Crianças e jovens da Orquestra da Juventude Simón Bolívar se apresentam em concerto em Caracas
“Ré, Fá, Fá, Fá, Ré”. A voz hesitante de Mariana Pestana, quatro anos, tenta decifrar as primeiras notas, enquanto segue o ritmo da composição. Apresentada ao estudo da música há poucos meses, a criança ingressou no universo das partituras junto com uma dúzia de pequenos venezuelanos da mesma idade. “Começamos a desenvolver o senso do ritmo e a ensiná-los a sentir a melodia fisicamente”, explica Raúl Abane, professor da turma. “Daqui a um ano vamos colocar um violino nas mãos deles. Nessa idade, eles têm apenas acesso aos instrumentos de cordas, porque ainda não têm capacidade pulmonar para os instrumentos de sopro. Mais tarde, eles poderão escolher um instrumento favorito e formar parte de uma orquestra”, continua.
Diferente do que se poderia imaginar, o conservatório de música não está em alguma área abastada de Caracas, mas no bairro Los Chorros, perto de Petaré, uma das favelas mais pobres e perigosas da América Latina. Apesar de ser humilde e dos pais não terem frequentado a escola, a pequena Mariana poderá, se tiver talento, tornar-se integrante da Orquestra da Juventude Simón Bolívar, de renome internacional. Como ela, já são dezenas de milhares as crianças que trabalham duro para alcançar esse sonho, no âmbito de uma estrutura conhecida na Venezuela como El Sistema.
O início dessa aventura se deu por meio do sonho de vários músicos, liderados por José Antonio Abreu. Em 1975, o compositor decidiu retirar a música clássica do pedestal e instalou centros de educação musical nas favelas das grandes metrópoles e vilarejos do interior venezuelano. Começou por San Agustín, um dos bairros mais pobres do centro de Caracas.
Projeto nasceu em comunidade carente de Caracas como resposta à violência e à marginalização
Naquela época, Abreu tinha uma convicção: a prática da música por crianças é a melhor resposta contra a violência e a marginalização nas favelas. Ele estava confiante de que um inédito “sistema” social, composto de coros e orquestras, poderia trazer disciplina, responsabilidade e senso de cidadania. Trinta e cinco anos depois, a aposta tem fama mundial. O Sistema conta esse ano com 350 centros de formação, envolvendo 350 mil crianças em todo o país. “O sonho do mestre Abreu, de que todos pudessem ter acesso a uma orquestra, em cada canto da Venezuela, está realizado”, comemora Jioeyan Agreda. A jovem, que aprendeu flauta nas fileiras do Sistema, agora forma parte da equipe administrativa. “É como uma grande família, mesmo para os que não se tornaram músicos, fica sempre uma ligação muito forte com o Sistema”, conta.
Na visão de Abreu, a música é um meio, não um fim. “Para cada 100 crianças que recebemos, vamos conseguir formar três músicos profissionais”, explica Leonar Acosta, diretor do centro de Los Chorros. O objetivo não é alcançar a perfeição técnica, mas aprender a ouvir e tocar instrumentos. “Nossa meta principal é semear valores e integrar essas crianças na sociedade. Mais tarde, alguns serão médicos ou arquitetos, mas todos fazem parte desse sistema, que os ajudou em um momento determinante de suas vidas”, acrescenta.
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Por essa razão, diz ele, não há nenhuma seleção para entrar nos centros de formação. Todas as crianças que querem descobrir a música têm o direito de estudar, gratuitamente. “Não precisa ser o melhor, ninguém é excluído por seu desempenho ruim”, explica Acosta. A disciplina do trabalho, no entanto, é cansativa. Todas as crianças estudam quatro horas de música por dia, de segunda a sábado. No domingo, são frequentemente requisitados para concertos.
Fernanda Ravela, uma das mães, diz que os horários do filho Fabian são muito puxados. “Ele sai de casa às sete horas da manhã para ir à escola, depois estuda música e volta somente às sete da noite. É muito para uma criança de seis anos!”. A mãe reconhece, porém, que ficou mais tranquila após ver a alegria do filho com as aulas. “Quando perguntei por que amava a música, ele respondeu que isso fazia seu coração feliz. Pelo menos aqui, ele não terá tempo para se contaminar com vícios da rua, como as drogas. Será um homem bom”, afirma.
A mãe de Fabian conta que a evolução do garoto nos últimos meses foi impressionante. “Ele ficou menos tímido, se tornou mais responsável e apresentou um melhor desempenho na escola”. De fato, uma das exigências do Sistema é a assiduidade escolar. “Entramos em contato regularmente com pais e professores para saber se está tudo bem. Se a criança falta na escola, nós a suspendemos da orquestra”, diz Leonar Acosta.
Fernanda possui outro motivo de orgulho: Fabián, que recebeu um violino pela primeira vez há dois meses, foi selecionado como primeiro violinista da orquestra pré-infantil de Los Chorros. “É uma característica única de nosso sistema de formação, diferente do que acontece em outros países: aqui também ensinamos primeiro a teoria, mas queremos que as crianças façam parte de uma orquestra já muito cedo”, explica Acosta.
A experiência transformou Emma, 13 anos. A adolescente, moradora de Petaré, reconhece que provavelmente não sucumbiu à delinquência graças ao Sistema. “Estou mais tranquila aqui, como todos meus companheiros do bairro que formam parte da orquestra”, relata. Seu sonho, porém, é ir mais longe. Após uma iniciação ao violino, ela adotou o oboé durante vários anos antes de decidir finalmente pelo fagote. Considerada uma das melhores de sua geração, Emma não esconde que se tornar música.
Dudamel
Além de seu papel social, o Sistema também foi bem sucedido na criação de músicos talentosos, procurados no mundo inteiro. O maior símbolo dessa realidade é o maestro Gustavo Dudamel, um prodígio de 30 anos, que desde setembro de 2009 rege a Orquestra Filarmônica de Los Angeles.
Foi seu pai, um trombonista, que lhe deu o gosto pela música, mas Dudamel é um produto do Sistema. Nascido em 1981 em Barquisimeto, em uma das regiões mais pobres da Venezuela, o maestro começou estudando violino, antes de ser treinado diretamente por José Antonio Abreu na arte de conduzir orquestras. Já no começo da década, ele começou uma carreira meteórica, que o levou à Filarmônica de Berlim e ao Festival de Salzburgo. Em 16 de abril de 2007, Dudamel regeu a Orquestra Sinfônica da Rádio de Stuttgart durante o concerto oferecido ao Papa Bento XVI em seu 80º aniversário, no Vaticano.
Maestro Gustavo Dudamel, com seu dinamismo e anticonformismo, é um dos frutos do projeto
O jovem maestro tem dado frescor ao mundo da música com seu dinamismo e anticonformismo. Cada vez que entra em cena, trazendo o cabelo despenteado e um sorriso radiante, Dudamel simboliza a paixão dos jovens músicos que conduz. Quando o tenor espanhol Placido Domingo ouviu pela primeira vez a orquestra Simón Bolívar, ele não conseguiu segurar as lágrimas. “O futuro da música clássica está na Venezuela”, resumiu no ano passado Simon Rattle, diretor da renomada Filarmônica de Berlim, após uma apresentação da orquestra.
O impacto do sucesso de Dudamel na juventude venezuelana é forte. Em boa parte da América Latina, as estrelas são os jogadores de futebol. No projeto, a coqueluche é Gustavo Dudamel. “Todos os jovens querem ser como ele”, conta Jioeyan Agreda, mostrando vários adolescentes que adotaram o penteado do ídolo. “Mais importante, Dudamel não abandonou a Venezuela após a nomeação em Los Angeles. Ele continua a conduzir a orquestra Simon Bolívar, seja no país ou durante as turnês no exterior, e sempre repete que sua verdadeira família é aqui, no Sistema. Isso nos enche de orgulho”, continua a jovem.
“Todos os grandes solistas querem ir à Venezuela tocar com Dudamel. Para isso, eles topariam fazê-lo gratuitamente”, enfatiza Renaud Capuçon, um dos melhores violinistas de sua geração. Quando conversou com Opera Mundi, o músico francês estava em Caracas por três dias para interpretar o concerto para violino e orquestra em Sol menor de Max Bruch, conduzido por Gustavo Dudamel.
O jovem maestro de Barquisimeto, que já regeu de maneira brilhante composições de Mozart, Beethoven e Mahler, preserva suas raízes e a música sul-americana. Há dois anos ele lançou o álbum Fiesta, dedicado ao folclore venezuelano. Além disso, cada vez que a orquestra Simón Bolívar se apresenta no exterior, os concertos terminam sempre com o Mambo de Leonard Bernstein. Antes de tocar a peça, os músicos e o maestro cobrem seus paletós pretos com blusões nas cores da bandeira venezuelana. Eles dançam empunhando os instrumentos e provocam o delírio do público, que lota as sisudas salas de concerto mundo afora.
Governo
O governo venezuelano não poderia desejar melhor cartão de visita. O Sistema nasceu durante a Quarta República, odiada por Hugo Chávez, mas o presidente reconheceu no projeto um objetivo idêntico ao de seus programas sociais. Ele propôs ao maestro Abreu financiar a totalidade do orçamento, que antes dependia de doações de empresas. A garantia tem ajudado a acelerar dramaticamente o desenvolvimento do Sistema. Durante o último ano, o número de centros de formação passou de 250 para 350.
“Agora, somos todos funcionários do governo. Mas, o que é extraordinário é que a política não entra nunca em jogo”, insiste o jovem Jioeyan Agreda. “Há dentro do Sistema funcionários chavistas, e outros anti-chavistas, e ninguém se importa. A música transcende as ideologias. O que nos une é o compromisso social e o amor pela Venezuela”, acrescenta com paixão. O Sistema virou uma notável exceção em um país marcado, mais do que nunca, pela polarização política.
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