Integrado à África Ocidental francesa, no contexto da partilha europeia do continente, no fim do século 19, o Níger sofreu a quinta deposição presidencial desde a proclamação da Independência, em 3 de agosto de 1960. A então República democrática e multipartidária teve seu dirigente, Mohamed Bazoum, destituído no final de julho por oficiais da própria guarda presidencial.
Para dirigir o país, foi criado um Conselho Nacional de Salvaguarda da Pátria, reunindo todos os corpos do Exército, da Guarda Nacional e da polícia, que havia suspendido as instituições, fechado as fronteiras terrestres e aéreas e estabelecido um toque de recolher.
À frente da junta que tomou posse após o levante, Abdourahamane Tchiani tem uma árdua série de tarefas diante de si. Na esfera doméstica, o novo homem forte do país precisa convencer parte da população da legitimidade do seu governo, resolvendo as principais questões que levou o alto comando, do qual fazia parte, a depor o então mandatário. Elas incluem erradicar a corrupção, miséria, fome, o desemprego e a falta de perspectivas profissionais para a juventude diplomada.
Um dos desafios, porém, encontra-se no âmbito externo. O levante militar foi fortemente condenado pelos parceiros ocidentais do Níger, as Nações Unidas e pela Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). A organização, da qual Niger é membro, respondeu imediatamente com medidas retaliatórias. Um embargo já entrou em vigor, com o cancelamento de todas as transações comerciais e financeiras com o país. E agora ameaça com uma intervenção militar, se a ordem constitucional não for restaurada.
Como se não bastasse, ainda tem que enfrentar o verdadeiro dilema da presença francesa em solo nigeriano. Não pode contrariar a opinião pública, que torce o nariz para os ex-colonizadores e flerta com Vladimir Putin, mas ao mesmo tempo não consegue prescindir das tropas francesas, vitais para impedir o avanço dos extremistas islâmicos ao longo das suas fronteiras.
Nesse sentido, contra os ex-colonizadores, David Ngonga, que ´é professor de Ciência de Gestão da Escola Europeia de Negócios em Paris, capital da França, disse a Opera Mundi que a presença do país liderado por Emmanuel Macron em Níger é considerada “neocolonial e imperialista“.
Segundo Ngonga, que já acompanhou períodos posteriores às guerras anticolonialistas em alguns países da África, o levante e as manifestações contra a França e o Ocidente podem ser pensados como uma “espécie de segundo movimento de independência”.
“Esse movimento tem como raízes no desejo de emancipação face ao antigo colonizador e às potências ocidentais”, disse ele à reportagem.
Leia na íntegra a entrevista de Opera Mundi com David Ngonga:
Opera Mundi: em que o atual levante ocorrido em Níger, que depôs o presidente Mohamed Bazoum, difere dos golpes anteriores, que ocorreram no país desde a sua Independência, em 1960?
David Ngonga: Esse inscreve-se um pouco na linha dos seus similares, quer dizer, um militar acha que pode fazer melhor do que os antecessores. Mas a grande surpresa para o mundo ocidental foi que, ao invés de oficiais de patentes intermediárias, capitães ou coronéis, esse de agora partiu de um membro da própria Guarda Presidencial, ele surgiu no âmago do aparelho de Estado. Ao mesmo tempo, a junta militar, representada pelo general Abdourahamane Tchiani, é ligada ao presidente anterior, Issoufou Mahamadou, que o nomeou como comandante da Guarda em 2011. Ou seja, o governante sai, mas seus aliados continuam no poder.
A CEDEAO, que muitos acusam de ser porta-voz dos interesses ocidentais na região, já que boa parte da sua manutenção é paga com recursos da Comunidade Europeia, já impôs sanções econômicas ao Níger e ameaça com uma intervenção militar, caso as iniciativas diplomáticas não surtam efeito. Você acha isso possível? E quais seriam as consequências?
Ao que tudo indica, os militares serão obrigados a tomar alguma medida, porque a eletricidade, por exemplo, já foi cortada pela Nigéria, a primeira a tomar medidas práticas. Níger recebe suas mercadorias importadas pelo porto do Benim, que também já fechou suas fronteiras. Tem o Banco Central da África Ocidental, que acabou de encerrar as atividades no país.
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Junta militar comanda o Níger após presidente Mohamed Bazoum ser destituído do cargo pela guarda presidencial
Então, fica cada vez mais difícil para a junta manter-se no poder, pois não é uma nação que dispõe de reservas financeiras. Porém, uma intervenção militar seria catastrófica, pois poderia desencadear uma guerra civil ou mesmo uma guerra regional, dando força aos extremistas, a quem interessa o enfraquecimento das instituições republicanas e laicas, para imporem a charia.
Qual o papel de Burkina Fasso e Mali nesse golpe?
A princípio, esses dois países não jogaram um papel relevante no golpe em si, mas já se manifestaram dizendo que, caso a CEDEAO realmente leve adiante uma intervenção militar, eles lutariam ao lado de Niger. Isso torna a intervenção muito mais complexa e improvável.
Em 30 de julho, manifestantes arrancaram a placa da embaixada francesa na capital nigerina, Niamei. A placa foi pisoteada e substituída por bandeiras russas, hasteadas no edifício. Como explicar isso?
Durante anos, a França, ex-potência colonial, tornou-se indesejável no Sahel, região que se estende do Senegal ao Chade. O exército francês foi expulso de Burkina Faso e do Mali. Já a Operação Barkhane, lançada em 2014 para combater o terrorismo, foi forçada a recuar para o Níger no verão de 2022. Aproveitando a situação, a Rússia vai expandindo sua influência e apresentando-se como um parceiro ideal em termos políticos, econômicos e de segurança.
Lembremos que em plena Guerra Fria, Moscou treinou muitos líderes e elites africanas. No Níger, Abdou Moumouni Dioffo, membro fundador do Partido Africano da Independência, formou-se na União Soviética. Esse apelo, que sempre existiu, foi agora bem explorado pelos militares. Uma das provas disso é de que distribuíram entre os manifestantes bandeiras russas.
Por outro lado, os jovens, pouco conhecem sobre a França, mas eles veem seus soldados e suas bases militares nas cidades e nos vilarejos. Algumas declarações desdenhosas dos líderes franceses tampouco ajudam. Em 2017, Emmanuel Macron, por exemplo, declarou que a África enfrentava um desafio “civilizacional”.
A presença francesa é, portanto, considerada neocolonial e imperialista. Para os jovens com formação acadêmica, mas sem nenhuma perspectiva de trabalho, ela seria responsável por todos os problemas existentes – pobreza extrema, fome, corrupção e avanço do extremismo islâmico, que deveria combater, mas não o faz. Esse repúdio pode ser pensado como uma espécie de segundo movimento de independência, com raízes no desejo de emancipação face ao antigo colonizador e às potências ocidentais.
De qualquer jeito, a juventude está em ruptura com os seus dirigentes, pelo menos na África negra francófila. Numa ponta temos as redes socais, que funcionam como amplificadores desse sentimento, e, na outra, um sistema político que não está à altura dos anseios da população.
A frustração é evidente com os governantes que apostam num jogo duplo, na tentativa de permanecer nas boas graças da opinião pública. Assim, se no passado aproveitaram-se dos laços que mantinham com os antigos colonizadores, agora, face ao descontentamento da população, eles surfam na onda, proclamando-se contra a França e gabando-se da amizade com a Rússia. Eles agem sempre na direção em que o vento sopra, de maneira perversa e sem escrúpulos.
Que medidas a França vai tomar perante o golpe?
Em primeiro lugar, acho que foi um erro repatriar os cidadãos franceses, porque eles não corriam perigo, visto que não há uma animosidade contra eles. A medida constitui, na realidade, uma jogada política. Agora, os 1.500 soldados franceses e os mil norte-americanos precisam permanecer.
Níger tem uma longa fronteira com o deserto. Se eles partirem, os extremistas islâmicos vão rapidamente tomar posse desse território. Então, ainda que vistos por muitos como uma força de ocupação, os soldados têm que continuar ali para manter a estabilidade contra o avanço dos grupos terroristas.
Paralelamente, reina também uma confusão que contribui para a incompreensão da verdadeira função das tropas francesas no Níger. Havia acordos militares que datam da época da descolonização, mas que muitas vezes são ignorados. Então, quando o Níger é atacado por um exército de um país aliado da França, seus dirigentes cruzam os braços, mas quando lhes interessa, eles tomam providências.
Então, por suas atitudes de “dois pesos e duas medidas”, a política francesa contribuiu para levar desconfiança à opinião pública. Portanto, creio que a França precisa se reinventar no contexto das suas relações com a África. É necessário implementar, na cabeça dos militares e dos políticos franceses, uma revisão do espírito colonial para tentarmos construir algo diferente do que existe hoje em dia.