Quase uma hora mais cedo do previsto, os dirigentes Pablo Moyano e Hugo Daer discursaram no palco montado na Praça do Congresso, na cidade de Buenos Aires. Sob um calor de quase 30º (houve registro de desmaios entre os manifestantes), o dirigente do sindicato dos caminhoneiros, Pablo Moyano, questionou as políticas econômicas do ministro da fazenda, Luis Caputo.
“Devem-nos explicações”, disse. E dirigiu-se aos legisladores que devem votar, amanhã, a chamada Lei Ônibus: “Que digam publicamente se estão com os trabalhadores ou com as corporações e o modelo econômico de Javier Milei”.
Ali, em frente ao Congresso Nacional, palco de dias intensos de debate sobre o projeto de lei de Javier Milei – e que deve ser votado nesta quinta-feira (25/01) –, os gritos e cânticos dos manifestantes se contrapuseram ao que a força política de Milei, autointitulados “libertários”, consideram ser “privilegiados contra a vontade da população”, como o porta-voz da presidência, Manuel Adorni, referiu-se aos aderentes da greve geral, em conferência nesta terça-feira (23/01).autointitulados “libertários”, consideram ser “privilegiados
Na praça, e ao longo de toda a Avenida de Maio, que conecta a sede presidencial, a Casa Rosada, ao parlamento, eram alçadas bandeiras de diversos grêmios, organizações e coletivos. Também foi possível ver cartazes com mensagens autônomas de cidadãos contrários ao pacote de medidas que marcou a chegada de Milei à Casa Rosada: posturas contrárias à flexibilização trabalhista, contra as privatizações, contra os decretos de necessidade e urgência (DNU) que anteciparam o projeto que Milei deseja consolidar com a aprovação do Congresso.
Centenas de organizações sindicais e pessoas autoconvocadas compareceram às manifestações que ocorreram em todo o país. Na capital federal, em Buenos Aires, aconteceu o ato central da convocatória nacional, onde os dirigentes Moyano e Daer discursaram.
A desconcentração surgiu como ato seguinte, já por volta das 15h. Seria uma forma de, segundo integrantes de organizações sindicais, evitar conflitos com a ostensiva operação policial presente em distintos pontos do centro da cidade.
A Lei Ônibus, oficialmente chamada Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos, abarca, de alguma maneira, todos os setores da sociedade argentina. Por esta razão, a iniciativa do governo provoca uma unidade de resistência entre organizações que destoam entre si. Ainda que muitos comércios tenham operado normalmente nesta quarta-feira, a greve nacional teve ampla adesão nos atos em todo o país.
Comunicação e Correios Argentinos
Caminhando sobre a Avenida de Maio em direção ao Congresso Nacional, um grupo de manifestantes se identificava com bandeiras do Sindicato de trabalhadores do Correio e das Telecomuncações da Argentina.
Natalia González, secretária-geral do sindicato dos Correios na Capital Federal e Buenos Aires, ressaltou a motivação do grêmio em comparecer ao ato na cidade de Buenos Aires. “Estamos no alvo do novo governo, primeiro porque o DNU e a Lei Ônibus são projetos que nos atacam nossa atividade, da comunicação, especialmente com a privatização do correio, algo que já aconteceu e provocou a demissão de mais de 25 mil trabalhadores e deixou Argentina despojada da conexão, desde Quiaca a Tierra del Fuego”, disse a dirigente, referindo-se aos pontos mais ao nortet e ao sul da Argentina, respectivamente.
“Com a rádio é a mesma coisa; é o único meio de comunicação que chega a todos os cantos do país, defendendo a nossa soberania”, enfatizou. Em seu projeto de privatizações, Milei destacou que os meios públicos de comunicação passariam a mãos privadas, proposta que apoia na grave crise econômica que o país já atravessava ao assumir a presidência.
Aviação
Por estar estreitamente vinculado ao trabalho dos correios, o grêmio dos trabalhadores aeroviários marchou junto aos sindicatos de telecomunicações e correios. “Rejeitamos a política de céu aberto, que significa a estrangeirização do transporte aéreo”, pontua Dina Felier, dirigente aeronáutica da Argentina, que reflete a preocupação de muitos argentinos: que se privatize a companhia aérea estatal Aerolineas Argentinas.
“Se essa lei avançar, vamos deixar de poder decidir o custo das passagens do nosso país e vão desregular as tarifas e os destinos, porque as linhas aéreas privadas só voam a destinos rentáveis”, comenta Felier. “Em um país de dimensões ainda que não continentais como o Brasil, mas ainda assim muito grandes, precisamos garantir a conectividade aérea. Para a soberania nacional, é estratégico contar com uma linha aérea de bandeira que, hoje, está em perigo de ser privatizada”.
Aposentadas
Um grupo de quatro senhoras vestidas de branco caminhavam pela Avenida de Maio, tirando fotos e comentando sobre o que viam ao redor. Eram quase todas aposentadas, com exceção de Celeste Muriel, advogada, que explicou a Opera Mundi por que o grupo autoconvocado se somava naquela tarde calorosa ao ato nacional. “Querem vender nosso país; que venha qualquer estrangeiro e aumentem os preços a seu bel prazer. Querem vender a pátria. Nós já vivemos isso”, relatou Celeste.
Outra integrante do grupo, Olga, que preferiu ocultar seu sobrenome, classificou as medidas do governo como autoritárias. “Não queremos este DNU e nem a lei. É muito autoritário. Temos 40 anos de democracia e não vamos permitir. É um atropelo. A população votou nele, mas também os deputados estão votando [no projeto de lei] e não podemos permitir isso”, disse.
Fernanda Paixão
Protesto contra projeto de Javier Milei reuniu centenas de milhares de pessoas em Buenos Aires
“Somos todos afetados: os jovens, os idosos, nossos filhos”, completou Celeste. “Não se pode viver com 25% de inflação, ainda que se tenha trabalho. E os aposentados, menos. É um retrocesso”, disse, remetendo ao índice de inflação de janeiro, de 25%. E concluiu: “Vocês, que têm Lula, cuidem dele. Sorte!”
Metalúrgicos e energia nacional
O setor dos trabalhadores metalúrgicos se posiciona contra a reforma trabalhista proposta pelo governo Milei. A preocupação também recai, neste caso, sobre as privatizações, neste caso em particular, sobre a ameaça à soberania energética.
“Se aprovada, essa lei eliminaria as horas extras e permitiria a dispensa de trabalhadores sem indenização”, aponta Omar Peralta, trabalhador da Tenaris Siat, empresa do magnata Paolo Rocca, e responsável pela construção do Gasoduto Néstor Kirchner, inaugurado no final do ano passado para distribuir gás a todo o país. Gerenciado pela empresa YPF, cujas ações são majoritariamente públicas, o gasoduto pode não estar na mira neste momento, já que, nas neogicações, a YPF foi retirada da lista de empresas estatais que o governo Milei prioriza para serem privatizadas.
“Por sorte, temos muito trabalho por causa do gasoduto, mas com o esforço que fazemos com as horas extras para fazer uns pesos mais, o governo ficaria com mais da metade com esse imposto ao lucro que querem retomar. Além disso, Paolo Rocca será justamente o mais beneficiado com a privatização [do gasoduto]. Em consequência, as tarifas de gás podem subir uns 400%. Aos poucos as tarifas já estão aumentando, e se as empresas de energia forem privatizadas, vão subir muito mais”.
Agitando uma das pontas de uma imensa bandeira argentina alçada por outros trabalhadores de seu sindicato, Peralta afirma: “Esta mobilização é a primeira de muitas”.
Outro ramo na mira do projeto de lei é a central nuclear Atucha, que opera na cidade de Zárate, na província de Buenos Aires. O dirigente do Sindicato de Luz y Fuerza, David Delgado, referente aos trabalhadores da central nuclear, reforça o perigo da privatização para a distribuição e acesso justo de energia nacional.
“A Nucleoeléctrica Argentina, que opera as três centrais nucleares onde trabalhamos, está nesse listado. Viemos manifestar que a segurança das centrais nucleares depende das mãos de trabalhadores estatais argentinos. É assim há 50 anos e pretendemos que siga sendo assim”, enfatiza.
Ao lado do gasoduto Néstor Kirchner com a produção de gás, Delgado destaca que as centrais nucleares, o lítio e os hidrocarburos representam o mesmo eixo temático de soberania energética da Argentina. “Somos soberanos em energia, não importamos energia de outro país, tentamos ser bons produtores e bons usuários da energia argentina, e isso foi graças ao desenvolvimento de pesquisa e ciência, que também está amparada em recurso estatal”, diz, mencionando outro setor que pode perder financiamento com o projeto de Milei: as instituições de pesquisa e as universidades públicas.
Cultura
O âmbito cultural, que já promoveu mobilizações anteriores na capital argentina, esteve persente no ato da cidade de Buenos Aires para a greve geral. A costarriquenha Krystal Espinoza, formada em música na Universidade Nacional das Artes em Buenos Aires, é docente e vê com preocupação a iniciativa do novo governo argentino.
“Me preocupa que exista a possibilidade de eliminar algo que representa a identidade do povo argentino, que se evidencia na cultura, na conservação dos parques nacionais e todas as modificações previstas nessa lei. Eu me formei graças ao fomentos nacionais latino-americanos, e agora me parece preocupante que queiram modificar essas leis, inclusive o Fundo Nacional das Artes, que dá sustento à cultura e às artes, parte importante da identidade de um país como a Argentina”, afirma a manifestante autoconvocada.
Empresas recuperadas
As empresas recuperadas, um símbolo da resistência trabalhadora na crise econômica argentina de 2001, um dos períodos mais críticos da história do país. Trabalhadores de empresas abandonadas recuperaram sua fonte de trabalho, tomando as empresas e fazendo-as voltarem a produzir e gerar emprego.
Maximiliano Correa é dirigente da Cooperativa Azeiteira de La Matanza, província de Buenos Aires, e está nucleada no Movimento de Empresas Recuperadas da Argentina. Considerando que o último governo peronista, de Alberto Fernández, foi insuficiente para dar respostas às demandas de seu setor, o movimentou lançou um partido, M3V: “Movimento Vontade, Vitória e Verdade”. “Lançamos um partido para ocupar as bancas no Congresso, porque quem conhece a realidade do setor somos nós”, afirma Correa. “Estamos convencidos que recuperamos uma empresa, e está mal visto porque é propriedade privada como gostam de dizer, mas demos solução aos trabalhadores e ao povo. Estamos muito convencidos que a saída é por aí”, afirma.
Quando perguntado sobre a declaração do presidente na última Conferência de Davos, onde dirigiu-se aos grandes empresários como os “verdadeiros heróis” da história, Maximiliano responde: “não nos surpreende. A inflação foi armada pelos monopólios. O governo anterior não fez as coisas muito bem, mas hoje temos um fantoche manipulado pelos ianques, pelo império. Hoje nos manifestamos contra o império, porque consideramos que quem está aí [Milei] é só um fantoche”.