A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) nunca teve tantos países. Com a recente entrada da Finlândia e a prometida admissão da Suécia, serão 32 estados-membros. Todavia, para o professor titular em Segurança Internacional e Resolução de Conflitos da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Héctor Luis Saint-Pierre, a recente cúpula da aliança militar mostra que ela pode estar mais fragilizada do que parece.
Durante dois dias de evento em Vilnius, na antiga república soviética da Lituânia, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, ouviu críticas incomuns de seus aliados ocidentais. O ministro da Defesa do Reino Unido, Ben Wallace, sugeriu que os ucranianos deveriam ser mais gratos pelo apoio que recebem e que ele “não é a Amazon” para atender os pedidos de armas de Zelensky.
O presidente ucraniano ainda classificou como “absurdo” a falta de um cronograma para a entrada de seu país no bloco militar. A declaração desagradou os líderes presentes no evento e Zelensky diminuiu o tom. A Ucrânia conseguiu novas armas e a promessa de apoio, mas um plano concreto para sua entrada na Otan não foi delineado.
Para Saint-Pierre, a foto de um Zelensky escanteado enquanto outros líderes confraternizam no evento demonstra sua “solidão da derrota”. Os europeus e os Estados Unidos apoiam a Ucrânia, mas ninguém quer entrar na guerra – ainda mais quando a contraofensiva ucraniana está sendo “massacrada” pelas forças russas.
“Quando a Europa começa a abastecer a Ucrânia (com armas), fica claro que eles estão entregando seus estoques. Para recuperar seus estoques (de armas), eles têm que sacrificar seus povos. Coisa que também discutiram na reunião da Otan, de aumentar o gasto militar para 2% do PIB ou até 3%”, diz o pesquisador ao Brasil de Fato. Para ele, a recente decisão de enviar bombas de fragmentação para o conflito demonstra a diminuição de arsenal militar.
Para enfrentar a deterioração de sua reserva de munições, a Alemanha anunciou nesta semana um pedido de 4 bilhões de euros em munição de tanque da sua maior empresa da área de defesa, a Rheinmetall, informa o Financial Times.
Saint-Pierre avalia que os Estados Unidos “arrastaram” a Europa para uma guerra que ela não queria e privou a região de um elemento importante: o gás natural e o petróleo russo que funcionavam como insumo do crescimento econômico dos europeus.
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Zelensky ouviu respostas inesperadas de aliados durante Cúpula da Otan
Enquanto isso, as empresas do “complexo industrial e militar dos Estados Unidos” conseguem um bom negócio ao vender material bélico antigo e ultrapassado e abrem espaço em seus estoques para renovar suas armas de guerra. De acordo com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, os estadunidenses já enviaram US$ 29,8 bilhões em armas e assistência militar à Ucrânia desde o início da guerra.
Diante da disparada da inflação no bloco europeu, do fortalecimento da extrema direita e do fim do barato gás russo, os líderes políticos da Europa devem ter dificuldade para justificar às suas populações um aumento ainda maior nos investimentos de defesa, crê o pesquisador. E para manter a coesão da Otan, o bloco agora aponta para China como antagonista. A declaração da cúpula da Lituânia ataca Pequim por suas “práticas coercitivas”.
Acontece que os chineses são atores cada vez mais incontornáveis do comércio global. Desde o final de 2022, portanto mesmo após a eclosão da guerra da Ucrânia, os líderes da Alemanha (Olaf Scholz), Espanha (Pedro Sánchez) e França (Emmanuel Macron) visitaram Xi Jinping em Pequim.
Além disso, o comércio internacional em moedas locais tem aumentado em detrimento do dólar, e as sanções contra Moscou não tiveram o efeito catastrófico esperado por Washington.
“Será cada vez mais difícil para os Estados Unidos manter essa estrutura. A recolocação de um novo inimigo como forma de manter essa estrutura militar com a China, eu acho meio complicado porque você tem visto as visitas dos líderes europeus à China, de quem dependem, com quem fazem bons negócios”, afirma. “Pode vir a quebrar esse complexo atlantista (da Otan), a menos que se inicie uma guerra (entre Estados Unidos e Rússia ou China), aí quem vai quebrar somos todos. Mas minha impressão é que não que vai durar muito mais a Organização do Tratado do Atlântico Norte”.
E até quando dura a guerra da Ucrânia? Saint-Pierre acredita que uma resolução não deve acontecer antes das eleições presidenciais dos Estados Unidos, enquanto a Casa Branca segue ditando os rumos da Europa. E o prognóstico é que os russos não vão perder o território ucraniano já dominado e talvez possam até expandir suas conquistas para toda a região sul da Ucrânia, incluindo Odessa, uma importante cidade costeira ucraniana às margens do Mar Negro.
“Esse conflito armado na Ucrânia, na realidade, é uma batalha de uma guerra muito mais ampla. Uma guerra da Otan e dos Estados Unidos pela hegemonia norte-americana no mundo”, diz o pesquisador da Unesp.