Texto publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo em 25 de agosto de 2002.
O filósofo francês Edgar Morin foi um dos conferencistas de um evento promovido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para discutir educação e cultura na transição entre os séculos 20 e 21.
Morin é hoje uma espécie de filósofo de uma nova era. Prega a construção de uma nova forma de pensar, que permita a religação dos saberes e a abordagem dos problemas de uma forma global. Para ele, é preciso “reunir o que foi artificialmente separado”. Não se intimida em citar Jesus Cristo e Maomé como criadores de grupos inicialmente pequenos que, aos poucos, conquistaram grande parcela da humanidade. O francês também lançou um site interativo, em português, dedicado a sua obra .
Leia abaixo entrevista com o filósofo.
Para o sr., a religação dos conhecimentos é um passo necessário para uma nova forma de pensar e agir. Como isso se daria?
Edgar Morin: Estamos habituados a viver com os conhecimentos separados, com especialistas em todos os assuntos falando de um modo fragmentado. Isso torna muito difícil abordar os problemas de forma global, os problemas fundamentais da humanidade. A questão da condição humana, por exemplo, que é muito importante para nós, torna-se totalmente desintegrada na educação. As ciências humanas separam a sociedade em economia, sociologia, psicologia, história. Na biologia também está parte do estudo do homem e do cérebro. As ciências da Terra também são importantes para entender o homem, e a cosmologia. E na literatura e na filosofia também há muitos elementos para compreender a identidade humana, mas todos esses elementos estão dispersos.
Nosso problema é religar tudo o que foi artificialmente separado. Essa ideia tem uma importância contemporânea porque estamos numa época planetária e temos muitos meios de separar esse conhecimento, mas poucos para pensar nosso destino planetário. Esse é o desafio, porque temos à nossa frente uma catástrofe provável.
Como assim?
Uma catástrofe provável no sentido de que um observador, analisando os melhores dados de que dispõe, deve concluir que se prepara para o futuro uma catástrofe ecológica. Ao mesmo tempo, multiplicam-se as armas nucleares, químicas e biológicas, num clima de aumento da tensão planetária, apontando também uma catástrofe militar. Vemos ainda os conflitos se exacerbando, e mesmo os conflitos locais (como o do Oriente Médio) preocupam todo o planeta. No Oriente Médio, opõem-se cristãos e muçulmanos, ricos e pobres, jovens e velhos, todos os microcosmos estão ali representados. Digo que há lá um câncer, cuja origem eu defino assim: num mesmo território, duas nações foram formadas. Se a catástrofe é assim provável, não se deve julgá-la, no entanto, uma fatalidade.
Neste contexto, qual é o significado que o sr. dá para o 11 de Setembro de 2001?
O 11 de Setembro não é o começo de um novo tempo, é uma etapa. Ele revela, de uma forma brutal, um problema que já existia. Apresenta uma possibilidade de destruição nova, que vem de uma rede internacional. De toda maneira, uma situação dessa pode ser fonte de uma nova consciência, capaz de levar as Nações Unidas a adotar uma política pela civilização planetária, que regule não apenas as desigualdades materiais, mas também outras questões. Não podemos mais separar os problemas econômicos dos religiosos, dos sociais. Veja a cegueira econômica: havia no mundo uma gigantesca ilusão no comunismo; essa ilusão se desintegrou e uma nova ilusão surgiu, a de que o jogo econômico mundial resolveria todos os problemas humanos. A educação tem um papel fundamental na mudança de mentalidade; mas isso passa pelo problema de reeducar os educadores, o que é muito difícil. Se analisamos o problema do ponto de vista global, quais foram as tentativas para melhorar as relações humanas? Tentamos a moral, mas não tivemos um grande resultado.
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Para Edgar Morin, é preciso ‘reunir o que foi artificialmente separado’
Mesmo religiões como o cristianismo e o islamismo, que têm um fundo moral belo, foram profundamente imorais em suas guerras, suas cruzadas. A educação: é verdade, é preciso renová-la, para que ela tenha um papel efetivo. A reforma das instituições: é verdade, mas mesmo a União Soviética, que eliminou toda uma classe dirigente e eliminou mesmo o capitalismo, criou uma nova sociedade de dominação e exploração. Creio que é preciso reunir todas essas e outras vias, porque elas são insuficientes de modo independente para dar uma nova perspectiva à humanidade.
Mas a “religação dos saberes” é uma necessidade universal? No Brasil, por exemplo, sentimos falta de especialistas. Após o 11 de Setembro, por exemplo, não havia quem falasse com profundidade nem sobre os EUA, quanto mais sobre o Afeganistão ou a Al Qaeda. Muitas vezes, nosso problema é oposto, é o ecletismo de nossos intelectuais.
Analisemos este caso específico. Nele, há a possibilidade de contextualizar a crise conhecendo um pouco da história do Afeganistão e de sua história recente. Sobre os EUA, há muita coisa escrita. O grande problema é sua complexidade. Porque ou os vemos como uma potência hegemônica, com suas guerras brutais, como o centro do imperialismo mundial, ou os vemos como o país mais democrático do mundo, o único em que os filmes criticam o presidente, etc. Nem todas as intervenções dos EUA são negativas: intervieram em favor da Bósnia e no Kosovo, que têm uma população mulçumana, salvaram a Europa do nazismo e impediram que a Europa Ocidental fosse invadida pelos soviéticos. O que falta sobre os EUA não são estudos detalhados, mas visões complexas. Por que o 11 de Setembro não abalou a economia americana como esperava Bin Laden? E por que, um ano depois, casos como a da Enron colocam essa economia em risco? Veja o desastre da Argentina, do Uruguai, a ameaça sobre o Brasil: há um sistema que nem os economistas entendem, apesar de eles conhecerem os detalhes. Os economistas não ajudam a entender a crise econômica atual, e se deixarmos com eles, não só a economia corre risco de afundar: nós também.
O sr. fala em “reeducar os educadores”. Mas há uma espécie de “máquina” de formação de educadores já funcionando. Como fazer isso?
Essa é, de fato, uma missão logicamente impossível. Mas, comumente na vida, as coisas não logicamente possíveis se tornam possíveis. Como têm ocorrido as grandes transformações na história da humanidade? Elas começam sempre com um desviante. Um profeta, Maomé, Jesus. Se esse desviante consegue ser ouvido e ter discípulos, esses discípulos podem criar uma tendência, e essa tendência, se agressiva, pode virar uma força, e essa força pode se tornar hegemônica. Foi assim também com o capitalismo, que começou com um desvio do mundo feudal. O socialismo, também. Os homens sérios da academia consideravam Marx, Phroudon, Bakunin, todos esses teóricos, loucos. É preciso criar experiências-piloto, universidades-piloto.
Há já uma minoria de professores convencida da necessidade de uma nova forma de pensar, de que o sistema atual está em crise. E, se esses professores conseguirem se organizar, criar suas instituições, etc., o movimento pode se desenvolver.