Córdoba é um estado na costa atlântica colombiana. Foi lá que nasceram e depois se desmobilizaram as AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia), principal grupo terrorista paramilitar de extrema-direita. A localidade é berço também dos chefes históricos da organização, os temidos Carlos Castaño e Salvatore Mancuso.
Antes aterrorizada pela atuação dos ‘paras’, Córdoba experimentou alguns anos de relativa tranquilidade após o início do processo de paz promovido pelo governo de Álvaro Uribe há cinco anos. No entanto, hoje, os níveis de violência em Córdoba voltaram a ser altíssimos.
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Carlos Castaño, um dos chefe das AUC, morto em abril de 2004
No sul do estado, as frentes 18 e 36 das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) controlam o Nudo De Paramillo, um parque nacional no trecho final da cordilheira ocidental. As forças governamentais acreditam que pelo menos 8,5 mil hectares do parque estejam ocupados pelo cultivo da folha de coca. Abaixo, no vale, os neoparamilitares dos grupos Los Paisas e Los Rastrojos recebem a pasta de coca dos guerrilheiros, a refinam e tentam levar o pó até a costa, de onde parte rumo à América Central. Mas a costa é controlada pelo grupo dos Urabeños, que está em guerra com os outros dois.
Nos arredores de Montería, há uma propriedade onde os homens de negócio e pessoas insuspeitáveis se reúnem com suas amantes ou jovens prostitutas, longe de olhares indiscretos. As luzes são poucas. Um canal flui plácido, acompanhado pelo coaxar das rãs coloridas. Entre as cabanas, há mesas de madeira isoladas, onde o ruído do rio encobre as vozes.
O comandante X – assim vamos chamá-lo – decidiu nos encontrar neste local, tarde da noite. “Desculpe-me pelo atraso”, grita, ainda antes de chegar à mesa. “Estava em uma reunião com os patrões.”
Bigode longo e espesso, cabelos negros penteados para trás, uma corrente de ouro com um grande crucifixo pendurado que surge no meio de uma camisa listrada, desabotoada de propósito: “Somos as autodefensas”, começa, apressado, sem esperar a pergunta. “Nada mudou! No momento do processo [de paz], pedi a meu chefe que não fosse desmobilizado e ele me colocou no comando de uma estrutura urbana.”
O comandante X chama o garçom para pedir a comida. O mesmo funcionário que antes se desculpara porque “a cozinha já estava fechada” anota o pedido, enchendo suas respostas com a expressão “sim, senhor”.
“Certamente não é o mesmo que antes”, recomeça o comandante. “Em Córdoba, era uma honra casar-se com um paramilitar, ou simplesmente conhecer um. Agora, nos sentimos como elefantes brancos ameaçados de extinção”. Ele faz uma pausa longa e olha para dois de seus homens, sentados em outras mesas, distantes o suficiente para que não escutem nada.
“Aqueles que antes nos elogiavam são os mesmos que hoje nos chamam de criminosos. O mesmo exército do qual sempre fomos aliados agora nos combate. Ainda conseguimos subornar alguns – por exemplo, um tenente da polícia local ou algum suboficial do exército –, mas eles também são transferidos rapidamente.”
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X se pergunta e responde por que continuar: “Que alternativas temos? Eu gostaria de viver uma vida normal, mas aqui não há trabalho. É por isso que continuamos existindo e que outros virão depois de nós. É uma história que nunca vai acabar. O que as pessoas precisam entender é que esta guerra é um negócio e que nossa existência convém sobretudo ao exército. Aos militares não interessa a paz. Em qual outro país há coronéis de 40 anos, perto da aposentadoria?”
Ele faz uma pausa, reflete e continua: “Mas a culpa é nossa, não deveríamos ter falado. Ver todos os nossos chefes que falam de suas relações com os políticos locais e nacionais, com as empresas, com os jornalistas e os latifundiários – isso é um grande erro. Sem nossos testemunhos não existiriam os processos da parapolítica. As condenações são culpa nossa.”
Faz outra pausa e toma dois goles de sua cerveja light: “Agora, quem vai confiar em nós? Todos vão pensar que, daqui a cinco ou dez anos, falaremos de todos os que nos apoiam hoje! Deveríamos ter ficado calados! Não somos confiáveis. Teríamos passado algum tempo na prisão, os políticos teriam continuado a nos dar o dinheiro e, cedo ou tarde, estaríamos limpos, livres e ricos. Agora, em vez disso”, continua, depois de beber mais um pouco, “todos querem nos ver mortos.”
X come um filé mal passado e, ao terminar, pede outro imediatamente, comentando como é excelente a carne de Córdoba. “Eu não poderia trabalhar de novo na montanha com os muchachos“, ri o comandante, massageando no sentido horário uma barriga redonda e pronunciada. “Estou com os Urabeños, como lhe contei. Gostaria de ter outra vida, mas não há como. Abandonei a universidade porque na época vi um futuro nas AUC. Pergunto-me o que foi negociado por nossos comandantes. Vejam a guerrilha: depois dos processos de paz, todos eles acabam na política, enquanto nós temos de aprender a ser camponeses, para morrer de fome no campo. Com as AUC, eu ganhava 50 milhões de pesos por mês (26 mil dólares) e gastava tudo com bebida e putas. Como posso viver como um camponês?”
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X foi um soldado antes de ingressar nas AUC, há 11 anos. Trabalhou em várias partes do país como instrutor militar. Acredita que os comandantes já não são como antigamente. “Faz quatro meses que não me pagam. Agora eles gastam todo o dinheiro, são muito maus. Certo, não nego que antes também havia alguns excessos. Os paramilitares são más pessoas, de fato. Não se pode matar os outros e continuar sendo bom.”
Faz nova pausa, suspira. Já esperava a pergunta, e responde: “Sim, fiz isso também, mandei matar pessoas e lamento, mas era uma questão de sobrevivência – ou elas, ou eu.”
X não acredita que as coisas tenham mudado muito, mas reconhece algumas diferenças na empresa (como chama os paramilitares): “Antes éramos mais organizados, havia uma clara linha de comando. Agora, todos agem sozinhos, ninguém controla os recrutas, eles fazem o que querem. Na verdade, são animais que matam qualquer pessoa sem motivo. Agora tampouco temos algum discurso ideológico, e isso porque não há um líder político em nosso grupo. Mas, fora essas diferenças, nada mudou. O que fazíamos antes, continuamos fazendo agora.”
O comandante X diz também que cerca de 90% dos anciãos dos novos grupos são desmobilizados que não tinham outra opção. “De fato, se alguém precisa formar um exército, é melhor escolher pessoas que já sabem como usar as armas, e não garotos sem experiência. Estes, usamos só para o controle urbano ou como informantes.”
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