Poucos períodos no calendário político e social da Rússia são tão relevantes quanto o mês de maio. Junto com a chegada de dias ensolarados após rigoroso inverno, a Rússia comemora o dia da vitória na Segunda Guerra Mundial e, periodicamente, inaugura um novo governo.
No maio corrente, a inauguração do mandato do presidente Vladimir Putin foi acompanhada pela formação de novo governo, com trocas relevantes de ministros e publicação de novas metas para o período 2024-2030, com perspectiva de extensão para 2036.
Os chamados objetivos nacionais do governo russo são o fortalecimento da economia, garantir a soberania tecnológica, acelerar a transformação digital, fornecer apoio social às famílias com crianças, aumentar o bem-estar e a renda dos cidadãos e equilibrar o desenvolvimento econômico entre as regiões.
Apesar da persistente caracterização do sistema político da Rússia pela mídia ocidental como uma estrutura totalmente centrada na figura do presidente, na realidade, o governo russo é numeroso e complexo. Em sua atual configuração, o primeiro-ministro comanda uma equipe de 21 ministros e 10 “superministros” (chamados vice-primeiros-ministros), que respondem por uma ampla gama de temas interdisciplinares. As atribuições dos vice-primeiros-ministros foram recentemente ampliadas, o que indica alto nível de delegação interna de funções.
Nomeado pelo presidente Putin, o primeiro-ministro Mikhail Mishustin inaugura seu segundo governo com uma equipe cada vez mais técnica e dominada por especialistas nas áreas econômica e tributária. Se nos primeiros mandatos de Putin os juristas e advogados predominavam nas fileiras do Kremlin, agora chegou a vez dos economistas, administradores e tributaristas.
O próprio Mishustin foi alçado ao cargo de primeiro-ministro após uma carreira no órgão equivalente à Receita Federal brasileira, durante a qual transformou-a na principal fonte de recursos para o erário do país.
O novo perfil do governo responde à transformação estrutural da economia russa desde o início do conflito ucraniano, em fevereiro de 2022. A imposição de sanções econômicas pelo Ocidente, a necessidade de envio de recursos para o front e a ampliação de pacotes sociais colocaram fim ao período ortodoxo da política macroeconômica russa, adotada com entusiasmo nos primeiros mandatos de Putin.
A retomada da Rússia como um “Estado Social” – conforme prevê a Constituição do país – legitima a ampliação de gastos do governo com programas de transferência de renda para famílias com filhos, regiões sensíveis no norte e extremo oriente do país e, claro, para veteranos da operação militar especial na Ucrânia.
Neste contexto se insere a escolha do economista Denis Manturov para o terceiro cargo da Federação russa: o de vice-premiê. Após longa carreira no complexo industrial militar, Manturov supervisionava temas como o desenvolvimento de tecnologias de uso dual no Ministério da Indústria. Desde o início do conflito ucraniano, ele é creditado como um dos arquitetos dos sistemas de importação paralela, que garante o acesso russo a bens essenciais. Além disso, Manturov é o primeiro representante do setor industrial a ser alçado ao terceiro cargo da Federação em 20 anos, gerando entusiasmo na Duma de Estado.
A tendência do segundo governo Mishustin de incluir economistas para supervisionar a atividade dos Ministérios é grande: até a pasta do consolidado chanceler russo Sergei Lavrov conta com supervisores externos para suas atividades econômicas, como o vice-primeiro ministro para Relações Exteriores Aleksey Overtchuk, e o vice-primeiro ministro para assuntos energéticos, Aleksandr Novak, coordenador das negociações no âmbito da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP).
Lavrov, como era de se esperar, foi mantido no cargo que ocupa como ministro das Relações Exteriores desde 2004. Como é de praxe, a recondução do chanceler ao cargo levanta especulações sobre um suposto desejo do diplomata de deixar o posto em função da idade. Segundo a mídia russa, membros influentes do governo Putin insistem na permanência de Lavrov, impedindo-o de obter sua teoricamente desejada aposentadoria.
Por outro lado, a exemplo do governo russo, o Ministério das Relações Exteriores também tem vice-ministros de peso, que respondem por uma ampla gama de temas. Dentre eles estariam os possíveis sucessores de Lavrov, com destaque para Sergei Ryabkov e Mikhail Bogdanov.

Presidente Putin foi reeleito para quinto mandato consecutivo à frente da Rússia
Economista na caserna
O exemplo mais claro de que a era dos economistas se instaurou no Kremlin foi a escolha de Andrey Belousov para substituir Sergei Shoigu no Ministério da Defesa. Formado em economia na Universidade Estatal de Moscou, Belousov passou os últimos quatro anos como vice-premiê, supervisionando áreas como o combate às sanções econômicas e política estatal para setores considerados monopólios naturais. Heterodoxo declarado, Belousov responderá por um Ministério da Defesa que absorve cerca de 6,7% do orçamento federal russo.
Além de fortalecer o controle civil das Forças Armadas, a nomeação de Belousov ainda terá como objetivo “integrar às necessidades dos setores de defesa do governo à economia do país”, declarou o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov.
Por outro lado, a nomeação de Denis Manturov, próximo aos interesses do setor industriar militar, ao cargo antes ocupado por Belousov, compensa o aumento da influência civil nos assuntos da caserna. Em oitiva no Conselho da Federação Russa, Manturov declarou que uma das prioridades de sua gestão como vice-premiê será garantir o suprimento técnico e material dos órgãos de segurança da Rússia – isto é, das Forças Armadas, polícias, órgãos de inteligência e defesa civil. Portanto, embora os civis tenham implantado um representante dentro do Ministério da Defesa, os militares também conseguiram emplacar nomes relevantes na estrutura civil do governo.
Tudo indica que, em um primeiro momento, o novo ministro da Defesa Belousov fará uma extensa auditoria nos gastos e métodos do Ministério. Nas últimas semanas, os jornais russos estão permeados por notícias de prisões ou abertura de inquérito contra figuras de alta patente das Forças Armadas, todas acusadas de “receber subornos vultuosos”, conforme a formulação padrão da procuradoria russa.
Ainda que o Kremlin negue que haja uma operação anticorrupção orquestrada no Ministério da Defesa, o fato é que as mudanças no alto escalão são significativas, tanto pela nomeação de pessoas próximas a Belousov quanto pela renúncia de membros graduados próximos ao ex-ministro Shoigu.
É importante notar que a auditoria de Belousov não deve impactar os desenvolvimentos no front, que ficam a cargo do Estado-Maior da Rússia, ainda liderado pelo general Valery Gerasimov. Portanto, decisões sobre estratégias e táticas no campo de batalha ucraniano seguem a cargo das Forças Armadas russas, e não do ministro da Defesa, o civil Belousov.
A queda de Sergei Shoigu também foi limitada, uma vez que lhe foi garantido o posto de Secretário do Conselho de Segurança da Federação Russa – órgão que subsidia a Presidência em assuntos de segurança nacional. Composto por ministros-chave dos blocos civil, militar e de inteligência do governo, o Conselho é convocado semanalmente. Essa periodicidade é superior às reuniões do gabinete de Mishustin, por exemplo. Portanto, seria prematuro prever o declínio da influência de Sergei Shoigu no processo decisório russo.
Por outro lado, a cadeira de secretário do Conselho de Segurança já foi utilizada como um elevador vagaroso, porém seguro, pelo qual autoridades russas descendem para cargos menos influentes. Pra dar lugar a Shoigu, o ex-diretor da FSB e aliado próximo de Putin, Nikolay Patrushev, teve que se contentar com o novo cargo de assessor presidencial para assuntos relacionados à construção naval. Ainda que o setor naval seja considerado sensível por Mishustin, por não ter cumprido as metas de substituição de importação de componentes essenciais, tudo indica que testemunharemos o ocaso de Patrushev.
No âmbito pessoal, porém, Patrushev ainda tem o que comemorar: seu filho Dmitry foi alçado de ministro da Agricultura para vice-primeiro-ministro para questões agrárias. Ainda que o sobrenome possa lançar dúvidas sobre os méritos do novo vice-primeiro-ministro, a verdade é que o administrador Dmitry Patrushev obteve bons resultados durante a sua gestão do banco agrário Rosselkhozbank. E foi durante a administração de Dmitry Nikolaevich no Ministério da Agricultura que a Rússia obteve uma balança comercial positiva no setor agrário pela primeira vez em sua história contemporânea.

Andrey Belousov é o novo ministro da Defesa da Rússia
Jovens das províncias
A nomeação de Dmitry Patrushev reflete outra tendência do novo governo Mishustin: a ritmada transição geracional no perfil do governo, com a inclusão membros mais jovens no primeiro escalão da administração pública. A ascensão de figuras como o novo ministro da Indústria e Comércio, Anton Alikhanov, de 38 anos, coincide com a saída de figuras de longa data, como o agora ex-ministro da Energia, Nikokay Shulginov, de 72 anos.
A nomeação de Alikhanov – que se tornou governador da região de Kaliningrado aos 30 anos de idade – também aponta para a inclusão de gestores estaduais na administração central em Moscou. Dos seis novos ministros russos, quatro são ex-governadores provinciais. Durante a primeira reunião com o novo governo, Mishustin expressou desejo de que estes ministros tragam para o Kremlin mais contato com as populações locais. Segundo o primeiro-ministro, “esse feedback que os colegas das regiões trazem [para o governo] é muito importante”.
Os governadores trazem sobretudo experiências relacionadas à operação militar especial. Anton Alikhanov precisou arcar com as dificuldades logísticas impostas pelos bloqueios de acesso da Rússia à região de Kaliningrado – um enclave russo na região do mar Báltico – e prometeu focar sua gestão no desenvolvimento da indústria de defesa, segurança alimentar e exportação de produtos de alto valor agregado.
Dois outros governadores estreantes no governo têm postura ideológica patriota, em contraste ao perfil tecnocrático de seus superiores no governo Mishustin. O novo ministro dos Transportes, Roman Starovoyt, de 52 anos, ocupou o cargo de governador de Kursk, uma das regiões mais próximas à linha de frente. Já o novo ministro do Esporte, Mikhail Degteryev, ex-governador de Khabarovsk, prometeu acelerar a educação patriótica nas organizações estatais voltadas para a juventude.
Na busca por um equilíbrio fino entre ideólogos e tecnocratas, economistas e militares, jovens e veteranos, o objetivo do governo russo é consolidar um novo período de estabilidade após as turbulências de 2022 e assentar o caminho rumo à sucessão presidencial.
Na primeira reunião do novo governo – que Putin convocou no meio da madrugada, indicando o nível de comprometimento que espera de seus pares –, o presidente russo aprovou programas de trabalho de três anos para cada ministro, prorrogáveis por mais três. Segundo ele, “pela frente, temos muito o que fazer pelo desenvolvimento sólido e de longo prazo do nosso país”.
De acordo com as novas emendas à Constituição russa aprovadas em 2020, o governo nomeado pelo presidente deve passar pela chancela do parlamento local, a Duma. Alguns ministérios críticos, como o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério do Interior e o da Defesa, são chancelados somente pelo Conselho da Federação, equivalente ao Senado Federal brasileiro.
No dia 10 de maio, a Duma chancelou a nomeação de Mikhail Mishustin para segundo mandato como primeiro-ministro sem nenhum voto contrário, mas com a abstenção dos 57 deputados do Partido Comunista da Federação Russa. No dia 12, o Conselho da Federação aprovou as nomeações para os ministérios da chamada “ala da segurança” do governo. No dia 14, Putin confirmou as nomeações e deu início formal ao mandato da nova administração russa.
(*) Ana Livia Esteves é correspondente em Moscou da Sputnik Brasil.