São crianças de quatro a oito anos. Têm medo de ir ao parque, de brincar do lado de fora ou de ficarem sozinhas em casa. A causa comum de todos esses traumas: o narcotráfico. Em Ciudad Juárez, cidade mexicana abalada pela criminalidade, 85% das crianças considera a rua como o lugar mais perigoso para se estar, conforme revela o livro Un, dos, tres por mi y por todos mis amigos, publicado em março. Testemunhos e desenhos feitos por crianças de Juárez foram reunidos pela Associação Civil Ririki e dão voz a milhares de meninas e meninos que lidam todos os dias com os desafios de se viver em uma das cidades mais perigosas do mundo. Segundo a Secretaria de Defesa Nacional do México, 1.326 menores de 18 anos foram assassinados desde 2006 em episódios relacionados ao narcotráfico em Juárez.
Em entrevista ao Opera Mundi, Nashieli Ramírez, diretora da Ririki e coordenadora nacional do projeto Infância e Movimento, fala sobre segurança infantil, migração no México e o trabalho desempenhado junto às crianças, que apresentam traumas similares às daquelas que vivem em zonas de guerra.
“Crianças medem o pulso da mobilidade social, da marginalidade urbana e o desencanto em relação ao futuro”, diz Ramírez
Como é o trabalho da Associação Civil Ririki?
Há três anos iniciamos um programa chamado Infância em Movimento, financiado em parte pela Fundação Bernard van Leer, que trabalha com temas como a diversidade e a inclusão social. Depois de um diagnóstico, constatamos a necessidade de estudar as migrações. Sem descartar a migração transnacional, preferimos tratar da migração interna. Ela tem várias facetas. É a migração dos bóias-frias, que representam a população infantil mais indefesa e pobre do México. Depois vem a migração dos indígenas através do país. Finalmente, há a migração rumo às megacidades, especialmente em direção à fronteira, neste caso a fronteira norte.
Na fotografia de Ricardo Andrés Márquez Salazar, garotos simulam brincadeira com armas
Trabalhamos com indicadores da infância. Quando você percebe que todos os indicadores de bem-estar tradicionais são melhores nas zonas de alta concentração e acelerado crescimento urbano e de emprego, como a fronteira norte, pode se iludir achando que não há problema. Na verdade, esses indicadores não são sinceros, refletem uma realidade inventada. E o que está acontecendo em Ciudad Juárez – a violência, as matanças, a falta de segurança – não é notícia. Nós já havíamos percebido a situação há cinco anos. Por isso escolhemos Juárez, porque os indicadores nos diziam que lá estava acontecendo algo.
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O problema surge antes do vício em drogas e da criminalidade infantil. Em Juárez, há um nível altíssimo de desamparo infantil causado pela flexibilidade do trabalho nas tecelagens, onde a maioria das mães trabalha. Por outro lado, trata-se de uma cidade que cresceu, mas onde os transportes são um elemento de exclusão social. Você pode levar três horas indo de um lado a outro com o transporte público. Por isso, apenas 30% das crianças do primeiro ano primário têm a idade certa para sua série. As demais são mais velhas. Isso porque as mães as matriculam na pré-escola quando elas já estão grandes, para que possam ir sozinhas. As mães não podem levá-las nem buscá-las.
O que o livro retrata sobre a realidade das crianças?
Ele é resultado de três fatores. Um deles foi o diagnóstico inicial para determinar em quais zonas de Ciudad Juárez trabalharíamos. Realizamos mais de três mil pesquisas quantitativas para crianças de sete e oito anos. Já a partir dessas pesquisas surgiu a informação de que mais de 85% consideram a rua insegura, além de pontos bastante drásticos que têm muito a ver com o livro – que seis em cada 10 acham que suas opiniões valem menos que as dos adultos. Quando lembramos que nesta cidade vivem pouco mais de 250 mil meninos e meninas de até oito anos, o dado se torna mais importante. E quando consideramos que mais da metade da população de Ciudad Juárez é formada por crianças, adolescentes e jovens com menos de 25 anos, entendemos como, nesta cidade, pelo menos 30% dos habitantes – os mais novos – estão totalmente marginalizados em relação às decisões de política pública tomadas em seu nome.
Como se estrutura o trabalho das organizações? Quais são as conclusões mais relevantes?
Sempre trabalhamos com muitas organizações locais e, como estratégia, tratamos de fazer um trabalho de rede. Trabalhamos com consultas infantis, oficinas de desenho, jogos para crianças de quatro a oito anos, pesquisando indicadores de segurança, de percepção de segurança, da violência, dos adultos, questões de discriminação. Um dado importante é a maneira como lidamos com o tema de gênero sexual. Seis em cada 10 crianças de sete anos dizem que as meninas e meninos não podem fazer as mesmas coisas ou brincar juntos, o que significa que as configurações de gênero e discriminação têm de ser trabalhadas desde a primeira infância.
“Meu desenho é um casa onde uns senhores estão atirando um contra o outro e ali fico muito triste”. Lesli Berzabé, 8 anos
Não há pesquisas específicas sobre a violência no México, em nenhuma parte do país. Por isso, quando percebemos que as crianças podem definir o medo com os tiroteios, ou com os mortos na rua, ou com o fato de serem roubadas ou agredidas na rua pelos adultos, fica óbvio que Ciudad Juárez é um lugar verdadeiramente inseguro para elas.
A segunda etapa é a criação de dois programas. Um deles é o Paso a pasito, um programa para recuperar espaços com foco em direitos e na educação para a paz. O outro programa é de capacitação das pessoas que cuidam de crianças. A terceira etapa são os diários de campo, em que relatam as experiências.
Como Ciudad Juárez ficou marcada para a senhora?
É uma cidade que permaneceu abandonada durante muitos anos. Ela sempre foi apontada como uma cidade violenta, mas tornou-se um território de guerra há três anos, quando começou a “estratégia Juárez” de segurança [envio de militares para o combate do narcotráfico], o que piorou ainda mais o quadro de uma cidade já abalada por muitos problemas. E era possível enxergar isso nos indicadores das crianças, pois elas medem o pulso da mobilidade social, da marginalidade urbana e, neste caso, do desencanto em relação ao futuro. É preciso entender que Juárez é mais do que uma guerra do narcotráfico envolvendo cartéis. É necessário reconstruir totalmente a rede social com programas de infância que tenham uma lógica comunitária.
“Sou eu em um hotel para traficantes, com maçanetas de ouro. Aquele que irá pular na piscina sou eu”. Irving Leonard, 8 anos, colonia de Cazadores Juarenses
Qual é a importância de publicar o livro em um momento de crescente violência no México?
Quisemos adiantar um pouco nosso trabalho e garantir a publicação do livro por acreditar que é necessário falar sobre os temas das crianças de um maneira séria. Precisamos aproveitar a atenção midiática para impedir que os assuntos que consideramos extremamente relevantes passem para o segundo plano. Antes das mortes, para evitá-las, é necessário um trabalho social, que começa justamente pelos cidadãos mais novos. Se as crianças são importantes o bastante para ser recrutadas pelos bandos já aos 10 anos, é preciso envolvê-las ativamente nas políticas públicas para que possam ter um futuro.
*Texto e fotos
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