Ontem a Patricia Hill Collins falou na Universidade de São Paulo sobre alguns pontos de sua pesquisa sobre o pensamento feminista negro, a partir de um livro que foi escrito há trinta anos. Isso chama atenção. Há trinta anos autoras negras, do Brasil e de fora, têm feito análises, categorizações, articulações entre prática e teorização. Enfim. Agora temos a oportunidade de ler essas autoras em português por uma série de motivos, uns bons outros nem tanto, mas não é disso que quero falar.
Parece sintomático que a maioria de pessoas que teve de pegar os fones para a tradução simultânea no evento fosse negra, as pessoas brancas entendiam muito bem o inglês da autora. Também é sintomático que, ao falar de amor, Patricia praticamente gere uma bipartição filosófica na plateia, imagino que para os brancos o tema do amor na política tenha sido desenvolvido, quiçá superado, num primeiro momento pela questão do patriotismo latino-americano, depois do autocuidado feminista e LGBTT, por fim, em relação aos pleitos ambientais.
Para as pessoas negras da plenária, suponho, o amor como forma de luta adquire um outro viés, talvez ainda pouco contornável, pouco historicizável, pouco definível como conceito fixo. À grande parte das famílias negras e pobres, o amor está reservado como forma romântica propagada nas telenovelas, o amor massificado, a ideia apaziguadora do bem estar social. Também, por outro lado, está associado à violência cotidiana, às surras como modo de fortalecimento, a educação pela pedra (que eu elogio em minha história, de modo vacilante, porque algo em mim diz que não precisava ter sido assim), assédios domésticos causados pelo desespero financeiro, social, racial.
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Será que é desse amor que Patricia Hill Collins fala quando nos diz que amar uma mulher negra é um ato revolucionário?
Nós, que fomos designadas ao não-amor, à desumanização histórica e econômica, ao sucateamento de nossa existência, ficamos surpresas na descoberta de que podemos amar e ser amadas. Não estou falando aqui de casos específicos, mas da possibilidade de sermos vistas como um conjunto político também perpassado pelo afeto, pelo afetamento, a afecção do outro. Talvez ser sujeito do amor possa ser uma maneira de se deslocar da posição de objeto do desamor.
Conlutas
Marielle morta não pode derrubar ninguém
Quem sempre soube o que é o amor não entende mesmo o que isso quer dizer. Penso que a comparação material possa se dar com a ideia do privilégio social, prato de comida na mesa, escola de qualidade, saúde, saneamento básico, remuneração digna. Amor pra gente preta também é coisa que às vezes falta, é direito, é acesso da mente e da carne que muda o jeito da gente viver a própria vida.
Estou falando isso porque hoje mais uma notícia sobre Marielle Franco nos inunda as redes sociais, e mais uma vez o nome de Marielle é projetado com a densidade de mártir, de heroína. A Bianca Gonçalves essa manhã comentou bem: requentam a frase de que Marielle, mesmo morta, vai derrubar Bolsonaro. Ora, isso é a expressão total do desamor à ideia de Marielle como agente do mundo público. Lembrar a nós, mulheres negras e, portanto, à maioria da população, que Marielle está morta e assim pode mudar o mundo é uma maneira barata, senil e cruel de vincular nossas representações políticas a uma atividade póstuma, incompatível com o tempo presente material.
Não, Marielle morta não pode derrubar ninguém, a exigência social, massificada, por justiça sim, a pressão popular sobre os órgãos responsáveis sim, a manifestação pública de nosso descontentamento como povo sim.
Há que se ter cuidado com a manipulação dos símbolos, há que se ter amor por mulheres negras também quando elas viram uma ideia, parte volátil da linguagem. Marielle não vai nos salvar, e ela não é responsável por isso, mas nós como corpo social precisamos sim ser responsáveis por reivindicar, com todo amor as mulheres negras desse país – como se o amor fosse um prato de comida, escola de qualidade, hospital bom, valorização política, além de ser o que é, algo inominável, inenarrável – que sua memória não seja esvaziada por um fetichismo anacrônico, vazio e despropositado. Marielle nunca falhou conosco, nós também não devemos falhar com ela. Marielle presente, agora e sempre.