Sem delongas nem ambiguidades, a batalha política que definirá o futuro imediato da Argentina começou no dia 20 de dezembro. Dez dias após tomar posse, o governo de Javier Milei apresentou um plano de reorganização nacional através do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), intitulado “Bases para a reconstrução da economia argentina”, de forte caráter neoliberal e que passa por cima de conquistas democráticas históricas. O anúncio foi precedido pela implementação de um protocolo repressivo particularmente severo. No entanto, um protesto massivo e espontâneo de cidadãos respondeu imediatamente à prepotência do governo, tomou as ruas de surpresa e ridicularizou a tentativa do Executivo de “impor a ordem”. A pergunta que fica é: o Parlamento e/ou o Judiciário conseguirão travar os atropelos libertários de Milei?
Eletrochoque
Com a apresentação, em 20 de dezembro, do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) 70-2023, e a apresentação, seis dias depois (27 de dezembro), do projeto de lei denominado “Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”, o novo governo argentino mostrou que não se contenta em impor um ajuste feroz, cujo passo inicial foi o pacote de medidas anunciado em 12 de dezembro pelo ministro da Economia, Luis “Toto” Caputo, que incluía uma mega-desvalorização de 118% da moeda, entre outros pontos. O objetivo prioritário da extrema-direita argentina e de seus aliados no poder é mudar o modelo de acumulação pela raiz e, para isso, é preciso virar de cabeça para baixo as leis e os direitos fundamentais da Constituição Nacional.
A diferença com o governo da Frente de Todos (2019/2023), liderado por Alberto Fernández e Cristina Fernández de Kirchner, não poderia ser maior. Se a atuação peronista-kirchnerista foi de pura impotência, a dos ultralibertários é de pura prepotência. Se o governo anterior carregou do princípio ao fim um slogan implícito que dizia “não podemos fazer nada”, alegando uma suposta falta de consenso e de correlação de forças favoráveis, (o famoso “é o que é”), Javier Milei, pelo contrário, desde que tomou posse não parou de gritar “posso e quero absolutamente tudo, e quero agora”.
O nível de audácia com que pretende abalar a cena política é sem precedentes desde a restauração da democracia, há quarenta anos. Esta arrogância não é apenas um traço psicológico, mas uma característica muito atual da manifestação do poder. Consiste em apelar a uma força que não tem necessariamente um suporte material, mas que se torna dominante devido à convicção e à segurança com que é exercida. O principal recurso desta – digamos assim – ficção, é o seu poder de intimidação; a sua eficácia depende da capacidade de reduzir drasticamente as possibilidades que uma determinada situação oferece. Sobrecarrega quem tenta se opor, impondo a sensação de que ela é inevitável.
O presidente mãos de tesoura
O primeiro ponto do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) declara “a emergência pública em matéria econômica, financeira, fiscal, administrativa, de aposentadorias, de impostos, de saúde e assistência social até 31 de dezembro de 2025”. Com isso, os seus 366 artigos modificam 35 leis e seis decretos.
As revogações e modificações afetam várias áreas da vida social, sempre em um sentido de desregulamentação favorável às empresas privadas: desde a Lei do Aluguel, passando pela Lei das Gôndolas, a Lei do Observatório de Preços, as regulamentações que dificultavam a privatização de empresas públicas, o Sistema Nacional de Comércio Mineiro, a liberalização da compra de terras para estrangeiros, as leis de proteção ambiental, até questões como a desregulamentação dos preços dos medicamentos gratuitos, a precarização da legislação trabalhista, entre muitas outras.
O nível de detalhamento na elaboração dos regulamentos revela que os escritórios de advocacia das principais empresas do país participaram de sua formulação.
No caso do Projeto de “Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos” (Lei Ônibus), constam 664 artigos e, em consonância com o DNU, o presidente solicita ao Parlamento o reforço do poder público por meio de “delegações legislativas ao Poder Executivo nacional de emergência pública em matéria econômica, financeira, fiscal, social, previdenciária, de segurança, de defesa, tarifária, energética, de saúde e social”.
A “Lei Ônibus” interfere em quase todos os aspectos na vida das pessoas. O advogado e especialista em direito público Gustavo Arballo dividiu o projeto de lei em 55 tópicos principais, tomando como critério geral a separação de cada uma das leis que seriam modificadas. Vamos citar os temas mais relevantes:
- Reorganização administrativa (privatização de empresas públicas, contratos em vigor, gabinete anti-corrupção etc.);
- Reorganização econômica e desregulamentação (medidas fiscais, transferências imobiliárias, operações de crédito público, bioeconomia, comércio de carne);
- Segurança e defesa (organização de protestos, resistência à autoridade, autodefesa, etc.);
- Justiça (propriedade intelectual, julgamento com júri, transferência da Justiça Nacional para a cidade de Buenos Aires, etc.);
- Meio ambiente;
- Capital humano (cultura, educação, emprego público, etc.).
Direitos dos patrões
Mas talvez o aspecto mais marcante de ambas as regulamentações sejam as transformações regressivas em matéria trabalhista. Consultamos Matías Cremonte, presidente da Associação Latino-americana de Advogados Trabalhistas e assessor do sindicato dos trabalhadores do óleo, e sua opinião é clara: “Em sua magnitude e, em certo sentido, também em sua profundidade, a reforma trabalhista realizada através deste decreto só é comparável à realizada pela ditadura militar em 1976”.
Para ele, há duas rupturas essenciais: “A mais profunda, porque vai quase no âmago do direito do trabalho, é a reforma do artigo 23 da Lei do Contrato de Trabalho, que estabelece que há presunção de vínculo empregatício em todos os casos em que uma pessoa presta serviços para outra. O que o DNU faz é estabelecer uma exceção a este princípio geral, no sentido de que, se houver uma prestação de serviços ou de trabalho regida pelo Código Civil, esta deixa de ser considerada uma relação de trabalho. Assim, o trabalhador que é autônomo e assina um contrato forçado, pela necessidade ou pelo medo de perder o emprego, que hoje passa a ser abrangido pelo direito do trabalho, ficaria nas mãos do direito civil, como se estivesse em situação de igualdade com o empregador. Vejamos um exemplo: eu te contrato para trabalhar no meu escritório, e lhe digo: ‘bem, me emita a fatura para te pagar’. E você é um contribuinte único, portanto, emite a fatura todo mês. O artigo 23 presume que há um vínculo empregatício. Se você me processasse, você ganharia. Agora o DNU acrescenta um parágrafo que diz outra coisa: isso não é fraude se for um contrato de prestação de serviços. E é isso que eu vou dizer nesse caso, que eu o contratei para determinados serviços profissionais.”
O outro grande foco da mudança é a anulação dos direitos sindicais. “Podemos quase dizer que o direito à greve está proibido”, explica Cremonte. “Como se o governo soubesse conscientemente que todas estas reformas estruturais iriam gerar protestos sociais e, no caso dos trabalhadores, medidas de ação direta, o decreto restringe o direito à greve de uma forma nunca antes vista, exceto, claro, durante a ditadura militar. Considera quase todas as atividades como serviços essenciais, o que obriga à manutenção de um mínimo de efetivo durante a greve, que não deve ser inferior a 75% do efetivo normal em alguns casos e a 50% em outros, o que a torna completamente ineficaz. Introduz também como motivo de demissão por justa causa a participação em uma greve, se, no entender do empregador, ela implicar um piquete ou violar o direito ao trabalho de outro trabalhador. Em outras palavras, o empregador poderá caracterizar unilateralmente esta situação e despedir alguém por justa causa.”
Como afirma Cremonte, até então eram considerados essenciais os serviços de saúde e hospitalares; a produção e distribuição de água potável, eletricidade e gás; e o controle de tráfego aéreo. Nessas atividades, se os trabalhadores decidirem entrar em greve, devem garantir 75% de efetivo. Desde a entrada em vigor do DNU, passaram a ser essenciais as seguintes áreas:
1 . Os serviços de saúde e hospitalares, bem como o transporte e distribuição de medicamentos e material hospitalar e os serviços farmacêuticos;
2 . A produção, transporte e distribuição e comercialização de água potável, gás e outros combustíveis e eletricidade;
3. Serviços de telecomunicações, incluindo comunicações via internet e satélite;
4. Aeronáutica comercial e controle de tráfego aéreo e portuário; incluindo sinalização, drenagem, atracação, estivagem e reboque de navios;
5 . Serviços de alfândega e de imigração e outros serviços relacionados ao comércio exterior;
6 . Cuidados e educação de crianças nos níveis de creche, pré-escolar, primário e secundário, bem como educação especial.
Agora, através do DNU, o governo também introduziu uma outra categoria chamada “serviços transcendentais”, o que significa que os trabalhadores dessas categorias têm de garantir 50% de presença efetiva durante as paralisações. São considerados como serviços transcendentais os seguintes ramos de trabalho:
- Produção de medicamentos e/ou suprimentos hospitalares;
- Transportes marítimos, fluviais, terrestres e subterrâneos de pessoas e/ou mercadorias através dos diferentes meios utilizados para esse fim;
- Serviços de rádio e televisão;
- Atividades industriais contínuas, incluindo a produção de ferro, aço e alumínio, a atividade química e a atividade cimenteira;
- Indústria alimentícia em toda a sua cadeia de valor;
- Produção e distribuição de materiais de construção, serviços de reparação de aeronaves e navios, todos os serviços portuários e aeroportuários, serviços de logística, atividade mineira, atividade de refrigeração, serviços postais, distribuição e comercialização de alimentos e bebidas, atividade agrícola e sua cadeia de valor;
- Serviços bancários e financeiros, serviços de hotelaria e restauração e comércio eletrônico; e
- A produção de bens e/ou serviços de qualquer atividade, que foram afetados por acordos de exportação.
Mas a reforma trabalhista é ainda mais ambiciosa. Vejamos uma lista de pontos centrais introduzidos nas novas leis, que sempre foram o sonho dos proprietários da Argentina:
- O período de experiência é estendido de 3 para 8 meses.
- Os empregadores poderão flexibilizar o horário de trabalho através de acordos coletivos de trabalho. Ou seja, podem aumentar a jornada de trabalho de 8 horas diárias (o máximo possível atualmente) para 12 horas durante algumas semanas, compensando depois na semana seguinte com menos horas. Isto ficaria a critério do empregador, e permitiria reduzir as horas extras e as folgas compensatórias.
- No âmbito da terceirização de mão de obra, o decreto permite que, se o trabalhador for contratado por uma empresa através de outra empresa – as famosas empresas terceirizadas –, seu vínculo empregatício seria, em primeira instância, com a intermediária e não com a empresa para a qual ele efetivamente trabalha. Se sofrer uma quebra do contrato, terá primeiro que entrar com uma ação judicial contra a empresa terceirizada e depois contra o empregador real. Esta situação pode dar origem a um festival de contratantes a quem será difícil recorrer por demissões e/ou por arbitrariedades.
- As indenizações por demissão sofrem alterações importantes, sempre a favor dos empregadores. Mas, além disso, as empresas podem criar um fundo de indenização que consiste em abrir uma conta que será abastecida com uma contribuição mensal (a cargo do proprietário) de um máximo de 8% do salário do trabalhador. Pode-se até contratar uma empresa para gerir este fundo, que pagará ao trabalhador se ele for demitido. A indenização por tempo de serviço, que deveria ser uma sanção à empresa, ou seja, uma forma de desestimular as demissões, torna-se um negócio para o mercado.
- Sobre a licença maternidade: as mulheres grávidas hoje param de trabalhar 45 dias antes do parto, com o DNU elas podem optar por trabalhar até 10 dias antes do parto. Esses 35 dias não serão perdidos, mas podem ser tirados pela trabalhadora após o parto. A questão é que isso permite aos empregadores pressionar as trabalhadoras a continuarem trabalhando até uma data mais próxima do dia do parto.
- Cria-se a figura do trabalhador independente, cuja principal novidade é o fato de poder ter até cinco colaboradores sem que isso signifique uma relação de dependência empregatícia, o que dilui qualquer tipo de direito trabalhista nas pequenas empresas.
Para concluir esta seção, analisamos a grave situação dos trabalhadores do setor público.
Um segundo decreto publicado no dia 23 de dezembro, intitulado “Recrutamento de pessoal”, põe fim a todos os contratos de funcionários públicos que tenham iniciado em 1 de janeiro de 2023. São cerca de 7 mil pessoas. Através desse decreto, Milei ordena a revisão de todos os contratos anteriores a essa data que não gozem do regime formal do sindicato público (equipe permanente). Agora o Executivo tem o poder de avaliar a continuidade do servidor público, e a eventual renovação do contrato será trimestral e não anual, como acontecia até agora. De acordo com a Associação dos Trabalhadores do Estado (ATE), cerca de 65 mil pessoas ficarão sujeitas ao controle permanente das novas autoridades.
Por último, o projeto de “Lei Ônibus” inclui um ponto crucial que poderá ser um ponto de virada para os trabalhadores do Estado: se aprovado, criará um Fundo de Recolocação Trabalhista para pagar durante 12 meses os salários dos funcionários do Estado que estão sem função, a “planta permanente”, cujos cargos ou áreas foram eliminados pelo presidente. Se estes funcionários não conseguirem recolocação em outro posto no próprio Estado ou no setor privado (as empresas teriam benefícios fiscais se contratassem estes agentes do Estado) durante este ano de carência, seriam despedidos por justa causa, com pagamento de uma indenização.
Presidência da Armênia
Cerimônia de posse de Javier Milei, em 10 de dezembro de 2023.
Guerra e capital
Um aspecto pouco analisado da ofensiva libertária é a luta que desencadeia no seio dos setores dominantes. Mónica Peralta Ramos é uma brilhante analista destas tensões do capital e por isso pedimos a ela a sua análise das consequências das regulamentações propostas pelo governo de Milei: “A primeira coisa que provoca é uma brutal transferência de renda imediata, que vai dos setores médios e populares até um punhado de empresas locais com inserção multinacional, entre as quais se destacam os três grupos da ‘patria contratista’ (grandes empreiteiras com contratos com o Estado), que são a Techint, (Eduardo) Eurnekian [Corporación Aeropuertos Argentina 2000] e (Eduardo) Elsztain [grupo IRSA]. Mas outros empresários individuais também estão incluídos nisso, com peso relativo menor ou diferente. O interessante é que se trata de um conjunto de medidas que não têm uma direção comum, ou seja, não há grupos da patria contratista defendendo seus interesses próprios, mas sim reproduções do que tem acontecido até agora: é um todos contra todos em que sobressai a lei do mais forte”.
A socióloga especializado em assuntos econômicos, autora de um livro canônico intitulado Etapas de acumulación y alianzas de clase en la Argentina (1930-1970), afirma que a depreciação da moeda beneficiou sobretudo os grandes formadores de preços que vinham aumentando constantemente seus preços, especialmente os dos insumos amplamente difundidos e das grandes empresas de alimentos: “Isso alimenta a luta de outras empresas para atualizar seus preços e ambos os processos serão ainda mais reforçados pelas seguintes medidas: aumento dos preços da energia no curto prazo e um dólar oficial crescendo apenas a 2% até abril. Esse descompasso entre a formação de preços e a evolução do dólar oficial impulsiona a corrida ao dólar, que, por sua vez, é alimentada pela existência de dólares novos no Banco Central, graças ao que foi alcançado até agora com as medidas iniciais”.
O curioso, segundo Peralta Ramos, é que o governo, graças ao pacote de mudanças anunciado pelo ministro Caputo, o DNU 70/2023, atualmente em vigor, e à possibilidade de aprovação da Lei Ônibus, cumpre as medidas que o Fundo Monetário Internacional (FMI) não havia conseguido impor até agora: aprofundamento da primarização da economia e controle monopolista e estrangeiro, especialmente de recursos estratégicos. Neste contexto, a pesquisadora foca na próxima liquidação da colheita: “O governo acredita que com tudo isto vai conseguir liquidar, mas é muito possível que os exportadores não liquidem face à inflação e à corrida ao mercado, na expectativa de uma nova desvalorização. Em outras palavras, os exportadores estão sendo encorajados a não liquidarem, enquanto os importadores estão sendo intimidados a armazenar mercadorias. É o que tem acontecido em todos os momentos desde a ditadura”.
Por fim, ela alerta que, se as medidas de ajuste adotadas e o decreto funcionarem, o governo poderá fazer a dolarização a preços baixos com aportes do Tesouro, do FMI e de dois grandes bancos americanos que estão por trás do Plano Caputo, ao que se somaria – se isso acontecer – a liquidação das reservas dos exportadores. “Outro aspecto do salto de desvalorização é a liquidação das Leliqs [Letras de Liquidez – instrumento de dívida remunerada do Banco Central argentino com bancos] e dos ativos do país, fundamentais para a dolarização. Então a dolarização seria uma fantástica camisa de força para o conflito social e para a luta entre setores da ‘patria contratista’
Bens comuns a quem paga mais
Com a mesma intensidade com que ferem a classe trabalhadora, tanto o DNU como a Lei Ônibus atingem também os recursos naturais. A retirada do Estado nessa área sensível é abismal.
Em primeiro lugar, o DNU anunciado em rede nacional revoga a Lei de Terras Rurais, que data de 2011 e que, desde então, tem sido um obstáculo à estrangeirização da terra. Um caso paradigmático que poderia ter surgido antes desta regulamentação é o do magnata inglês Joe Lewis, que comprou 8 mil hectares junto ao lago Escondido, na Patagônia, em 1996, o que significou a quase privatização deste local público. Mas o caso emblemático é o da família italiana Benetton, com os seus 900 mil hectares, também no sul da Patagônia. Desde a revogação da lei, novos casos semelhantes serão possíveis, porque o limite para a venda de hectares a estrangeiros também foi eliminado. De acordo com o Registo Nacional de Terras Rurais, o ranking da propriedade estrangeira era liderado por empresas norte-americanas (2,7 milhões de hectares em todo o país), italianas (2,1 milhões de hectares) e espanholas (1,8 milhões).
Em segundo lugar, o controverso decreto revoga a Lei 24.523, sobre o Sistema Nacional de Comércio Mineiro, e a Lei 24.695, sobre o Banco Nacional de Informação Mineira, adicionando mais nebulosidade a uma atividade que já tem poucas regulamentações. Um relatório detalhado da Associação Argentina de Advogados Ambientalistas sublinha a ironia implícita na regulamentação.
Quanto ao setor energético, o DNU revoga seis leis e torna sem efeito 21 artigos da Lei nº 27424, que previam incentivos às energias renováveis.
A Lei Ônibus, por sua vez, é a cereja do bolo. Dois retrocessos em matéria ambiental se destacam: a Lei Florestal (2007), que colocou freios no desmatamento desenfreado a serviço do avanço da fronteira agroindustrial, e a Lei das Geleiras (2010), que abre as portas para a atividade de mineração em solos congelados e que atua como reguladora dos recursos hídricos. Ambas as regulamentações foram conquistadas após anos de luta e com grande apoio social, e agora vão ser apagadas com um golpe de caneta.
Outra: estão sendo introduzidas modificações estruturais no Regime Federal de Pesca, eliminando os benefícios para as embarcações nacionais e a obrigação de desembarcar os produtos da pesca nos portos argentinos.
Finalmente, há o caso dos hidrocarbonetos, que foi estudado minuciosamente pelo Observatorio Petrolero Sur. De acordo com um pesquisador do grupo, Esteban Martine, a lei muda o objetivo de “satisfazer as necessidades de hidrocarbonetos do país com o que é produzido nos seus campos petrolíferos”, substituindo-o pela missão de “maximizar a renda obtida [dos hidrocarbonetos]”. Em suma, estabelece a liberdade de comércio sem dar prioridade ao mercado interno, elimina qualquer tipo de regulação dos preços, dissolve as preferências da empresa estatal e libera as exportações. “Se for aplicado, pode levar à situação ridícula de uma empresa exportar sem garantir o abastecimento interno e outra (ou a mesma) importar e cobrar preços em dólares para os distribuidores, que por sua vez repassariam o preço aos usuários”.
Enrique Viale, membro da Associação Argentina de Advogados Ambientalistas (AADEAA), resume o significado dessas modificações alarmantes: “Em matéria socioambiental, mexe com a espinha dorsal da legislação ambiental argentina, leis que nasceram nas ruas, que nasceram de muito debate público, anos de reuniões de assinaturas, reuniões e debates muito acalorados no Congresso Nacional, e que se confrontaram com grandes lobbies. Estamos falando da lei florestal e da lei das geleiras. Agora temos um presidente que é feito sob medida para as grandes corporações (a casta real, a casta internacional, a casta do petróleo, da mineração e do agronegócio), que faz leis para atendê-las, e reforma leis para atendê-las, mas atingindo o coração de cada uma dessas leis e deixando-as muito enfraquecidas. Nos parece chave lutar contra isso; não é só uma coisa qualquer, é a nossa democracia que está em jogo, são as leis mais simbólicas do movimento socioambiental. Se voltarmos atrás nessa, será muito difícil recuperar a consciência ambiental no país”.
O nascimento de um tirano
Até aqui, nos dedicamos a analisar o conteúdo dos regulamentos antecipados e propostos pelo governo de Javier Milei. Vamos deter-nos um pouco na questão formal, na notável apropriação, pelo Executivo, de poderes que correspondem ao Poder Legislativo.
Nos últimos dias, tornou-se viral um vídeo de um fragmento de um debate presidencial realizado durante a campanha eleitoral do ano passado, no qual o atual presidente questiona a candidata do Juntos por el Cambio, a atual ministra da Segurança, Patricia Bullrich, por ela ter avisado que revogaria leis por decreto. Perguntou-lhe se ela queria instaurar uma ditadura. Exatamente o que fez Milei dez dias depois de ter iniciado o seu governo.
Conversamos com um dos mais importantes jornalistas políticos do país, o historiador Carlos Pagni, sobre este assunto. As reflexões deste que é talvez o principal autor do histórico jornal pró-establishment La Nación são duplamente valiosas, porque representam um debate dentro do campo liberal, que pode ser fundamental no período que está se abrindo. Vejamos o que diz: “A primeira pergunta é se estamos perante algo meramente instrumental: um governo que se propõe fazer um ajuste macroeconômico ortodoxo, que exige medidas muito drásticas, interpreta que foi eleito para esse fim, mas não tem os instrumentos institucionais para o fazer, ou seja, não tem força parlamentar. Portanto, tem de recorrer aos instrumentos previstos na Constituição para resolver esta contradição entre uma grande demanda político-administrativa e uma grande carência institucional. Ora, há algumas características que nos fazem duvidar de que isto seja meramente instrumental. A primeira é o alcance destas medidas, que aspiram a uma espécie de remodelação total da vida pública, da vida do Estado, da relação entre o povo e o Estado, naquilo que podemos chamar um espírito revolucionário, que consiste em aplicar um conceito, um projeto mental, à realidade. E, por outro lado, há uma estética e uma retórica que envolve estas medidas normativas. Não podemos dissociar o decreto de necessidade e urgência do discurso de posse de Milei, que fala de costas para o Congresso, como se este fosse o covil de uma classe política responsável pelos cem anos de decadência que ele veio corrigir. Tudo isto coloca estas medidas no horizonte de uma concepção populista do poder, no sentido mais estrito, ou seja, uma concepção do poder que entende que a única legitimidade é a do líder que recebe o mandato popular. Esta ideia, no caso de Milei, é uma ideia muito intensa, que beira o religioso. Estamos, portanto, na presença de algo muito novo que não vimos com Menem, nem vimos com Macri, que é uma direita que se interpreta como moralmente superior. Procede assim em nome dos bons argentinos, em nome do bem. Essa superioridade moral, que normalmente é atribuída à esquerda, vemos agora encarnada em um grupo político de direita, que se vê como liberal e que tem traços que são muito característicos da tradição liberal argentina, que é uma tradição que paradoxalmente, ou contraditoriamente, se apoia muito na concentração de poder e se apoia muito no Estado. E esta é uma caraterística que, segundo alguns historiadores, remonta ao século XVIII, ao tempo dos Bourbons. Resta saber qual será a reação a isto. Há um livro que está muito na moda, chamado Syndrome 1933, de Sigmund Ginzburg, que fala sobre o que aconteceu na Alemanha em 1933. Diz que a República de Weimar terminou no dia em que os juízes não puderam contestar as medidas de emergência que o então extravagante governo de Adolf Hitler tinha posto em prática. Sem exagerar nas comparações, a cena é composta por muitos atores: não apenas Milei e os seus decretos”.
Pagni alude, na parte final da sua reflexão, à resposta que se pode esperar dos poderes judicial e legislativo, no quadro de uma República. Mas iremos aprofundar este assunto nas próximas partes desse artigo.
(*) Tradução de Raul Chiliani
Esta é a primeira parte de uma série de artigos. Leia aqui a segunda parte da série.