À frente da presidência rotativa do Mercosul e da União Europeia, Brasil e Espanha, respectivamente, têm acelerado as rodadas de negociações para que os dois blocos cheguem a um consenso sobre o acordo de livre comércio, assinado em 2019 mas que até hoje não passou para a etapa de ratificações. A eleição do ultradireitista Javier Milei para a presidência da Argentina pode representar um novo freio ao projeto – que já tem 24 anos.
Novas reuniões entre os dois lados estão marcadas para semana que vem para debater a contraproposta dos latino-americanos às exigências ambientais apresentadas pelos europeus, no começo do ano.
No cenário idealizado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o acerto seria finalmente anunciado na cúpula do Mercosul, em 7 de dezembro, no Rio de Janeiro – apenas três dias antes da posse de Milei em Buenos Aires.
Mas o prazo apertado, num contexto em que as resistências ao acordo permanecem inabaladas pelo setor agrícola europeu e em especial francês, torna esse objetivo pouco factível, na opinião de observadores ouvidos pela RFI.
Andrés Malamud, pesquisador da Universidade de Lisboa e especialista em integração regional na América Latina, lembra que, na contraproposta do Mercosul, Brasil e Argentina apresentam pontos que significariam a reabertura das negociações do texto assinado há quatro anos.
“Se esse acordo se reabre, nunca mais se fecha. Portanto, com as atuais posições, o acordo é impossível. Não vai acontecer – só aconteceria se aceitassem o que está escrito e assinado em 2019, mas ninguém quer, porque os dois lados são protecionistas: a Europa com o seu mercado agrícola e o Mercosul com sua indústria e compras governamentais”, resume o pesquisador argentino.
Estilo provocador
O economista Gabriel Gimenez-Roche, professor de Economia da América Latina na Neoma Business School, na França, observa que, durante a presidência de Jair Bolsonaro, as farpas entre o brasileiro e o presidente francês, Emmanuel Macron, representaram barreiras não-comerciais ao avanço do acordo. Agora, o mesmo cenário poderá se repetir com a figura de Milei.
Agência de Notícias das Indústrias
Próxima Cúpula do Mercosul, que discutirá acordo comercial com a União Europeia, acontecerá três dias antes da posse de Milei na Argentina
“Milei também dará elementos não-comerciais para bloquear o acordo? É bem possível. O Milei, pelo comportamento e atitudes que ele mostra, poderia provocar esse mesmo repúdio de ordem quase pessoal”, aponta o professor.
“Se for só um personagem, talvez ele deixe acontecer esse acordo, até porque é a maneira mais fácil para a Argentina de ter acesso à União Europeia. Eles (os argentinos) teriam um mercado muito mais aberto do que hoje em dia, em que o acesso é por cotas muito limitadas”, salienta.
Mais cético, Andrés Malamud avalia que nem serão necessários atritos diplomáticos entre o futuro líder ultraliberal e os europeus para que o tratado continue emperrado. “Esse acordo não funciona e é por culpa da Europa, porque a França é protecionista e tem mais nove amigos que são igualmente protecionistas. Não há de que culpar o Mercosul: Lula não consegue fazer e Milei não conseguirá impedir”.
Futuro do Mercosul
Para além do acordo com os europeus, restam interrogações quanto ao futuro do próprio Mercosul – do qual Javier Milei evocou retirar a Argentina e avaliou que o grupo deveria ser “eliminado”. Essa possibilidade, embora remota, colocaria o acordo com a UE ainda mais em xeque.
“Ele acredita no livre-comércio e sabe que o Mercosul é protecionista. Talvez ele utilize essa sua declaração expressiva para negociar a abertura do Mercosul, que é o bloco mais fechado do mundo. Mas sair seria muito complicado, tem custos que a Argentina não tem como pagar”, afirma o pesquisador da Universidade de Lisboa. “Ele aprenderá sobre o comércio internacional conforme avançar na sua gestão, afinal, por enquanto, não conhece muito. O Mercosul sobreviveu a Bolsonaro e provavelmente sobreviverá a Javier Milei, mas sobrevive sem funcionar”, frisa.
Gimenez-Roche também concorda que o novo presidente argentino tenderá a pressionar por uma maior abertura da aliança regional, permitindo, por exemplo, que os países possam negociar acordos bilaterais com outros países, fora do bloco.
“Se ele fosse coerente com as ideias dele, libertárias e anarcocapitalistas, ele sairia do Mercosul e não por protecionismo, mas para adotar uma abertura total do comércio exterior argentino. Mas será que ele fala sério? Uma coisa é ele pessoalmente falar sério, mas outra coisa é um Milei presidente com um Congresso no qual ele não tem maioria”, destaca o professor da Neoma Business School.