Quando o Partido pela Liberdade (PVV) surpreendeu nas urnas da quarta-feira passada (22/11), praticamente toda a imprensa, inclusive o Brasil de Fato, noticiou que a extrema direita havia vencido na Holanda. A notícia provocou surpresa, pelo fato de a Holanda estar há 13 anos sob uma gestão da direita moderada liberal e pelo país ser conhecido por suas iniciativas progressistas e de vanguarda. Porém, se o tratarmos como Países Baixos, em vez de Holanda, a notícia fica menos chocante.
A rigor, a Holanda é só uma parte do país, cujo nome correto é Países Baixos (em inglês, Netherlands). Apenas para traçar um paralelo ilustrativo, é como chamar o Reino Unido (nome correto do país) de Inglaterra (nome de parte dele).
A Holanda propriamente dita, que corresponde às províncias da Holanda do Norte (onde fica Amsterdã) e Holanda do Sul (onde ficam Haia e Roterdã), concentra o poder econômico, financeiro e político. Já o interior dos Países Baixos, onde ficam as cidades médias e menores, é mais conservador e religioso.
No país todo, mas particularmente nessa parte mais provinciana, ganhou eco nos últimos tempos a ideia de que a cultura e a história de seu povo anda na defensiva e precisa ser valorizada; de que não é papel de um governante se desculpar publicamente pela escravidão, como fez o primeiro-ministro Mark Rutte, porque isso depõe contra o heroísmo de um povo com um longo histórico de conquistas mundo afora; de que o bem-estar do holandês nativo não deve ser reduzido pela necessidade de acolher imigrantes.
As ideias acima são do holandês Giorgio Romano Schutte, professor de Relações Internacionais e Economia na UFABC e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB). “Lembre-se de que a palavra mais famosa no mundo é uma palavra holandesa: apartheid”, diz ele, nesta entrevista ao Brasil de Fato para analisar o resultado e os desdobramentos da eleição da última quarta-feira (22/11), quando a extrema direita praticamente dobrou sua presença no Parlamento e ganhou o direito de formar o próximo governo.
Qual será o impacto da ótima votação da extrema direita dentro e fora da Holanda?
Ainda é muito cedo para saber qual é o resultado porque a gente não sabe se ele vai conseguir formar um governo. De qualquer forma, estamos em numa fase de ascensão da extrema direita, com idas e voltas. Por exemplo, no início da pandemia de Covid-19, mas sobretudo com a guerra na Ucrânia, o aumento do preço da energia, a insegurança sobre o futuro da Europa, aí a extrema direita de novo ganhou de novo impulso em vários países. Bom, o partido da direita radical ganhou 23,7% dos votos. Mais de 22% não foram votar, então dos 77% que foram votar, só um quarto votou para ele. Então, não é uma enorme massa da população. É uma votação expressiva, é surpreendente, mas tem que colocar em perspectiva. Ele pulou de 20 para 37 deputados na Câmara dos Deputados, de um total de 150. A vitória dele dá um gás, dá moral para outros partidos de extrema direita na Europa. Teremos eleições em Portugal e na França. A (Giorgia) Meloni (na Itália) se sente menos isolada.
Você acha que Geert Wilders (líder do PVV e provável futuro primeiro-ministro) vai conseguir formar governo?
É a primeira vez que a direita liberal declarou publicamente, antes das eleições, que poderia ser o caso de governar junto com os radicais. Isso deu uma margem muito grande para a extrema direita avançar. Antes, as pessoas não votavam na extrema direita achando que era voto perdido, que o partido ficaria isolado como sempre. Mas com a sinalização da direita liberal, que governou o país durante anos, foi um fator psicológico importante para a população votar nesse partido. Então existe uma relativa facilidade para formar governo, mas como isso vai ser feito, precisa ver.
(Nesta segunda, 27, o observador nomeado por Wilders para tentar costurar uma coalizão, Gom van Strien, renunciou, o que parece sinalizar dificuldades para as negociações.)
Wilders critica o que chama de “invasão islâmica” e diz que os holandeses esperam recuperar seu país e garantir que o “tsunami” de solicitantes de asilo e imigração se reduza. Por que um político com esse tipo de raciocínio consegue votação tão expressiva num país como a Holanda? Qual(is) fator(es) do contexto atual ajudam a explicar isso?
A insegurança, o estado de bem-estar social, a ideia de recuperar os valores holandeses, o bem-estar da Holanda, e nisso está embutida a ideia de ejetar o que vem de fora, principalmente do Islã. Embora nessa eleição ele tenha enfatizado muito mais questões materiais do bem-estar, como habitação para pessoas de baixa renda, aposentadoria, esse tema tem a ver diretamente com a ideia de conter a imigração e suas influências.
Twitter/JH Fonseca
Geert Wilders. pol´ítico islamofóbico da extrema direita, do partido PVV, vence as eleições legislativas antecipadas da Holanda
A Holanda, país cuja situação econômica é tradicionalmente estável, teve reduções seguidas do PIB nos dois primeiros trimestres de 2023, com queda das exportações e piora no consumo das famílias. Isso tem relação com o resultado da eleição?
Problemas econômicos mais recentes não explicam o resultado. Tem mais a ver com uma ideia de que a cultura holandesa está na defensiva, com o fato de o primeiro-ministro da direita liberal ter pedido desculpas pela escravidão, pelo envolvimento da Holanda no comércio de escravos, e aí as pesquisas mostram que quase 60% da população acha que não deveria fazer isso porque são águas passadas, que quem vive hoje não tem nada a ver com isso. O Wilders mobiliza essa ideia de que tem que parar de atacar os heróis históricos, esses “bandeirantes holandeses” que saíram para o mundo fazendo pilhagem, pirataria… Tudo isso então tem a ver com a defesa cultura, da história do país, e de diminuir as migrações.
A Holanda é um país tradicionalmente de vanguarda e receptivo a ideias inovadoras, progressistas e contra-culturais. Para citar os exemplos mais notórios, temos a liberdade para o consumo de drogas e a enorme infraestrutura que prioriza a circulação de bicicletas em detrimento dos veículos motorizados. O que explica um país assim embarcar numa onda reacionária e xenófoba?
Essa Holanda de vanguarda, inovadora, é Amsterdã. Tanto que você fala em Holanda, que é só uma parte dos Países Baixos. O Wilders ganhou nos Países Baixos. Em Amsterdã, ele ficou em quarto lugar, com 9,5%, e a esquerda ganhou com 34%. Pela primeira vez, a centro-esquerda e parte da esquerda radical se juntaram, fizeram uma lista só e ganharam. No país como um todo, ficaram em segundo lugar, à frente da direita liberal. Então, Amsterdã continua tendo essas características que você falou e resistindo ao avanço da extrema direita. Observe que justamente nas grandes cidades, onde os imigrantes convivem com a população, a extrema direita anti-imigrantes não teve uma votação expressiva como teve no interior, nas cidades pequenas.
Apesar do histórico racista, Wilders declarou na campanha que quer ser um primeiro-ministro para todos. Isso é só para ganhar a eleição ou ele pode realmente suavizar suas propostas (algo que, aliás, Milei parece estar fazendo na Argentina)?
O Wilders já tinha mudado o tom com relação às últimas eleições, enfatizando menos a questão da cruzada contra o Islã e mais a defesa do bem-estar dos holandeses, de se colocar contra o medo da insegurança. A xenofobia está embutida nessa questão mais geral. Junto com isso, há a perspectiva de poder governar com a direita liberal, com um eventual novo partido de centro-direita. Ele precisa desses votos, então ele não pode ser muito radical porque sabe que sem o apoio parlamentar, não vai poder governar.
Existe chance de a Holanda iniciar um movimento para sair da União Europeia?
Isso não está na pauta, nem sair da zona de euro. O que esses partidos querem é diminuir a centralização do poder político em Bruxelas (sede da União Europeia) e reformar a União Europeia, não acabar com ela.
A vitória de Wilders ocorre na esteira de avanços da extrema direita em vários países europeus, como Suécia e Finlândia, onde os radicais fazem parte do governo; Polônia e Hungria, com governos ultranacionalistas e autoritários; Itália, onde Meloni governa por um partido de raízes neofascistas; França, onde Le Pen está bem cacifada para tentar chegar ao poder; na Grécia, onde três partidos de direita radical conquistaram assentos suficientes para entrar no parlamento; na Espanha, onde o Vox superou expectativas nas eleições regionais e conquistou quase 10% do Congresso; na Alemanha, o AfD está em alta. O que está acontecendo? É um voto de protesto, acima de tudo, ou os eleitores estão realmente dispostos a viver experiências radicais e conviver com governos radicais de direita?
Estamos vivendo um momento em que está se aproximando a ideia de um caos sistêmico no mundo, com uma enorme dificuldade de manter uma hegemonia e perspectivas. Tem as guerras na Ucrânia, em Gaza. A questão dos preços da energia também pesa muito. O Wilders explorou muito o cansaço em relação ao discurso sobre as mudanças do clima. Ele diz que não existe mudança nenhuma, que esse é um processo natural. As pessoas estão cansadas de ouvir que precisam parar de usar gás e petróleo, porque eles veem que quando não tem gás e petróleo, tem caos. Aumenta o preço, pessoas têm medo da insegurança energética, então há uma reflexão a fazer sobre como se garante a paz social para fazer uma política de segurança energética que leve em conta a questão distributiva.