É possível que os militares mais claramente identificados com o presidente Jair Bolsonaro não repitam a “aventura infeliz” de intimidação do Supremo Tribunal Federal (STF), avalia o professor Alexandre Rodrigues, doutor em História e em Educação do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro, acrescentando que “de todo modo, devem continuar prosseguindo na falácia da militarização da Independência no imaginário social brasileiro”.
Em entrevista a Opera Mundi, Rodrigues analisa o tom de Bolsonaro para o feriado da Independência e a relação do presidente com as Forças Armadas brasileiras, um ano após manifestantes bolsonaristas organizarem atos defendendo pautas antidemocráticas e inconstitucionais, como o fechamento do STF e do Congresso Nacional, e o próprio Bolsonaro transitar entre manifestações em Brasília e São Paulo.
Na última quinta-feira (01/09), os comandantes da Polícia Militar e dos Bombeiros de Brasília emitiram um comunicado baseado em recomendação do Ministério Público Federal orientando que militares não participem de manifestações políticas na comemoração da independência. Até porque, segundo o próprio Regulamento Disciplinar do Exército, é proibido “manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”.
O desfile cívico-militar de 7 de Setembro, será realizado neste ano, como de costume, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Além disso, Bolsonaro já confirmou presença em um ato em Copacabana, no Rio de Janeiro, onde, por sua vez, as Forças Armadas também planejam ato, sem desfiles ou arquibancadas.
Para Rodrigues, “talvez não se possa afirmar que, monoliticamente, o Exército, como instituição, esteja ao lado do atual presidente da República”. Por outro lado, explica, “é evidente a extensa ocupação de postos públicos por militares no atual Governo Federal, que coloca as condições para um alinhamento sem precedentes em um governo civil”. “Descendo a hierarquia toda, há ganhos, mesmo que menores, para todos os que foram alçados a esses lugares pelo atual governo. Não é algo que se possa ignorar”, afirma Rodrigues. Segundo levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU), durante o governo Temer 2.765 militares tinham cargos no governo. Já no governo Bolsonaro, em 2020, o número subiu para 6.175.
O historiador comenta ainda que o temor de uma intervenção militar na política brasileira reapareceu, em particular após declarações de Bolsonaro sobre as denúncias envolvendo a intervenção do próprio presidente na troca de comando da Polícia Federal e de constantes tensões com o STF.
“O vídeo de uma reunião ministerial, divulgado em maio de 2020, com declarações de Bolsonaro, reforçou os delírios de intervenção militar e de ruptura com o regime democrático em diversos setores ultraconservadores e reacionários da política brasileira”, diz Rodriguez, acrescentando que se tratam dos mesmos setores que “continuam fazendo a apologia da ditadura empresarial-militar e encontram sintonia com a velha ideologia da segurança nacional, propagada pela Escola Superior de Guerra (ESG), ainda antes de 1964, que tinha a adesão dos militares golpistas de então”.
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Para historiador, governo Bolsonaro procura promover desvio do cumprimento do papel dos militares
Segundo Rodrigues, o governo Bolsonaro procura promover o desvio do cumprimento do papel dos militares no sentido de não se restringirem ao cumprimento de suas atribuições constitucionais. “A confusão envolvendo o papel das Forças Armadas na garantia da segurança pública é um exemplo de distorção, que, embora seja mais antiga, vem recentemente sendo bastante explorada, não apenas por Bolsonaro, mas também por outros candidatos de origem militar, como estratégia de campanha em uma sociedade assustada com a violência urbana”.
A isso, se alia o desgaste que os militares vêm sofrendo, seja como integrantes do governo Bolsonaro, seja por ações que se tornaram objeto de questionamentos nestes últimos anos, como compras pouco justificáveis com recursos públicos, privilégios na reforma da previdência, salários acima do teto do serviço público federal, e gestão militar da saúde na pandemia, por exemplo. Tal conjunto de fatores resulta na pesquisa divulgada pelo Instituto Ipsos, em agosto, que diz que somente 30% dos brasileiros confiam nas Forças Armadas. “Esse índice é considerado bem baixo, em comparação com outras nações pelo mundo, que possuem uma média global 11% acima do revelado no Brasil”, afirma o professor.
Onde militares e 7 de setembro se encontraram
A Independência do Brasil em relação a Portugal em 7 de setembro de 1822 marcou o início de uma série de acontecimentos importantes na história brasileira. Um deles foi justamente a criação das Forças Armadas, que segundo o próprio Ministério da Defesa do Brasil, nasceu após o rompimento com os colonizadores.
Ainda nos moldes e influências lusitanas, a chamada Guarda Cívica, criada por D. Pedro I, imperador do Brasil Reinado pós-independência, foi criada em 23 de setembro de 1822. Os primórdios das Forças Armadas eram formados por uma classe social compreendida como “gente limpa da cidade do Rio de Janeiro” – na época, capital do país.
Tal elenco formador da Guarda era responsável por compor quatro batalhões de infantaria e dois esquadrões de cavalaria. Na época, uma de suas principais atribuições era combater exércitos portugueses nas chamadas guerras de independência, que duraram até 1824, quando o processo de independência foi de fato concluído.
Rodrigues lembra que as organizações militares brasileiras tiveram “íntima relação com as classes dominantes em suas diversas formas e relações de poder” ao longo da história do Brasil.
A partir do II Reinado, sob o comando de D. Pedro II, a data de 7 de setembro foi escolhida como comemorativa, tornando-se um feriado nacional, também conhecido como “Dia da Pátria” desde 1949. A partir de então, o exército brasileiro comemora a independência do Brasil com desfiles militares e com a presença do presidente da República em governo.
Em 7 de setembro de 2010, Lula participava de seu oitavo desfile na Esplanada dos Ministérios. Na data da independência, em 2015, Dilma Rousseff e Michel Temer – então, presidente e vice – assistiram ao desfile oficial de uma área isolada. Com Jair Bolsonaro, eleito para o governo brasileiro a partir de 2019, não seria diferente.
Em seu primeiro ano de mandato, compareceu ao desfile tradicional em Brasília em carro aberto até o palanque. Em 2020, o desfile militar foi cancelado pela primeira vez desde a ditadura militar brasileira em razão da pandemia de covid-19. No ano seguinte, em 2021, a comemoração foi palco de manifestações golpistas, inclusive do próprio presidente.
Tal posicionamento preocupou líderes mundiais, que emitiram uma nota alertando para a ameaça à democracia que os atos planejados por Bolsonaro para o feriado da Independência representavam ao Brasil.
“Nós, representantes e líderes eleitos em todo o mundo, estamos soando o alarme: no dia 7 de setembro de 2021, uma insurreição irá colocar em perigo a democracia no Brasil”, afirmava a nota. A ver como será 2022.