A paisagem de Caracas está composta por diversos elementos comuns a outras grandes cidades latino-americanas como o trânsito intenso, os comércios lotados, os edifícios altos e a agitação dos trabalhadores nas horas de rush. No entanto, a capital venezuelana possui algo particular, que a distingue estética e politicamente das demais: a presença constante do ex-presidente Hugo Chávez.
Retratado de distintas maneiras, em diferentes estilos, o rosto de Chávez foi e segue sendo tema para o trabalho de vários muralistas venezuelanos que se dedicam a pintar a cidade e fazer disso, também, uma atividade política. Mesmo após a morte do ex-mandatário, que completa 10 anos neste domingo (05/03), artistas de várias tendências defendem que seguir retratando Chávez é contar parte da história do país.
“Tem gente que não teve a oportunidade de conhecer o presidente vivo e não teve a oportunidade de viver o que nós vivemos”, diz Franco Camargo, artista de 31 anos de idade que começou a pintar aos 17. Ao Brasil de Fato, ele afirma que suas obras buscam dialogar com os jovens, para despertar interesse sobre os fatos históricos da vida política da Venezuela que envolveram Chávez.
“Veio a crise econômica, veio a pandemia e a geração de hoje está vivendo outra realidade, por isso eu acho que pintar, de vez em quando, em algum lugar, o presidente Chávez é manter essa imagem, prestar homenagem e manter vivo, em algum espaço, este ícone importante para a nossa geração”, diz.
O trabalho mais recente de Franco sobre o ex-presidente está em frente à estação El Silencio do metrô, no centro de Caracas. Um grande mural feito em conjunto com jovens militantes chavistas relembra os dias 11, 12 e 13 de abril de 2002, quando Chávez sofreu um golpe de Estado. O ex-presidente chegou a ser derrubado por algumas horas, mas voltou ao cargo após forças legalistas da guarda presidencial retomarem o controle do palácio Miraflores, sede do Executivo venezuelano.
O mural está dividido em duas partes. A primeira retrata a multidão que se manteve em frente ao palácio durante os dias da intentona pedindo o retorno do mandatário destituído. À esquerda, em uma segunda parte, é possível ver o busto de Chávez segurando um crucifixo, em alusão ao momento em que, durante uma transmissão televisiva logo após retornar ao poder, perdoa os golpistas.
“É uma imagem que se tornou um símbolo daquele momento em que Chávez pede que o povo volte para suas casas e, praticamente, tenta pacificar o país”, explica Franco.
A cerca de três quilômetros de El Silencio, descendo pela avenida Universidad, outro grande mural de Chávez ao lado da Universidade Experimental de Artes (Unearte) chama a atenção. Tendo o azul como cor dominante, um grande retrato multicolorido do ex-presidente divide espaço com temas indígenas, uma representação do sol e uma plantação de milho.
“Isso representa os laços do chavismo com a ancestralidade do país”, explica Nicolai Bustos, muralista colombo-venezuelano conhecido como Shamanico. Autor de mais de mil murais, ele confessa ao Brasil de Fato que já perdeu as contas de quantas vezes retratou Chávez, mas que esse trabalho ao lado da Unearte é especial.
Lucas Estanislau
Obra de Shamanico foi pintada meses após a morte de Chávez, em 2013
“Foram os estudantes que me pediram esse mural. No começo, alguns não queriam pintar o rosto de Chávez, mas nós éramos maioria e conseguimos convencer os outros”, diz o artista.
A obra foi terminada no final de 2013, meses após o falecimento do ex-presidente. Shamanico explica que o trabalho também dialoga com o luto que ele mesmo vivia pela morte de Chávez, manifestado no mural por um segundo rosto do ex-mandatário que sai de um mapa da América Latina e aponta em direção ao sol.
“Além disso, os quadrados coloridos que compõem o rosto principal de Chávez representam unidade. Unidade na diversidade, era o que pensávamos naquele momento incerto após a morte do presidente”, afirma.
Arte e política
O muralismo político na Venezuela não é novidade. As primeiras obras desse tipo a ganharem força no país são dos anos 1950 e 1960, após a derrubada do ditador Marcos Pérez Jiménez. À época, a efervescência democrática vivida após seis anos de ditadura inspirou artistas a pintarem sobre temas nacionais como o libertador Simón Bolívar e outros heróis da independência.
Nesse período também surgem muralistas de esquerda, principalmente ligados ao Partido Comunista da Venezuela (PCV). Um dos nomes mais expressivos foi Gabriel Bracho, que possui obras sobre a exploração dos trabalhadores da indústria petroleira e o controle de transnacionais sobre o setor energético venezuelano.
O movimento, no entanto, ganhou novo impulso após a chegada de Hugo Chávez ao poder, em 1999. Artistas de esquerda e movimentos populares que apoiavam o ex-presidente passaram a colorir os muros de Caracas e das principais cidades venezuelanas com temas de agitação política e em defesa do projeto chavista, marcando o novo momento que o país começava a viver.
Shamanico explica que durante os anos 1980 e 1990, as artes de rua passaram por um período de resistência e eram frequentemente dirigidas a temáticas de oposição aos governos daquele período. “Digamos que antes da revolução, o que motivava um grafiteiro era a rebeldia, ainda mais em épocas de repressão, onde não se podia dizer muita coisa, o grafite sempre foi um ato de protesto, de tornar visíveis as lutas”, diz.
Segundo o artista, a mudança para os muralistas após o governo de Chávez ocorreu porque eles estavam a favor do processo que havia se iniciado no país e, a partir de então, passaram a escolher os temas de seus trabalhos para reivindicar as pautas propostas pelo governo, um processo oposto ao que vinha ocorrendo em décadas anteriores.
“Quando chega uma revolução com a qual você está de acordo, então o grafite passa a ser uma arma de defesa para visibilizar esse processo, dar uma identidade a ele. Nesse processo revolucionário, assim como em outros processos revolucionários continentais como, por exemplo, a revolução no México, a revolução no Chile, a arte sempre tem essa capacidade de dar identidade à luta e tratar desses signos e símbolos que se movem e que movem a população”, aponta.
Os artistas, no entanto, rejeitam rótulos como “arte chavista” ou “arte revolucionária”, pois garantem que qualquer tipo de arte que está inserida em um tempo e espaço presente possui relação com a realidade política.
“A maioria dos pintores, assim como os músicos e os poetas que escrevem sobre seu momento histórico, pintam sobre seu momento histórico, sobre a realidade. Como venezuelanos, como um artistas que crescemos sob as condições que nós, dessa geração, crescemos, nós pintamos essa realidade”, diz Franco.