Nesta calorosa tarde de quinta-feira (23/11) em Buenos Aires, na Argentina, centenas de pessoas compareceram à praça da sede presidencial, a Casa Rosada, sob um calor de 30º para a primeira marcha das Mães da Praça de Maio após a eleição presidencial do último domingo (19/11).
Com a vitória do liberal libertário Javier Milei (A Liberdade Avança) com 55,6% dos votos, a marcha ganhou uma conotação especial para as centenas de pessoas que marcharam com as Mães, hoje já idosas e muitas em cadeiras de rodas. Os tradicionais cânticos das marchas, como “mães da praça, o povo as abraça” se misturavam aos gritos de “Milei, lixo, você é a ditadura!”.
A histórica marcha é realizada a cada quinta-feira desde que as mães que buscavam seus filhos e parentes desaparecidos pela ditadura militar se mobilizaram nessa mesma praça.
Até hoje, elas usam o lenço branco na cabeça que, originalmente, servia para que se identificassem mutuamente. Com o calor, foram acompanhadas com grandes guarda-sóis e rodeadas de pessoas que queriam abraçá-las e tirar fotos com elas.
“Estamos aqui porque não votamos nesse governo”, disse a Mãe da Praça de Maio Carmen “Tota” Ramiro de Guede a Opera Mundi. “A maioria votou por uma mudança, mas o que vem é muito pior”.
O fantasma da ditadura
A chapa vencedora da eleição presidencial é conformada por Javier Milei, economista ultraliberal, e sua vice Victoria Villarruel, cujo pai e tio foram militares repressores da ditadura argentina.
Seu setor nega que haja 30 mil desaparecidos da ditadura, dizem ter sido uma “guerra” e reivindicam como vítimas as famílias dos assassinados pelas guerrilhas de resistência da ditadura.
“Hoje é um dia especial porque o governo que vai assumir é conformado por negacionistas”, ressaltou Carmen de Guede durante a marcha. “Estamos esperando que abram os registros [dos militares] para saber o que aconteceu com nossos filhos.
Carmen acrescenta que “são 30 mil desaparecidos que temos registrados, e esse governo que vai assumir nega tudo”. Ela teve o marido, seu filho mais velho e sua nora grávida sequestrados pelos militares. Costuma dizer que tem, então, quatro familiares desaparecidos. “Meu neto, se o deixaram nascer, não encontramos ainda”.
Fernanda Paixão
Ato das Mães da Praça de Maio foi marcado por cartazes e cânticos contra o presidente eleito Javier Milei
Além disso, há outra ferida nacional que a eleição de Javier Milei toca: os bens e as conquistas públicas. Como força política, a Liberdade Avança defende como solução econômica o setor privado e propõe um corte profundo nos gastos públicos para chegar a um déficit fiscal zero, o que implica a paralisação de obras públicas, a privatização da educação e saúde e a eliminação dos fundos nacionais para as províncias.
“O que querem fazer é inviável”, disse o jornalista e locutor da Rádio das Mães da Praça de Maio, Daniel Rosso, que discursou no pequeno stand armado em um dos cantos da praça lotada. “Quanto mais queiram esvaziar o espaço público, mais multiplicaremos nossas vozes e em mais praças estaremos”, ressaltou, seguido de muitos aplausos.
“O movimento popular é sumamente potente, provamos durante muitos anos e vamos provar nos próximos. Estamos comemorando 40 anos de democracia, mas na verdade, são muito mais de 40 anos, porque a democracia começou a nascer quando as Mães começaram a estar nesta praça”, concluiu o locutor.
Um cartaz que dizia “Nacionalização da YPF e do lítio: não queremos uma nova Potosí” chamava a atenção entre o mar de pessoas e bandeiras com o símbolo das mães, o lenço.
Quem sustenta o cartaz é Pablo Luna, ex-trabalhador da YPF (sigla de Yacimientos Petrolíferos Fiscales), petrolífera estatal recuperada nos anos kirchneristas após o processo de privatização dos anos 1990. Hoje, a empresa volta a estar na mira de um governo neoliberal com Javier Milei.
“Nos anos 90, vivemos algo parecido ao que Milei está propondo”, afirma Luna a Opera Mundi. “Ele quer vender de novo YPF, Aerolíneas, e nós já vivemos essa história. Nos 90, muitos trabalhadores ficaram na rua. O povo argentino sofreu muito”, disse. Conta que, assim como milhares de outros trabalhadores estatais, perdeu seu emprego no processo de privatização. Sua família foi fortemente impactada, e ele diz ter adoecido na época. “Quase morri. Muitos companheiros se suicidaram ou ficaram na rua. Não quero que a história se repita”, enfatiza.
Além do forte simbolismo de coletividade e reivindicação dos direitos humanos e trabalhistas, a ronda desta quinta teve mais um elemento: o aniversário do primeiro ano de morte da presidenta da Associação das Mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini, falecida no dia 20 de novembro de 2022.
Homenageada em cartazes, em discursos e em lágrimas que também estiveram presentes na praça, mais uma vez o legado de Hebe foi comemorado na histórica praça onde essas mulheres começaram sua luta pelos direitos humanos, enfrentando os militares contando apenas com sua convicção e valentia.
“Estamos nesta praça, como todas as quintas, lembrando também de Hebe, que faleceu há um ano”, lembra Carmen de Guede. “Vamos resistir e mobilizar-nos para enfrentar o que está por vir”, diz de Guede. Ao finalizar o discurso da tarde, remarcou a tradição: “vejo vocês na próxima quinta-feira”.