“A constituição do Egito está suspensa e um gabinete de transição vai governar o país com o apoio dos militares até novas eleições”. Foi com essas palavras que o general Abdel Fattah al-Sisi, ministro da Defesa e comandante das Forças Armadas, anunciou, no dia 3 de julho, em cadeia nacional, a deposição do então presidente do Egito, Mohamed Mursi, democraticamente eleito um ano antes.
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Ao lado do general estavam presentes importantes personalidades políticas e religiosas do país, como o líder da Igreja Coopta egípcia, Pope Tawadros II, e Mohamed El Baradei, ex-chefe da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica da ONU) e opositor a Mursi. Entre os oficiais já conhecidos dos egípcios, vestidos com seus ternos e uniformes, uma nova face: sentado na última fileira e no canto, Mahmoud Badr.
Vestido com calça jeans e camiseta polo, o jovem, de apenas 28 anos, foi convidado pelo general a se levantar e dar sua declaração sobre um dos mais importantes acontecimentos da historia política do Egito. “Nós queremos construir um Egito com todos e para todos”, afirmou em cadeia nacional para milhões de telespectadores.
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Membros do Tamarrod participam de um dos protestos contra Mursi, que têm levado dezenas de milhões às ruas
Descrito como a “nova face da revolução egípcia” pela mídia internacional, Badr é fundador e porta-voz do movimento Tamarrod (em português, rebelde), que está por trás das mobilizações contra Mursi. Além de ter conseguido 22 milhões de assinaturas em uma petição pedindo a deposição do presidente – numero superior aos 13 milhões de votos em Mursi -, o grupo conseguiu levar mais de 30 milhões de pessoas para as ruas do país no dia 30 de junho em um grande ato contra o político da Irmandade Muçulmana.
“Eles iniciaram a segunda onda revolucionária no Egito”, afirma a Opera Mundi o economista Samir Amin, que é também membro do Partido Comunista no país e uma figura influente na cena política nacional. “A campanha foi uma iniciativa extraordinária!”, acrescenta ele, elogiando os jovens.
Rumo aos 22 milhões
O grupo foi formado em abril deste ano por jovens jornalistas e universitários com o objetivo de reunir assinaturas contra o presidente da Irmandade Muçulmana, tendo o aniversário de um ano de sua eleição (dia 30 de junho) como data limite. “Nós não tínhamos certeza do número de assinaturas que conseguiríamos. Pensamos que talvez teríamos 5, 7 milhões ou, no máximo, 15 milhões. Foi uma grande surpresa o número que atingimos!”, conta a Opera Mundi um dos membros do movimento, Mohamed Khamiis.
A ideia de lançar a petição veio de Hassan Chachine, de apenas 23 anos, depois de algumas conversas com amigos sobre a situação política no Egito. Os jovens acreditavam que a revolução estava começando a se afastar do povo, apesar da crescente insatisfação com o governo nacional. “Começamos a traçar uma estratégia para levar a revolução das praças públicas para os bairros, vilas, ruas, becos, mas sem usar a violência”, explica Badr.
Batizada de Tamarrod em homenagem a um jornal sírio criado por jovens que lutam contra o presidente Bashar al Assad, a iniciativa foi divulgada pelos seus cinco fundadores nas redes sociais e, logo, se tornou popular entre a juventude egípcia. Qualquer pessoa interessada na ideia poderia imprimir a folha da petição e coletar assinaturas com seus amigos e vizinhos – desde que fossem eleitores registrados.
“Eu estava sentado em meu escritório e, de repente, um cara abriu a porta e me trouxe mais de 5 mil assinaturas. Eu nem sei quem ele é, mas ele estava trabalhando como nós”, afirma Kahmiis. O ativista, ligado à Associação Nacional para Mudança, criada por El Baradei, garante que todos aqueles que assinaram ou coletaram assinaturas são membros ativos do Tamarrod. “Isso não é sobre 20, 1000 ou 1000 pessoas. É muito mais que isso”, acrescenta.
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Irmandade Muçulmana contesta número de 22 milhões de assinaturas coletadas pelo Tamarrod contra Mursi
Nas vésperas da manifestação do dia 30 de junho, o movimento anunciou que havia coletado mais de 22 milhões de assinaturas contra a “tirania da Irmandade Muçulmana”. A contagem, feita pelo próprio movimento, foi questionada por membros da organização islâmica que afirmou ter provas de assinaturas duplicadas.
O grupo, porém, ganhou legitimidade quando mais de 30 milhões de pessoas participaram do protesto contra o presidente, em uma das maiores mobilizações da história moderna. “Sem as manifestações, sit-ins, greves e desobediência civil, a petição não teria significado”, afirma Badr.
Dos protestos contra Mubarak à mobilização anti-Mursi
Apesar de serem jovens, os “rebeldes” que iniciaram o movimento já tinham acumulado experiências políticas anteriores. Muitos dos primeiros participantes eram membros do grupo Kefaya (basta, em português), uma coalizão nacional contra o regime de Mubarak que realizou diferentes manifestações ao longo de 2005, relativas ao referendo sobre a Constituição e a eleição presidencial.
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Outros fazem parte da Associação Nacional por Mudança, um grupo criado por Mohamed El Baradei em 2010 que tem como objetivo implementar a democracia no país desde os tempos de Mubarak. Segundo Khamiis, que coordena a seção da juventude do grupo, a campanha “rebelde” se inspirou em uma iniciativa da associação de coletar assinaturas para um programa de reformas, em 2010.
Os ativistas também participaram de diferentes movimentos jovens, como o 6 de abril, e mobilizações contra o regime ditatorial, em janeiro de 2011. Alguns possuem inspirações mais radicais, outros estão relacionados com a luta por liberdades civis, mas, de forma geral, indicam militantes egípcios, são pessoas de esquerda. Badr, por exemplo, não esconde sua admiração pelo general Gamal Abdel Nasser, que governou o país durante duas décadas (1954 – 1970) guiado por um nacionalismo socialista.
Das ruas à mesa de negociação
O sucesso nas ruas e na petição garantiu ao Tamarrod um espaço importante na mesa de negociação com as Forças Armadas e líderes opositores sobre o processo de transição no país. No entanto, se os “rebeldes” conseguiram decolar com a mobilização, a hora de tomar decisões está deixando clara as contradições do movimento.
Além de encontros com oficiais de alta patente das Forças Armadas e com o presidente interino do país, o juiz Adly Mansour, os jovens “rebeldes” se reuniram com membros da comunidade internacional, como a chefe da diplomacia europeia, Catherine Ashton. O Tamarrod também deu apoio à indicação de El Baradei, um político assumidamente liberal, como vice- presidente.
De acordo com Khamiis, neste novo momento político, apenas um grupo dentro do movimento está discutindo e tomando as decisões. Mas não fica claro quem são esses e como tomam decisões. Apesar disso, na esteira de outros movimentos jovens ao redor do mundo, o Tamarrod também enfatiza que não quer criar líderes políticos nem uma organização hierárquica.
Quando perguntado sobre a problemática de representar mais de 20 milhões de pessoas, o ativista foi categórico: “nós também somos egípcios, não?”, disse ele. “Nós não precisamos de um escritório para as pessoas chegarem e reclamarem. Eu já vivo com essas pessoas, então eu sei quais são seus problemas”, acrescentou, deixando claro que o movimento não quer tirar a voz do povo.
Na opinião de Mamdouh Habashi, co-fundador do Partido Socialista do Egito, a influência do grupo no processo decisório sobre a transição será mínima por sua falta de organização. “Eles ganharam a simpatia das massas, mas foram adotados por outros poderes políticos porque conseguiram fazer esse movimento enorme”, afirmou ele a Opera Mundi.
Rebeldia à direita ou manobra política?
Diferentes grupos políticos conservadores, incluindo de setores ligados ao antigo regime de Hosni Mubarak, passaram a apoiar o movimento rebelde. Segundo o estudioso Esam Al Amin, autor do livro “The Arab Awakening Unveiled: Understanding transformations and revolutions in the Middle East”, ao menos 14 canais privados fizeram uma ampla campanha publicitária para divulgar a petição.
O próprio fato de os jovens do Tamarrod estarem sentando à mesa de negociação com as Forças Armadas e reforçando a imagem dos militares como “representantes do povo” é motivo de preocupação para muitos ativistas de esquerda. “Não podemos nos iludir com os militares: são os mesmos que estavam por trás do governo de Mubarak e o derrubaram para continuar no poder”, afirma a Opera Mundi Sameh Naguib, líder da organização marxista Revolucionários Socialistas do Egito.
Em recente entrevista ao jornal norte-americano The New York Times, Yaffir Fouad, um dos membros do Tamarrod, respondeu às críticas afirmando que “o Exército foi nossa arma”. O professor de política da SOAS (Escola de Estudos Orientais e Africanos na sigla em inglês) e especialista em Oriente Médio, Gilbert Achcar, lembra, no entanto, que os militares continuam sendo a “coluna vertebral” do Estado. “A realidade é o inverso: o movimento de massas e esses jovens que fizeram a mobilização estão sendo usados pelas Forças Armadas”, conclui ele a Opera Mundi.