Entre 1994 e 2008, o especialista policial belga Eddie Hendrickx atuou no treinamento das forças de segurança sul-africanas no pós-apartheid, mas há mais de vinte anos estuda e lida com o comportamento policial ao redor do mundo. A Opera Mundi, ele conta o processo de desmilitarização da polícia como fator fundamental para a redemocratização de um governo.
Patrícia Dichtchekenian/OM
Hendrickx: 'polícia deve entender que o conflito não é necessariamente algo negativo, mas que ele contribui para mudança'
“A militarização é uma solução fácil para atacar um problema complexo”, sintetiza Hendrickx, que esteve em São Paulo recentemente para participar do XIV Colóquio Internacional de Direitos Humanos. “Uma definição de espírito militarizado é quando eu recebo uma ordem de meu superior e não posso refletir sobre essa ordem, nem tenho o direito de refutá-la”, explica.
No caso da África do Sul, esse processo em que não há espaço para a crítica ou reflexão foi posto em xeque somente em 1994, em meio às primeiras eleições presidenciais livres das regras do sistema de segregação racial. Após o pleito, em 27 de abril daquele ano, marcando o “Dia da Liberdade” para os sul-africanos, o novo governo de Nelson Mandela decidiu mudar a polícia, o Exército e todas as suas instituições.
“As autoridades sul-africanas fizeram muitas pesquisas para comparar como as outras polícias se organizavam pelo mundo. De pouco em pouco, a instituição foi desmilitarizada e todas as leis que organizavam ou reorganizavam o aparato policial foram rapidamente votadas. Foi fácil de colocar em prática, pois houve muita vontade política de mudar de forma eficaz a polícia naquele momento”, argumenta Hendrickx.
Nesse processo que durou quase oito anos, uma das principais inspirações de desmilitarização foi o princípio da polícia comunitária que vem da Grã Bretanha. Segundo o consultor belga, o modelo inglês nunca partiu de um viés militar desde a sua criação, no século XIX, e aplica a filosofia de que “a polícia é o povo e o povo é a polícia”. Em outras palavras, o poder da instituição deve ser usado somente para contribuir à gestão dos cidadãos.
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Muro na África do Sul em homenagem a Mandela: primeiro governo a se preocupar com uma nova mentalidade policial
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Na prática, Hendrickx conta que trabalhou pela profissionalização de todos os postos policiais, sob o princípio da polícia comunitária, para proporcionar serviços tendo em vista sempre as necessidades da população. Além disso, os responsáveis pela gestão de eventos públicos (protestos, atos, etc) receberam novos treinamentos para reagir com a mentalidade de que os cidadãos podem, porventura, agir de forma agressiva, mas eles jamais devem ser vistos como inimigos.
“Há estudos de acadêmicos sul-africanos que confirmam que, durante o período de desmilitarização, no nível de gestão de eventos de ordem pública, apenas duas pessoas morreram no país em oito anos”, afirma. “Mas a partir de 2008, a polícia voltar a se remilitarizar e o número de vitimas em eventos públicos aumentou muito com o recrudescimento da violência”, lamenta o especialista.
A remilitarização policial na África do Sul ganhou mais força com a entrada do atual presidente, Jacob Zuma, à frente do poder desde 2009. Para Eddie Hendrickx, esse retorno à militarização reverteu a lógica da “lei” e da “ordem”. “Ao impor primeiro a ordem, os policiais se esquecem da lei e esta que deve garantir os direitos humanos dos manifestantes”, explica.
Patrícia DIchtchekenian/OM
Hendrickx participou de mesa sobre violência policial em colóquio sobre direitos humanos organizado pela ONG Conectas
“Devemos poder nos manifestar nas vias públicas. A sociedade precisa do confronto e do debate. Portanto, a polícia deve entender que o conflito não é necessariamente algo negativo, mas que ele contribui para uma mudança”, acredita.
Questionado sobre a onda de assassinatos realizados por policiais contra negros desarmados nos Estados Unidos, o especialista afirma que os policiais norte-americanos parecem não compreender os interesses de grupos marginalizados.
“Eu falo do que eu leio, pois eu não atuei lá. Mas acho que a polícia dos EUA deve se questionar sobre o modo como ela se organiza e como ela deve agir pelo bem do interesse público. A policia está lá para atender aos interesses e às vidas de todas as pessoas, não só de um grupo. Isso é o essencial que a polícia deve ter em mente”, sustenta.