faroeste amazônico, muitos poderosos preferem também esquecer que a escravidão foi abolida no Brasil em 1888. Só em 2008, mais de 4,6 mil trabalhadores brasileiros foram libertados de situação análoga à de escravos pelo grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. O total de libertações desde a criação do grupo, em 1995, já passa dos 30 mil.
“Metade dos escravos foi encontrada no estado do Pará”, acrescenta José Batista. Otimista, o francês Jean-Pierre Leroy acha que a situação está ficando um pouco melhor: “O ministério esta se esforçando para acabar com isso, mas não será fácil”.
Além da violência rural e trabalho escravo, o Pará é líder, junto com o Mato Grosso, em desmatamento da Amazônia, tema de alto interesse para a comunidade internacional. Nos últimos 40 anos, foi devastada uma área do território paraense equivalente à Suíça, Áustria, Portugal e Holanda juntos. A escolha de uma sede amazônica para o Fórum vai colocar na ordem do dia os temas ambiental, climático e de segurança alimentar, junto com a crise financeira.
Sentado num pequeno banco na praça central do Assentamento 17 de Abril, onde as vítimas do massacre de Carajás foram morar, o camponês Miguel Ponte aprova a escolha da sede do FSM: “O mundo inteiro vai saber que o Pará é uma terra de violência e impunidade, quem sabe isso pode nos ajudar. As elites do nosso país não gostam quando se fala mal do Brasil lá fora”.
Governadora destaca investimento em segurança
“Reconhecemos que a situação da violência no estado é grave”, afirmou a governadora do Pará, Ana Júlia Carepa, em recente entrevista em São Paulo para a imprensa internacional.
A petista não esconde que a segurança durante o evento será “um grande desafio”. Segundo ela, a Força de Segurança Nacional estará em Belém com um contingente de 280 homens; setecentos veículos de policiamento foram adquiridos; lanchas, motocicletas e carros patrulharão o entorno da cidade.
“O Pará é um estado fronteiriço, com grande penetração de pessoas, além de ter questões internas, como conflitos territoriais. A força policial era insuficiente, mas acredito que após os investimentos, tudo correrá bem”, garantiu.
Segundo Ana Júlia, todo o investimento feito em Belém para a segurança – um terço do orçamento total do evento, de R$ 400 milhões – será revertido para a cidade. “Todas as obras feitas por causa do Fórum ficarão para a sociedade”.
*Colaborou Marina Terra, da redação.
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