Lavradores eram submetidos a situações desumanas e degradantes de trabalho e de escravidão. Estavam impedidos de sair do local sem quitar suas dívidas. Tudo era vigiado por homens armados. Houve torturas e assassinados, segundo as denúncias de vítimas. Nas décadas de 1970 e 1980, eles eram contratados nos estados do Maranhão, Goiás, Mato Grosso e Pará e levados para a Fazenda Vale do Rio Cristalino, que pertenceu à subsidiária da Volkswagen do Brasil, a Companhia Vale do Rio Cristalino (CVRC), na cidade de Santana do Araguaia, sul do Pará. Foram obrigados a permanecer em locais sem nenhuma estrutura.
Assim, a fazenda se tornou um dos maiores polos de criação de gado do norte do Brasil nos anos 1970 e 1980, durante o período da ditadura militar brasileira (1964-1985). A Volkswagen recebeu benefícios fiscais do regime para adquirir as terras com aproximadamente 140 mil hectares – cerca de 1.400 km² – equivalente à área da cidade de São Paulo, que tem 1.500 km², ou mais de três vezes o território de Curitiba (432 km²).
A montadora se orgulhava do empreendimento. Anúncio publicado em jornais em 1971 mostrava a foto de um boi sob a frase “Volkswagen produzido na Amazônia”. A propaganda tinha logotipo da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), do Banco da Amazônia S/A (Basa) e do Ministério do Interior, órgãos federais sob o comando de militares que subsidiaram a empreitada. Havia 117 mil cabeças de gado.
Depoimentos dos trabalhadores rurais escravizados realizados em dezembro de 2021, quando foram tornados públicos e que Opera Mundi teve acesso, revelam situações desumanas, violência, assassinato, com graves violações de direitos humanos.
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Nesta quarta-feira (29/03), todo esse problema é pauta de audiência administrativa entre a direção da montadora alemã no Brasil, o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), autora da denúncia.
O objetivo é concluir acordo de reparação às vítimas. Nesta terça (28/03) haverá reunião entre o MPT e o Ministério dos Direitos Humanos do governo federal.
Dívidas sem fim
O constrangimento dos trabalhadores escravizados tinha início logo que chegavam ao hotel no sul do Pará, à espera do transporte para a fazenda. Eles não sabiam, mas lá já começava a crescer a dívida que os deixavam sem salários.
Nesse hotel de transição não pagavam a hospedagem e alimentação. O empreiteiro, o gato como eram chamadas as pessoas que faziam essa contratação, pagava estes custos e repassava a dívida aos trabalhadores.
Um desses homens, que ficou na fazenda entre 1975 e 1980, cujo nome é preservado por questão de segurança, chegou ter carteira assinada pela VW. Mas depois aceitou trabalhar com o empreiteiro de nome Adão para teoricamente ter um salário maior. Esteve na Vale do Rio Cristalino com sua família – esposa grávida e seis filhos com idade entre um e oito anos. Fora contratado para fazer roçado e cortar ervas daninhas do pasto do gado.
De acordo com seu depoimento, ele e a família, junto com outros trabalhadores rurais contratados por Adão, ficavam num barraco feito com estacas de madeira e forrado com palha, coberto por folha de bananeira e piso de terra batida. Dormiam em redes penduradas nas estacas sujeitos ao tempo, animais e insetos.
As refeições eram feitas em um fogão improvisado com lata e carvão. Bebiam água de uma cisterna, de poço ou igarapés (córregos) próximos. Não havia banheiro. As necessidades fisiológicas eram realizadas no meio do mato.
Os mantimentos eram vendidos pelo cantineiro de Adão pelo triplo do valor cobrado no armazém da Fazenda da VW, disse o homem ao MPT. Nessa mesma venda também tinham que comprar botas, facão, enxada, ferramentas para realizar seu trabalho diário. Não havia dinheiro para as compras. Bastava pegar o que fosse necessário e o débito era anotado e depois descontado do salário mensal.
Esse trabalhador ficou por dois meses com Adão e não recebeu nada, pois estava em dívida na cantina.
Segundo o depoimento, a grande maioria dos trabalhadores contraiu malária. Alguns eram levados num veículo para a farmácia da fazenda pelo empreiteiro, mas outros eram obrigados a ir caminhando. Muitos empreiteiros pegavam o medicamento na fazenda e os vendia aos lavradores.
Insatisfeitos com a situação, diversos trabalhadores fugiram mato adentro. Mas acabaram capturados por vigilantes armados, os “fiscais do empreiteiro”, contou a vítima.
O mesmo lavrador revelou aos procuradores do MPT, em 2021, que junto dele outras 30 pessoas foram contratadas por Adão, considerado um pequeno empreiteiro perante os outros. Algumas pessoas sumiram, sem que se tivesse mais notícias se estavam vivas ou mortas.
Um dia, contou, ele encontrou um trabalhador amarrado por cordas no meio do mato, com as mãos para trás. Um fiscal de Adão, de nome Jaime, segurava a corda. Ao ser questionado pelo lavrador, Jaime disse que iriam caçar tatu.
Na linguagem local, significava que o homem iria ser morto.
Para sair da área de vigilância dentro da fazenda eram obrigados a quitar a dívida com o empreiteiro. Foi revelado o nome de diversos gatos: Adão, Adão Franco, Chicó, Abílio, João Henrique, Fortunato.
Todos esses fatos apresentados pela vítima podem ser comprovados por outro depoimento, realizado pelo filho de um homem que era contratado com carteira assinada pela Volkswagen. Falecido no ano de 2020, esse trabalhador esteve por 10 anos na Fazenda Vale do Rio Cristalino.
Seu filho confirmou que havia “segurança rígida na entrada da fazenda, numa guarita com homens armados” chamados de gatos ou capangas. Que toda a organização da fazenda era usada apenas para os empregados contratados pela subsidiária da VW.
De acordo com o depoimento, a estrutura montada pela Volkswagen era muito boa para seus funcionários próprios, mas a empresa não se responsabilizava pelos trabalhadores contratados pelos empreiteiros.
O pai contou a ele que os empreiteiros buscavam os trabalhadores em um hotel de passagem. Quitavam as dívidas de hospedagem, alimentação e transporte. Assim, automaticamente essa despesa era acrescida pelos gatos na caderneta dos trabalhadores, que eram pessoas humildes e analfabetas e já chegavam à fazenda endividados.
O ex-funcionário contratado pela fazenda, de acordo com seu filho, chegou a presenciar agressão física de lavradores pelos capangas. Contou que o pai ficou impressionado com a grande quantia de dinheiro que chegava para que os empreiteiros fossem pagos pelos serviços prestados.
O empreiteiro Adão Franco chegou a ter mais de 1.000 funcionários numa mesma época. Era comum comentários que citavam torturas, “peias” e assassinatos daqueles que se revoltavam com a situação a que estavam submetidos. Segundo o depoimento, tais violências eram praticadas pelo empreiteiro de nome Chicó.
Para o procurador do MPT Rafael Garcia Rodrigues, é evidente a existência de “graves violações de direitos humanos” dos trabalhadores contratados pelos empreiteiros pela Fazenda Vale do Rio Cristalino. “O MPT está em diálogo com a Volkswagen e acredita que se chegará a um acordo de reparação das vítimas”, afirmou à reportagem.
A Volkswagen do Brasil, através de sua assessoria de comunicação, informou que “não se pronuncia sobre processos em andamento”.
Início da denúncia
Em 2019, o MPT recebeu vasta documentação com a denúncia sobre situações de submissão de trabalhadores a condições degradantes de trabalho no projeto agropecuário da Volkswagen no Brasil. O material foi reunido pelo padre Ricardo Rezende Figueira que, à época, era coordenador da Comissão Pastoral da Terra para a região de Araguaia e Tocantins, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Hoje ele coordena um grupo de pesquisa sobre o trabalho escravo contemporâneo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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Anúncios pagos pelos militares, em 1971, exibiam a seguinte mensagem: ‘Volkswagen produzido na Amazônia’
Para apurar as denúncias, foi constituído um grupo composto por procuradores com ampla experiência no combate ao trabalho escravo contemporâneo. A equipe concluiu pela responsabilidade da Volkswagen por graves violações aos direitos humanos ocorridas dentro da fazenda de sua propriedade.
Tais violações incluiriam negativa de acesso a tratamento médico nos casos de malária, impedimento de saída da fazenda em razão de vigilância armada ou de dívidas contraídas (servidão por dívidas), alojamentos instalados em locais insalubres, sem acesso à água potável e com alimentação precária.
“É necessário que a Volkswagen reconheça os crimes que se deram na fazenda e assumam compromissos de reparação com as vítimas e com o país. É preciso indenizar individualmente as vítimas e, por dano moral coletivo, a nação brasileira”, afirma Figueira a Opera Mundi.
A Fazenda Vale do Rio Cristalino chegou a ter 300 empregados diretos. Mas centenas de outros trabalhadores braçais foram contratados por empreiteiros e “gatos” da região. Todos teriam sido submetidos a condições análogas à escravidão.
A montadora alemã de veículos comprou a enorme gleba de terra em Santana do Araguaia em 1972. O objetivo era criar gado de corte, num projeto aprovado pelo governo militar que presidia o Brasil. O projeto teve subvenção da Sudam e Banco da Amazônia. Com isso, obteve dedução de impostos e a possibilidade de acesso a financiamento com taxas de juros negativas.
Na Fazenda Volkswagen, como era conhecido o local sede da Companhia Vale do Rio Cristalino, havia duas práticas com os trabalhadores: para aqueles que desempenhavam atividades permanentes, como contadores, motoristas, seguranças, cozinheiras, vaqueiros, a contratação era direta pela subsidiária. Já para as atividades temporárias, sem vínculo empregatício – roço de mata, derrubada das árvores, limpeza de pasto, feitura de cercas e aceiros – havia contratação através de uma ação de terceirização, os “gatos”.
Foi feita a contratação de pistoleiros mais famosos da região, transformados em “empresas empreiteiras”, conta Figueira. Estes traficavam pessoas de diversas regiões do país como no interior do Maranhão, Goiás, Mato Grosso e no território que atualmente é o estado do Tocantins, além do próprio Pará.
Na Fazenda Volkswagen eram mantidos os lavradores aliciados pelos empreiteiros a serviço da CVRC num sistema de escravidão sob pretexto de saldar dívida adquirida para obter o emprego.
De acordo com a denúncia da missão Pastoral da Terra, comprovada pelo MPT, a forma de restringir a liberdade de ir e vir se baseava em três pontos que cerceavam os trabalhadores, era a chamada escravidão por dívida. Além disso, havia também informações sobre homicídio, estupro, violência física e tortura.
O primeiro de cerceamento era a “dívida” contraída pelo transporte do trabalhador do estado de origem ou moradia até o Pará. Esse valor incluía também a compra de produtos de alimentação, higiene a preço extorsivo no barracão da empresa, além do pagamento de proteção de trabalho. “Era a ‘prisão da alma’: quem deve, paga”, denuncia Figueira.
Outro ponto que beneficiava a prática delituosa e também evitava a possível fuga dos revoltados é o aspecto geográfico. A fazenda era enorme, vizinha de outras enormes propriedades, o que dificultava o contato com outras pessoas. Mas os meios de comunicação também eram precários.
E finalmente um aspecto que evidencia o crime. Todos trabalhadores terceirizados, segundo Figueira, vivam sob constante ameaças e vilipendiados por homens armados.
Crime antigo
Em julho de 1975, reportagem do jornal O Estado de São Paulo fora até a região e entrevistou os capangas da Fazenda Volkswagen. Todos negaram as acusações de abusos e violência. Entretanto admitiram que precisavam “convencer” os que fugiam do trabalho a retornarem.
“A gente dá um jeito nele… quer dizer, a gente conversa, pajeia. A 20 (rifle de calibre 20) é só para intimidar. Não, nunca dei couro. Tenho fiscais na mata porque é perigoso. Agora, se a pessoa não quer voltar, eu apresento à polícia, que dá uma prensa e faz voltar”, contara um dos empreiteiros para os repórteres.
Em outro relato, um empregado confessara violência cometida. “É verdade que um fiscal meu cortou um rapaz com facão. Mas eu mandei ele embora”.
Um integrante da CPT explica: “em 1984, estive com um dos sobreviventes do trabalho escravo e realizamos uma coletiva com a imprensa com pouca repercussão no Brasil, mas muita no exterior. A direção da empresa foi informada. Estive depois dentro da fazenda acompanhando uma comissão interpartidária de deputados estaduais de São Paulo, onde minhas denúncias se confirmaram e outras informações foram acrescidas”.
Foi aberto um inquérito policial na época que constou que tinha havido trabalho escravo na fazenda. Uma ação trabalhista condenou a empresa em favor de três trabalhadores.
Agora, passadas quatro décadas do crime, o Ministério Público do Trabalho convocou a direção da empresa para uma ação reparadora.
Ainda na ditadura militar, em julho de 1983, o Estado de São Paulo fez novas denúncias. A direção da empresa negou a prática do escravagismo na propriedade no Pará. Mas admitiu a existência do problema gerado pela ação dos “gatos”.
“A Volkswagen do Brasil não aceita, de jeito nenhum, que haja trabalho escravo na Companhia Vale do Rio Cristalino, sua fazendo no Pará. E não quer que reste dúvidas sobre isso, tanto que o grupo que aqui veio contou com total liberdade e apoio operacional, para ir aonde quisesse, ouvir quem quer que fosse sobre o nosso trabalho. Nunca houve problemas com trabalhadores da Cristalino. Não temos vínculos com os ‘gatos’ – empreiteiras – que prestam serviço na fazenda e são empresas registradas, sujeitas à fiscalização do Ministério do Trabalho”, registrou o jornal.
Para a imprensa da Alemanha, o então gerente da fazenda, o suíço Friedrich Brügger, negou ter qualquer responsabilidade sobre as denúncias envolvendo a propriedade. Ele alegou que a responsabilidade era das agências de emprego, que forneciam mão de obra e eram encarregadas do trabalho de desmatamento da área.
Queimada gigante
Em 1975, durante reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), cientistas alemães e norte-americanos acusaram a subsidiária da Volkswagen do Brasil de desmatar uma área maior que a autorizada, devastando a floresta amazônica. Essas queimadas foram chamadas de “a maior fogueira do mundo” e chegou a ser registrada por satélites. À época, a justificativa da empresa para o fato é que o desmate seguira projeto aprovado pela Sudam.
Em 1986, a Volkswagen vendeu a fazenda Companhia Vale do Rio Cristalino.
Em 2020, a montadora alemã firmou acordo de reparação devido à colaboração da montadora com órgãos de repressão durante a ditadura no Brasil. Operários na fábrica de São Bernardo do Campo foram perseguidos, presos e torturados sob o conhecimento da empresa. Esse acordo foi chancelado no início de 2021 pelo Ministério Público Federal (MPF).