Na segunda parte da entrevista (leia a primeira aqui), Horst Wächter, filho do comandante da SS (força paramilitar do partido nazista) Karl Otto Gustav Freiherr von Wächter, ex-governador da Galícia (hoje noroeste da Ucrânia) e da Cracóvia (Polônia), conta que o pai chegou a fazer planos para vir o Brasil. “Ele foi a Roma em 1949 e havia uma dúvida sobre ir à América do Sul, à Argentina, e o Brasil também foi mencionado. Era um momento em que somente o Brasil teria aceitado imigrantes com passado nazista”, afirma.
Horst afirma ainda que a vida do pai, após a guerra, era “difícil”. “Ele passou quatro anos com um soldado alemão, verões e invernos, nos Alpes, mudando-se de casa para casa. Às vezes roubava comida, sabia onde havia armas.”
Na primeira parte, Horst contou que o pai tentou convencer Adolf Hitler contra o extermínio de judeus, pois a ideia de superioridade de raça é “non sense”. Veja o resto da conversa:
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Opera Mundi: Quais são as recordações pessoais que o senhor tem de seu pai?
Horst Wächter: Pessoalmente, eu não o conheci muito bem. Nós fomos “divididos”. Eu tinha três irmãos mais velhos – um irmão e duas irmãs – que eram muito mais próximos dele e o conheceram melhor. Quando a guerra acabou [em maio de 1945], eu tinha apenas seis anos e naquele período meu pai estava escondido. Meus irmãos mais velhos foram visitá-lo nos Alpes.
OM: E o senhor não foi?
HW: Nós não fomos porque éramos pequenos demais. Minha mãe tinha medo de que abríssemos a boca. Ela falava dele como se fosse apenas um tio. Ele passaria seu último Natal [de 1948] conosco clandestinamente, em segredo. Ele tinha pessoas que o ajudavam, austríacos. Porque havia os russos, os ingleses. Não sei o que teriam feito com ele se o tivessem encontrado.
OM: Sua mãe falava de seu pai?
HW: Sim. Mas minha mãe jamais falaria qualquer coisa de ruim sobre ele. Era tratado como um sacrossanto. Tenho algumas cartas faltando porque ela tinha muito ciúme dele. Ela chegou a pedir divórcio porque ele foi com uma secretária a Budapeste, mas ela nunca duvidaria de nada dele… Depois da guerra as coisas não eram como hoje. A coisa toda ainda estava acontecendo. Ele foi a Roma em 1949 e havia uma dúvida sobre ir à América do Sul, à Argentina, e o Brasil também foi mencionado. Era um momento em que somente o Brasil teria aceitado imigrantes com passado nazista. Foi falado no Brasil, e quem sabe ele teria ido parar lá também? (risos)
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Mas minha mãe era totalmente contra emigrar, porque ela tinha toda a família e amigos na Áustria. Isso teria sido difícil demais para ela, porque também já tinha se mudado muito. Depois do Putsch, meu pai foi para Berlim e se estabeleceu lá. Claro que ele encontrou uma namorada em Berlim e, em seguida, minha mãe seu mudou para Berlim logo antes da Anschluss [anexação da Áustria, em 1938]. Então eles se mudaram para Viena, depois Polônia, e quando a guerra começou ela quis comprar uma casa no campo perto do [lago] Zell am See, em Salzburgo, que tinha sido propriedade do partido católico. Passamos quase todo verão lá. Fomos criados assim durante a guerra até 1942, quando saímos de Lemberg porque estava ficando cada vez mais perigoso ficar lá.
OM: O que aconteceu exatamente no período entre o fim da guerra, 1945, e o ano da morte dele, em 1949?
HW: Isso está sempre escrito errado. Foi escrito que ele foi a Roma e teve uma boa vida. Tenho a cópia de um jornal comunista de 1949, quando circulou a mensagem de sua morte [em setembro daquele ano], dizendo que Wächter passou o tempo em iates de luxo, enquanto os trabalhadores não tinham nada.
OM: Nesse mesmo período ele conheceu [Alois] Hudal [bispo que facilitou a fuga de nazistas para a América do Sul].
HW: Ele passou quatro anos com um soldado alemão, verões e invernos, nos Alpes, mudando-se de casa para casa. Às vezes roubava comida, sabia onde havia armas. Ele teve uma boa vida? Mais ou menos. Uma vida difícil. Mas para minha mãe era difícil demais. Ela tinha de levar mantimentos, marcar encontros. Para ela era demais, porque tinha seis filhos para cuidar. Meu avô estava morando com ela, e ela não tinha condições físicas, sabe?
OM: Onde ela estava nesse período?
HW: Em Salzburgo. Em 1947 nós nos mudamos para Salzburgo. A família de minha mãe era muito rica. As propriedades foram confiscadas depois da guerra, mas meus tios faziam aquecedores elétricos, refrigeradores, etc. [E tinham uma casa na região]. Ela escreveu para a mãe do soldado pedindo para que buscasse seu filho. Depois a mãe apareceu e buscou o soldado. Meu pai não tinha habilidade para coisas práticas, para marcenaria, ele não era o tipo. Então ele se mudou para a casa de Salzburgo, mas era muito perigoso, e depois foi para a Itália. Passou também um tempo no sul do Tirol [região da Áustria] e depois houve a história do Hudal e a conexão com a América do Sul.
OM: Ele conseguiu um passaporte da Cruz Vermelha?
HW: Tenho algumas cartas que dizem que ele tentou. De qualquer forma, ele estava vivendo em Roma, em contato com Hudal, e ficou no monastério. Minha mãe se recusou a emigrar. Não é muito claro. Ele procurou todos esses contatos com conexões sul-americanas, mas não é certo que ele teria emigrado sozinho para a América do Sul. Ele era muito ligado à família. Em toda carta ele sempre cumprimenta os filhos. Não acho que ele possa… a história da América do Sul… não tenho certeza de que ele poderia ter emigrado. De qualquer modo, ele encontrou um empresário do cinema italiano e conseguiu um dinheiro dele, estava bastante orgulhoso. Isso foi logo antes de morrer. Mas talvez isso tenha sido demais para ele também. Ele vivia essa vida na natureza, nos Alpes, depois foi a Roma e todo dia nadava. Mas o canal vivia poluído por todos os dejetos de Roma. Então eu acho que ele realmente pegou a icterícia e morreu. Alguns dizem que ele morreu envenenado, mas acho bastante óbvio que ele tenha morrido de icterícia.
OM: O senhor nunca o viu nessa época?
HW: Ele passou o Natal de 1948 com a gente, em Salzburgo. Lembro que ele entrou no nosso quarto e nos viu dormindo. Claro que nós sentimos que havia uma pessoa ali, mas minha mãe nos disse que ele era um tio que também tinha seis filhos. Ela nos disse também que ele era da América do Sul. Acabei de lembrar disso, agora que você me perguntou. E ela disse também: “Algum dia a gente vai se reencontrar.” É isso o que lembro dele. Ele tinha um bigode.
OM: Sobre esse momento que o senhor relatou – o adeus e à menção à América do Sul -, lembra de mais algum detalhe?
HW: Só lembrei disso agora. Nunca tinha lembrado disso antes. Lembro de que ela falou da América do Sul e isso veio à minha mente. Então ela pode ter planejado…porque ela tinha um amor extraordinário por ele, e ele era muito dependente dela. Ela fazia de tudo para ele. Não acho que qualquer mulher faria tudo o que ela fez.
OM: Mas ela não queria emigrar…
HW: Acho que ela teria emigrado no final, se ele tivesse ido. Mas as coisas foram diferentes. Ele achou que poderia ganhar algum dinheiro em Roma, adaptar-se à vida em Roma. Ele era um cavalheiro e, por isso, quando viu que poderia ganhar dinheiro com o cinema, ficou mais tempo em Roma. Minha mãe teria se juntado a ele. A primeira coisa que ela fez no verão [de 1949] foi mandar os filhos ficar com os parentes, mas quando chegou [a Roma] era tarde demais. Ele foi enterrado uma semana após a morte.
OM: O corpo de seu pai foi trazido para a Áustria apenas em 1971.
HW: Era difícil. Minha mãe queria ter seus restos mortais de volta. Toda Páscoa ela ia a Roma para visitá-lo no cemitério. Em 1954, eles [a mãe e uma irmã mais velha] foram para a Sicília. Minha irmã se apaixonou e casou lá. Infelizmente, minha mãe não podia trazê-lo para a Áustria, então ela escreveu que os ossos seriam enviados para a Sicília, mas ela trouxe os restos mortais ilegalmente para a Áustria. Ele está enterrado no Tirol. Minha mãe comprou uma casa em 1967 e ele está enterrado lá.