O discurso do presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura da 78ª Assembleia Geral da ONU, nesta terça-feira (19/09), ganhou proporções históricas ao abordar praticamente todos os principais desafios da humanidade na atualidade e por imprimir uma visão do Sul Global diante desses temas.
Este foi o seu retorno ao parlamento mundial após 14 anos. A última vez que Lula esteve na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, como Presidente da República foi em 2009. No ano seguinte, o último do seu segundo mandato, o Brasil foi representado pelo então chanceler Celso Amorim.
Em suas primeiras palavras, Lula recordou não aquele último discurso, e sim o primeiro. “Há vinte anos, ocupei esta tribuna pela primeira vez, e disse, naquele 23 de setembro de 2003, ‘que minhas primeiras palavras diante deste Parlamento Mundial sejam de confiança na capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivência’. Volto hoje para dizer que mantenho minha inabalável confiança na humanidade”.
O presidente do Brasil prestou sua “homenagem ao nosso compatriota Sérgio Vieira de Mello e 21 outros funcionários desta Organização, vítimas do brutal atentado em Bagdá, há 20 anos. Desejo igualmente expressar minhas condolências às vítimas do terremoto no Marrocos e das tempestades que atingiram a Líbia. A exemplo do que ocorreu recentemente no estado do Rio Grande do Sul no meu país, essas tragédias ceifam vidas e causam perdas irreparáveis. Nossos pensamentos e orações estão com todas as vítimas e seus familiares”.
Em seguida, Lula abordou a questão da fome e da desigualdade. “A fome, tema central da minha fala neste Parlamento Mundial 20 anos atrás, atinge hoje 735 milhões de seres humanos, que vão dormir esta noite sem saber se terão o que comer amanhã. O mundo está cada vez mais desigual. Os 10 maiores bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade (…) É preciso antes de tudo vencer a resignação, que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno natural. Para vencer a desigualdade, falta vontade política daqueles que governam o mundo”, comentou.
O mandatário brasileiro disse que seu retorno a Nova York é “um triunfo da democracia no meu país”, e que o Brasil “está de volta para dar sua devida contribuição ao enfrentamento dos principais desafios globais. Resgatarmos o universalismo da nossa política externa, marcada por diálogo respeitoso com todos. A comunidade internacional está mergulhada em um turbilhão de crises múltiplas e simultâneas: a pandemia da Covid-19; a crise climática; e a insegurança alimentar e energética ampliadas por crescentes tensões geopolíticas. O racismo, a intolerância e a xenofobia se alastraram, incentivadas por novas tecnologias criadas supostamente para nos aproximar”.
Neoliberalismo e extrema direita
Em um dos trechos mais eloquentes do seu discurso, Lula culpou o neoliberalismo pela ascensão da extrema direita no mundo.
“Os governos precisam romper com a dissonância cada vez maior entre a ‘voz dos mercados’ e a ‘voz das ruas’. O neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias. Seu legado é uma massa de deserdados e excluídos. Em meio aos seus escombros surgem aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas. Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário”, declarou o presidente brasileiro.
O líder petista completou essa parte de sua apresentação enfatizando o repúdio a “uma agenda que utiliza os imigrantes como bodes expiatórios, que corrói o Estado de bem-estar e que investe contra os direitos dos trabalhadores”, e exigindo “resgatar as melhores tradições humanistas que inspiraram a criação da ONU”.
Assange, Cuba e Palestina
Em outro momento importante de sua fala, Lula ressaltou que “políticas ativas de inclusão nos planos cultural, educacional e digital são essenciais para a promoção dos valores democráticos e da defesa do Estado de Direito”.
A seguir, aproveitou para reivindicar a liberdade do ativista e jornalista australiano Julian Assange. “É fundamental preservar a liberdade de imprensa. Um jornalista como Julian Assange não pode ser punido por informar a sociedade de maneira transparente e legítima”.
“Nossa luta é contra a desinformação e os crimes cibernéticos. Aplicativos e plataformas não devem abolir as leis trabalhistas pelas quais tanto lutamos”, competou o presidente.
Ricardo Stuckert
Lula retornou ao parlamento mundial após 14 anos
Lula também disse que “não alcançarem seus alegados objetivos, dificultam os processos de mediação, prevenção e resolução pacífica de conflitos”.
“O Brasil seguirá denunciando medidas tomadas sem amparo na Carta da ONU, como o embargo econômico e financeiro imposto a Cuba e a tentativa de classificar esse país como Estado patrocinador de terrorismo. Continuaremos críticos a toda tentativa de dividir o mundo em zonas de influência e de reeditar a Guerra Fria”.
A questão cubana foi uma deixa para entrar em um problema mais profundo, através do qual Lula reivindicou a criação do Estado Palestino e de uma reforma do sistema da ONU.
“O Conselho de Segurança da ONU vem perdendo progressivamente sua credibilidade. Conhecemos os horrores e os sofrimentos produzidos por todas as guerras. A promoção de uma cultura de paz é um dever de todos nós. Construí-la requer persistência e vigilância. É perturbador ver que persistem antigas disputas não resolvidas e que surgem ou ganham vigor novas ameaças. Bem o demonstra a dificuldade de garantir a criação de um Estado para o povo palestino. A este caso se somam a persistência da crise humanitária no Haiti, o conflito no Iêmen, as ameaças à unidade nacional da Líbia e as rupturas institucionais em Burkina Faso, Gabão, Guiné-Conacri, Mali, Níger e Sudão. Na Guatemala, há o risco de um golpe, que impediria a posse do vencedor de eleições democráticas. A guerra da Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU. Não subestimamos as dificuldades para alcançar a paz. Mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo”, analisou o presidente brasileiro.
Crise climática
A crise climática também foi um dos temas principais do discurso de Lula na ONU. “Agir contra a mudança do clima implica pensar no amanhã e enfrentar desigualdades históricas. Os países ricos cresceram baseados em um modelo com altas taxas de emissões de gases danosos ao clima”, afirmou o presidente.
“A emergência climática torna urgente uma correção de rumos e a implementação do que já foi acordado. Não é por outra razão que falamos em responsabilidades comuns, mas diferenciadas. São as populações vulneráveis do Sul Global as mais afetadas pelas perdas e danos causados pela mudança do clima. Os 10% mais ricos da população mundial são responsáveis por quase a metade de todo o carbono lançado na atmosfera. Nós, países em desenvolvimento, não queremos repetir esse modelo”, enfatizou.
Lula também lembrou que “no Brasil, já provamos uma vez e vamos provar de novo que um modelo socialmente justo e ambientalmente sustentável é possível. Estamos na vanguarda da transição energética, e nossa matriz já é uma das mais limpas do mundo”.
Sul Global
Outro ponto importante do discurso de Lula foi a defesa do multilateralismo. Embora tenha economizado no uso do termo “Sul Global”, como tem feito em suas declarações nos últimos meses, o presidente brasileiro reivindicou uma maior participação de países da América Latina, África e Ásia nas grandes decisões globais.
“O princípio sobre o qual se assenta o multilateralismo, o da igualdade soberana entre as nações, vem sendo corroído. Nas principais instâncias da governança global, negociações em que todos os países têm voz e voto perderam fôlego. Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução”, comentou.
Lula lembrou que, “o ano passado, o Fundo Monetário Internacional (FMI) disponibilizou 160 bilhões de dólares em direitos especiais de saque para países europeus, e apenas 34 bilhões para países africanos. A representação desigual e distorcida na direção do FMI e do Banco Mundial é inaceitável. Não corrigimos os excessos da desregulação dos mercados e da apologia do Estado mínimo. As bases de uma nova governança econômica não foram lançadas”.
Nesse contexto, o brasileiro defendeu o rol do Brics, bloco integrado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, afirmando que este “surgiu na esteira desse imobilismo, e constitui uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre países emergentes”.
“A ampliação recente do grupo na Cúpula de Johanesburgo fortalece a luta por uma ordem que acomode a pluralidade econômica, geográfica e política do Século XXI. Somos uma força que trabalha em prol de um comércio global mais justo num contexto de grave crise do multilateralismo”.
Veja o discurso de Lula durante 78ª Assembleia da ONU na íntegra: