A violência relacionada ao narcotráfico alcançou níveis nunca antes vistos no México. Nunca antes “vistos” por duas razões. Primeiro que houve de fato um aumento nos assassinatos. Segundo porque esses crimes sempre existiram, mas havia mais discrição, mais cumplicidade. Agora a sociedade fica sabendo, no México e no mundo.
De dois anos para cá, as execuções e os levantones (seqüestro e posterior execução de membros de gangues rivais, com o depósito dos corpos em locais visíveis), deixaram de ser situações esporádicas e passaram a fazer parte do dia-a-dia. Como acompanhar o fechamento da Bolsa de Valores, os resultados do futebol, as estréias nas salas de cinema.
Municípios como Tijuana, Ciudad Juárez, Culiacán e Chihuahua, todos no norte do país, converteram-se, literalmente, numa “terra de ninguém” onde, em plena luz do dia, as gangues de narcotraficantes se enfrentam em intensos tiroteios pela disputa de território.
Os dados revelados pelo governo mexicano não enganam: em 2008, o número de assassinatos vinculados ao narcotráfico cresceu 117% em relação ao ano anterior: 5.376, contra 2.477. Já não era pouco, ficou bem pior.
O crime organizado não é um fenômeno recente no México, existe há décadas. Segundo os especialistas, o recrudescimento da violência tem a ver com a disputa territorial e a natural reagrupação dos cartéis, que vivem em constante movimentação frente às alianças e rompimentos entre seus líderes. Ao mesmo tempo, houve uma profunda mudança política no México e na forma como o Estado se relaciona com os grupos criminosos.
O responsável pela cadeira Transformações econômicas e sociais relacionadas ao problema internacional das drogas da Unam (Universidade Nacional Autônoma do México), Luis Astorga, explica: “Durante mais de 60 anos, os governos do Partido Revolucionário Institucional (PRI) contiveram e protegeram as organizações criminosas. Quando o regime do PRI acabou, em 2000, essa relação desapareceu, ficou um vazio. Logo, as próprias organizações tiveram de buscar lideranças, e o fazem à bala”.
Com a chegada do PAN (Partido da Ação Nacional), do presidente Felipe Calderón, ao poder, essa relação entre governo e crime organizado mudou. Apesar de a penetração do narcotráfico nos aparatos judiciais e policiais ter sido mantida, o mesmo não aconteceu com relação à proteção a determinados grupos criminosos. O início do mandato de Calderón, em dezembro de 2006, marcou também o começo de outra etapa que parece não ter fim e que, para muitos, é uma guerra perdida.
Ali começou a chamada “Guerra Contra o Narcotráfico”, que consiste na mobilização de mais de 45 mil homens do Exército para combater os cartéis mexicanos de drogas. Resultado: mais de 8 mil mortos desde o começo do plano e a resistência de uma indústria das drogas que parece não se enfraquecer. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos revelou, em um de seus informes, que nos últimos anos, mais de US$ 17 bilhões provenientes do tráfico ingressaram em território mexicano.
E não para por aí. A expansão dos cartéis pela América e pela Europa denuncia a força do negócio. E não necessariamente revela que os narcotraficantes têm medo de Calderón, na opinião de Astorga, que também é autor do livro Segurança, traficantes e militares, publicado no ano passado.
“A presença dos cartéis mexicanos em todo o continente americano não tem a ver com a guerra empreendida por Calderón. É absurdo considerar que isso está provocando a expansão dos grupos criminosos. Pensar dessa forma implicaria acreditar que a estratégia dele teve tanto êxito que obrigou os traficantes a sair do país. Se esse fosse o caso, não haveria tantas mortes aqui”, analisa o escritor.
“A expansão tem a ver com o desejo do narcotráfico de ampliar os negócios no mercado mundial. As drogas são como qualquer outra mercadoria. O que as diferencia é que são ilegais. Os empresários da droga atuam sob a mesma lógica econômica que quaisquer outros. O outro componente da expansão é a debilidade das instituições de segurança e de justiça em grande parte dos países da América Latina, senão em todos”.
A guerra continua. Felipe Calderón anunciou recentemente que tanto o Exército quanto as tropas de elite da polícia seguirão combatendo os cartéis. Nos primeiros 19 dias de 2009, foram registrados 248 crimes ligados ao narcotráfico.
Corpos “cozidos” em soda cáustica
Sobre um sujeito chamado Santiago Meza López, recai a acusação de ter dado sumiço em pelo menos 300 corpos. Este “pozolero” – termo usado pelo crime organizado no norte do país para designar a pessoa encarregada de desaparecer com cadáveres –, passou os últimos nove anos “cozinhando” os inimigos do cartel de Tijuana até a desintegração.
Parece coisa de filme de terror, muito pior do que mostrou o longa-metragemnorte-americano Traffic. Numa enorme tina cheia de água, López, que está preso à espera de decisão judicial, despejava soda cáustica. Quando a mistura começava a ferver, depositava um a um os cadáveres que lhe entregavam. Após 24 horas de ebulição, os corpos eram reduzidos a nada. Pelo “trabalho”, recebia US$ 600 por semana.
Esta é apenas uma entre tantas crueldades praticadas pelos cartéis de drogas mexicanos. Na disputa com grupos rivais e forças do Estado, desenvolveram métodos violentos e sanguinários.
“Há décadas existe esse tipo de violência, mas nos últimos anos ela atingiu um nível absurdo por causa da luta pelo controle do território e de ajustes de contas entre os grupos”, explica Alejandro Gutiérrez, especialista no assunto e autor do livro Narcotráfico, o grande desafio de Calderón.
A maneira clássica de “marcar” as vítimas, explica Gutiérrez, é o tiro de misericórdia na têmpora. Mas com o passar do tempo, o método mudou.
O cartel do Golfo, por meio de seu grupo armado Os Zetas, pratica, por exemplo, tortura com “tablazos” – pancadas com pedaços de pau – nas pernas e nas costas. Os cartéis de Tijuana e dos irmãos Arellano Félix são os que mergulham corpos em soda cáustica. Também protagonizan tiroteios em público, em que inocentes viram estatística por estarem no lugar errado na hora errada.
Até alguns anos atrás, o cartel de Juarez era considerado o mais discreto, pois simplesmente desaparecia com as pessoas e nunca mais se tinha notícia delas. Hoje, também pratica a desintegração e uma modalidade mais “exibida” de execução: a pessoa é sequestrada, torturada e morta, depois tem o corpo enrolado num cobertor e atirado num local onde possa ser facilmente visto. O rosto é totalmente coberto com fita adesiva.
Mas uma das práticas mais sanguinárias foi adotada pelo cartel de Sinaloa, de um lado, e pelos Zetas, de outro. “São os que começam a introduzir a decapitação, método que gera mais impacto na sociedade e mais terror no inimigo”, diz Gutiérrez.
Essa violência toda é algo novo? O especialista diz que não: “Sempre esteve presente, mas antes estava controlada. Tudo estava “armado” com as autoridades para que os meios de comunicação não ficassem sabendo. Estamos falando da época em que o PRI governava e ninguém ficava sabendo das grandes execuções que aconteciam no norte do país. Mas com a mudança de governo, os elos se soltaram e a violência ganhou a mídia”.
Cartéis dividem o país
Os grupos de narcotraficantes mexicanos estão presentes em praticamente todo o país. A Secretaria de Segurança Pública contabiliza seis grandes organizações: cartel de Sinaloa, cartel do Golfo e os cartéis dos irmãos Arellano Félix, Carrillo Fuentes, Amezcua e Díaz Parada.
O cartel de Sinaloa é considerado pelas autoridades mexicanas como a estrutura criminosa mais poderosa do México. Ela é dirigida por um grupo liderado por Joaquín Guzmán Loera, “el Chapo Guzmán”, que em janeiro de 2001 conseguiu fugir da penitenciária de segurança máxima de Puente Grande, na cidade de Jalisco. O centro de operações dessa organização é o estado de Sinaloa, no noroeste mexicano, tendo influência em toda a zona norte do país, nos estados de Sonora, Tamaulipas, Nuevo León, Jalisco e Michoacán.
O outrora poderoso cartel de Juarez, ou dos Carrillo Fuentes, ficou em segundo lugar no “ranking” do tráfico.
O cartel do Golfo, por sua vez, é considerado o mais violento e perigoso. Recrutou integrantes do Exército mexicano com treinamento especial e formou um comando armado denominado “Zetas”, seu braço armado. Opera fundamentalmente na parte norte do estado de Tamaulipas, mas entendeu sua presença até o sul, em Veracruz e Tabasco.
O grupo dos irmãos Arellano Félix tem sua zona de influência nas cidades de Mexicali e Tijuana, na Baixa Califórnia, fronteira com os Estados Unidos.
O grupo dos irmãos Amezcua Contreras ganhou destaque por traficar metanfetaminas. As autoridades da organização concentram as operações no estado de Colima. E finalmente a organização dos irmãos Díaz Parada, encabeçada por Eugenio Jesús Díaz Parada, “Don Chuy” e por Domingo Aniceto Parada, “Don Cheto”, desde a detenção de Pedro Díaz Parada, em 2007.
Leia a segunda parte da reportagem, sobre a expansão pelas Américas e pela Europa.
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