Nunca se viram tantas feições asiáticas em La Paz. Apesar de seus olhos amendoados se confundirem com os dos bolivianos, a presença de japoneses e chineses é marcante na capital. Isso é nítido nos saguões dos hotéis do Prado, a avenida principal, na agitação dos restaurantes de sushi e na procura cada vez maior por cursos de japonês. São jovens universitários à procura de oportunidades para o futuro.
Todo o mundo econômico, especialmente o asiático, observa com atenção o país mais indígena das Américas e seu presidente. Nas mãos do governo Evo Morales, estão as rédeas do negócio que pode definir o futuro de muitas indústrias automobilísticas. Pela nova Constituição, o governo da Bolívia detém 60% de todas as companhias nacionais, dos hidrocarbonetos às minas. E há poucos meses, tem nas mãos um verdadeiro tesouro a ser gerenciado em parceria com empresas internacionais interessadas no setor, como as japonesas Mitsubishi e Toyota.
O governo Morales é a primeira administração boliviana a nacionalizar as riquezas do país. Vale dizer que, para o usufruto dos recursos, o imposto cobrado das multinacionais aumentou em 2006, de 18% para 82%. O dinheiro vai diretamente para os cofres públicos. O lítio é a nova vanguarda, o primeiro projeto exploratório nascido na nova geração da nacionalização, diferentemente de todos os outros, como o gás e as telecomunicações, que passaram por um processo de adaptação.
Dada a importância da operação econômica, Morales trata diretamente das negociações com as indústrias automobilísticas, ao lado do ministro da Economia, Luis Arce. Por enquanto, o ministro dos Recursos Minerais, Luis Alberto Echazù Alvarado, desempenha apenas o papel de coordenador. Explica-se: o governo vê nessa empreitada a chance de tirar a Bolívia da condição de país mais pobre da América do Sul e dar a partida para um desenvolvimento integral da nação.
As reservas de gás do país, nacionalizadas, não são suficientes para servir de base para um plano econômico de décadas. Mas as de lítio são. Além disso, as regras são ditadas pelo mercado: se em nível mundial estabeleceu-se que esta será uma das tecnologias e investimentos de ponta do século XXI, então a Bolívia insere-se agora no mercado certo, no momento certo. Em março, por exemplo, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciou a liberação de 2,4 bilhões de dólares para pesquisas e desenvolvimento de baterias para veículos elétricos. Até 2015, a Casa Branca pretende ver 1 milhão de carros híbridos nas ruas do país.
A supervisão dos trabalhos pela população foi confiada ao Comibol, a histórica cooperativa dos mineradores bolivianos. Como instituição, a entidade provavelmente será monitorada por movimentos sociais que garantam a repartição dos lucros a favor da população local em primeiro lugar. Mas o projeto ainda está verde demais para que tais organizações tomem parte nele.
Ministério agitado
Erguendo o nariz para o céu, no coração comercial da capital, deparamo-nos com um imponente edifício branco, apinhado de pessoas de paletó e gravata. É a sede do Ministério dos Recursos Minerais, visitada desde o início do ano por jornalistas estrangeiros, em maior número que a própria sede do governo.
Depois de passar por telefones que não param de tocar e colaboradores com capacetes de mineradores, chega-se à sala do ministro Alvarado, pessoa tão afável quanto difícil de encontrar. Apesar das centenas de entrevistas concedidas, Alvarado explica com paciência que “o projeto do lítio é, hoje, a mudança para o crescimento econômico integral da Bolívia”.
Estudos apontam a possibilidade de se obter, até 2014, cerca de 30 mil toneladas por ano de carbonato de lítio e o equivalente em cloreto, sulfato de potássio e ácido bórico, produtos-base para a elaboração de baterias. Sobretudo pela região em que o lítio é encontrado, o Salar do Uyuni, é possível oferecer grande contribuição para o desenvolvimento com oferta de trabalho e serviços.
O presidente Morales, de volta de uma visita ao Kremlin no final de fevereiro, declarou que já se prefigura a imagem da fábrica de automóveis funcionando totalmente à base de baterias elétricas: Echo en Bolivia, feito na Bolívia, indústria totalmente nacional.
Morales acrescentou que a Gazprom, o colosso russo do gás, mostrou-se interessado em fazer acordos para possível joint-venture no âmbito da industrialização do lítio, além daqueles já existentes relativos ao gás boliviano. Mas o ministro Echazù afirmou que, por enquanto, o caminho ainda é longo.
“Estamos apenas nas fases preliminares, experimentando os primeiros resultados de extração de uma pequena instalação formada por duas piscinas, de que se faz evaporar a água e, depois, se obtém o carbonato de lítio.” Na opinião dele, pensar em uma indústria automobilística boliviana, hoje, é um exercício de futurologia.
Lucro ecologicamente correto
É certo que, com o petróleo cada vez mais escasso e a humanidade em crescimento, o mercado automobilístico vê no lítio o verde dos dólares e também o da ecologia. Empresas mundiais, como Mitsubishi, Toyota e General Motors, sabem que o mercado quer um automóvel elétrico “limpo”, que não seja movido a hidrogênio. Aí entra o lítio, que hoje está presente em mínima quantidade nos telefones e deverá constituir as baterias desses veículos, num futuro nem tão distante.
Os representantes das empresas automobilísticas que vieram morar em La Paz, como Eichi Maeyana, da Mitsubishi, sustentam que “serão necessárias, no mínimo, 500 mil toneladas de lítio por ano”. Hoje, o preço de mercado gira em torno dos 12 mil dólares por tonelada, tomando-se por base o praticado pela indústria da “casa ao lado”, a chilena SMQ, no Salar do Atacama, que detém um terço da produção de lítio no mundo. É a líder do setor.
Além disso, existe a concorrência causada pelo crescimento da indústria eletrônica, que utiliza a mesma matéria-prima. Estudos apontam que, em 2015, apenas 300 mil toneladas de lítio estarão disponíveis para as montadoras de automóveis.
Diante do edifício do ministério, fica a Comibol, encarregada do projeto-piloto das piscinas de vaporização. O encarregado é o engenheiro Saul Villegas, que explica os dados técnicos da infraestrutura operacional. “Vai requerer o investimento de quase 1,2 bilhão de dólares, custeados pelo governo boliviano em joint-venture com as indústrias de automóveis, que agora acompanham as negociações”.
Nos próximos três anos, a Comibol vai construir instalações com capacidade de processamento de 1.200 toneladas por ano. “O governo espera poder começar a exportar em grande escala em até 10 anos”, afirma Villegas.
Leia a segunda parte:
Por trás da beleza do salar, a esperança de uma vida mais digna
Veja no mapa a localização do Salar do Uyuni
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