A decisão do governo ultraliberal de Javier Milei de mudar as exigências para a entrada de brasileiros no país viola a Lei de Migrações argentina, os acordos estabelecidos pelo Mercosul e os acordos bilaterais entre os países. Essa é a avaliação de Andrea Acevedo, especialista argentina em direitos humanos e migrações que atua no Instituto contra a Discriminação da Defensoria Pública da Cidade Autônoma de Buenos Aires.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Acevedo avalia que a utilização do protocolo de “falso turista” contra migrantes que tentam entrar no país, somado ao fechamento do Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (Inadi), anunciado na quinta-feira (22/02), acende o alerta sobre o caráter discriminatório do governo argentino ao alimentar uma paranoia contra populações migrantes.
“Isso é gravíssimo, porque todas as situações que nos levaram aos piores crimes contra a humanidade sempre começaram com práticas discriminatórias. Há distintos alertas, é importante juntar cada um. E o falso turista é um alerta para a discriminação contra populações migrantes.”
Falso turista
O protocolo de falso turista é uma política empregada durante a ditadura cívico-militar na Argentina, reciclada na disposição 4362/2014 do Departamento Nacional de Migrações (DNM), ligada ao Ministério do Interior da Argentina, que passou a ser empregada de forma indiscriminada a partir da posse de Milei. O protocolo é aplicado por meio dos agentes de migrações nas fronteiras fluviais, aéreas e nos aeroportos do país.
Ao suspeitarem que um estrangeiro que tenta ingressar no país seja um falso turista – o que significa que ele tenha como objetivo se estabelecer no país – os agentes exigem comprovações como passagem de retorno, cartões de crédito ou recursos para se manter no país e reservas de hospedagem. Se o agente não considerar a documentação apresentada suficiente, a pessoa é direcionada para um segundo filtro, que consiste na submissão a interrogatório em uma sala fechada.
“É um quarto onde a pessoa vai estar incomunicável, fechada. Eles alegam que não é detida, portanto é muito difícil apresentar recursos para recuperar a liberdade, como seria um habeas corpus. Mas a pessoa pode ficar nesse local até 24 horas ou mais, como ocorreu com os brasileiros enquanto resolviam sua situação”, relata Acevedo.
Se após esse segundo filtro, o agente de migrações considerar que aquela pessoa não cumpre os requisitos exigidos para ingressar no país na condição de turista, ela é orientada a assinar um documento dizendo que sua entrada foi rechaçada e voltar pelo meio que ingressou. Na prática, a decisão sobre a entrada de uma pessoa na Argentina fica a cargo do funcionário de migração, o que caracteriza um “viés discriminatório” dessa política, aponta Andrea Acevedo.
“Um funcionário de imigração pode avaliar a aparência daquela pessoa, como acontece em eventos e estabelecimentos públicos. Se trata de fazer um controle a critério das pessoas que te recebem, um critério arbitrário e sujeito a discriminação.”
Facundo Florit/Shutterstock.com
Andrea Acevedo aponta violação do Mercosul, de acordo bilateral com Brasil e de Lei de Migrações argentina
Mercosul e acordo bilateral com o Brasil
Andrea Acevedo aponta que a aplicação da política de falso turista viola a Lei de Migrações argentina, que estabelece a migração como um direito humano e amplia as categorias de permissão para o ingresso de estrangeiros no país, assim como o protocolo válido desde 2002 pelo Mercosul, em que cidadãos estrangeiros podem permanecer por até 90 dias em outros países do bloco na condição de turistas, sem precisarem apresentar qualquer tipo de visto.
O acordo do Mercosul ainda prevê que uma pessoa que tenha ingressado como turista, pode acessar uma permanência temporária na Argentina pelo período de até dois anos. Ela destaca que o emprego dessa política é “ainda mais grave” no caso do Brasil, que tem um acordo bilateral de migração com a Argentina estabelecido desde 2009, que garante ao cidadão brasileiro que ingressa no país na condição de turista, o direito a se radicar.
“Esse acordo bilateral diz que os brasileiros estão habilitados a se estabelecerem de maneira permanente no país. É o acordo de radicação mais forte, que concede mais tempo de permanência. Qual é então a suspeita? É uma enorme contradição.”
Procurado pela reportagem, o Itamaraty afirmou, por meio de nota, que tomou conhecimento de relatos de inadmissão de estudantes brasileiros na Argentina por meio da Embaixada e do Consulado-Geral em Buenos Aires e realizou gestões sobre o tema junto às autoridades locais.
“Nos contatos estabelecidos, foi reiterada à parte argentina a importância de aplicação do Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul, que prevê medidas de facilitação do livre trânsito de pessoas. Em resposta, as autoridades locais indicaram a necessidade de que os estudantes brasileiros ingressem na Argentina usando o visto apropriado. O governo brasileiro recomenda que interessados busquem informações junto às autoridades consulares argentinas quanto aos documentos e requisitos necessários para entrada e permanência no país conforme os objetivos da viagem”, diz a nota.