Na centenária cidade de Hyderabad, antiga capital de reinos muçulmanos e hoje núcleo da indústria da tecnología na Índia, na noite do dia 17 de janeiro Rohith Vemula decidiu escrever suas últimas palavras. “Amava a ciência, as estrelas, a natureza, e depois amava as pessoas sem saber que as pessoas se divorciaram faz muito tempo da natureza”, escreveu o jovem doutorando da Universidade de Hyderabad. “O valor de um homem foi reduzido à sua identidade imediata, à sua mais próxima possibilidade [de ser]”. Rohith organizou suas coisas, se despediu pedindo não perturbar seus amigos e inimigos e se enforcou no pequeno quarto da residência estudantil onde um amigo estava lhe dando alojamento.
Reprodução/Facebook
Suicídio de Rohith Vemula está ligado ao rigoroso sistema de castas indiano
Aos 26 anos, pobre e com seus direitos como estudante (e a bolsa com a qual sustentava e apoiava sua mãe e seu irmão mais novo) suspensos, Rohith não apenas queria escrever sobre ciencia. “Como Carl Sagan”, queria mudar o mundo começando pelo seu entorno: membro do que desde muitos milênios atrás se conhece na Índia como as castas mais baixas, os intocáveis, o jovem era um conhecido ativista pelos direitos daqueles que, como ele, são discriminados diariamente em todos os âmbitos da vida pública do país.
E sua morte começou a sacudir esse país imenso, dividido e cheio de deuses e de religiões.
“Gente maltrapilha”, gente sem direitos
Os dalit (ou “gente maltrapilha”, como seria sua tradução direta do hindu) são, na verdade, um conglomerado de grupos sociais, tradições e ofícios milenares que, segundo a religião hindu, estão formados pelas pessoas que estão mais baixo na escala social, religiosa e econômica, sem direito a nada: nem terra, nem escola, nem respeito. Ainda assim, nessa rigidez hierárquica, o mais famoso entre eles, o Dr. B. D. Ambedkar, foi o principal redator da Constituição indiana e um severo crítico de Gandhi, com quem polemizou durante muitos anos. Para sua gente, é um herói quase mítico.
Por isso, a grande maioria das organizações dalit na Índia têm Ambedkar em algum lugar, no nome ou no logotipo. Como a Associação de Estudantes Ambedkar (ou ASA), da Universidade de Hyderabad, que Rohith Vemula liderou com entusiasmo durante um tempo para ajudar estudantes como ele.
A vida de um estudante de uma casta baixa nessa universidade nunca foi fácil. Pulyla Raju, que se suicidou em 2013 ao não poder avançar em seus estudos (perseguido por companheiros e professores) ou Sunitha, que se suicidou grávida, em 2007, quando o jovem de uma casta privilegiada que a seduzia se negou a se casar com ela por ser de outra casta e zombou dela até depois da morte, sabiam bem disso. Assim como os 10 estudantes dalit que, nos anos 1980, foram suspensos por “contaminar” as aulas e nunca mais puderam voltar a estudar.
Da mesma forma que acontece em Délhi e Mumbai, os estudantes dalit são discriminados sistematicamente na Universidade de Hyderabad. Negam-lhes comer nos refeitórios das universidades (para não “contaminar” os pratos e os copos), batem em seus companheiros de outras castas e os professores, com boas maneiras, humilham-nos nas aulas explicando que o conhecimento não está seu alcance, como revelou uma pesquisa do doutor Narayan Sukumar, acadêmico da Universidade Jawaharlal Nehru, em Délhi, que fez seu mestrado em Hyderabad.
É comum inscreverem contra eles insultos nas paredes e no Facebook, como fez há alguns meses Susheel Kumar, dirigente estudantil de uma casta alta e sobrinho de um conhecido político do partido Bharatiya Janata, o partido do primeiro-ministro Narendra Modi. Os insultos de Kumar não passaram despercebidos para Rohith Vemula e os membros da ASA, que o confrontaram com um protesto. O covarde aceitou eliminar seus posts e tudo pareceu voltar à aparente normalidade na Universidade de Hyderabad.
Mas, no dia 4 de agosto, Susheel Kumar decidiu acusar os membros da ASA de agredi-lo e feri-lo. A denúncia teve uma resposta imediata das autoridades universitárias, em particular do vice-reitor Appa Rao. Os cinco estudantes dalit ativistas foram suspensos em agosto de 2015 e a sua “vítima” seguiu sua rotina, mas Rohith e o seu grupo protestaram até que a universidade formou uma comissão para investigar o caso.
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Nada. A comissão universitária não encontrou prova alguma da suposta agressão contra Susheel Kumar. Mas isso não importou: alguns meses depois, os estudantes da ASA continuavam suspensos na Universidade de Hyderabad sem razão provada (bom, por fazer o que um estudante faz: protestar). Rohith deixou de receber sua bolsa (e de mandar dinheiro para casa). Os dalit tiveram de sair da residência estudantil e se instalaram em uma barraca na entrada do recinto. Um retrato de Ambedkar, mantas para se cobrir e alguns livros e papéis era tudo o que possuíam.
Oprimido pela rejeição, sem dinheiro nem casa, Rohith tirou a própria vida. Mas não agiu sozinho, como demonstrariam nos dias seguintes as cartas de um parlamentar, uma ministra do governo nacional e, sem dúvida, os protestos dos milhares e milhares de cidadãos em todos os cantos da Índia.
Outros mundos, outros problemas
Nos dias posteriores ao suicídio de Rohith Vemula, muitos estudantes universitários começaram a protestar em Mumbai, Délhi, Calcutá, Madras e outras cidades. O destacado poeta Ashok Vajpeyi, estudante em sua juventude da Universidade de Hyderabad, devolveu seu título universitário. Centenas de acadêmicos de todo o mundo enviaram cartas de protesto e os meios de comunicação durante uma longa semana se ocuparam do jovem estudante que morreu se sentindo vazio, desejando “viajar para as estrelas… conhecer outros mundos”.
E começaram a aparecer os documentos que provam que essa discriminação não apenas é comum, mas sistemática. Como na carta do parlamentar Bandaru Dattatreya (de 17 de agosto), que chama os estudantes da ASA de “extremistas” e pede que as autoridades façam algo contra eles. Dattatreya é o ministro do Trabalho e Emprego da Índia.
Ou a correspondência assinada por altos funcionários do ministério de Recursos Humanos e Desenvolvimento e o vice-reitor Rao, tendo como “assunto” as atividades “antinacionais” na Universidade de Hyderabad e o “ataque” ao jovem dirigente Susheel Kumar, e exigiram, em novembro de 2015, que a autoridade universitária resolvesse pessoalmente o problema. Ainda depois de ter sido provada a inocência dos cinco membros da ASA.
O corpo de Rohith Vemula foi cremado de forma quase clandestina. Sua mãe recebeu as mensalidades da bolsa depois de uns dias. E ainda que ninguém tenha sido acusado de nada (e o primeiro-ministro Narendra Modi tenha falado “da dor de uma mãe que perdeu seu filho”), o vice-reitor Appa Rao deixou seu posto de maneira indefinida e os quatro estudantes da ASA foram readmitidos na Universidade de Hyderabad.
Mas os protestos continuam, em Hyderabad e em Délhi, entre os estudantes e os milhões de dalits que habitam a Índia. Os quatro companheiros de Rohith Vemula pediram que Appa Rao se entregue à polícia e que seja feita uma investigação criminal. Porque há dois fatos nesse drama que a Índia hoje discute: o sistema de castas continua vigente, discriminando cidadãos em todos os âmbitos, e Rohith, que estava “desesperado para começar uma vida”, está morto porque era um dalit.
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