Na véspera dos 55 anos do golpe militar que instaurou a ditadura no Brasil, em 31 de março de 1964, o presidente Jair Bolsonaro multiplicou as declarações favoráveis ao regime. Em 21 anos, a ditadura fez mais de 400 mortos e 200 desaparecidos políticos no país – um fato histórico que, na visão do presidente, mereceria ser comemorado.
Na opinião do diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, relator na Comissão de Direitos Humanos da ONU e ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade, a tentativa de revisão da história dos anos de chumbo por Bolsonaro e setores da política e das Forças Armadas só ocorre porque, até hoje, os crimes cometidos durante a ditadura não foram punidos. O Brasil optou por uma Lei da Anistia para favorecer o retorno à democracia, a partir de 1979.
“Nos países em que [a punição] ocorreu, o clamor de celebração da ditadura acabou”, observa Pinheiro, em entrevista à RFI Brasil.
O ex-ministro da Secretaria Nacional de Direitos Humanos durante o governo de Fernando Henrique Cardoso também ressalta que, na época em que coordenava a Comissão da Verdade, instaurada para esclarecer os crimes dos militares, as próprias Forças Armadas brasileiras se distanciaram do período do regime. “Esse é o paradoxo brasileiro: essas Forças Armadas não têm nada a ver com os seus predecessores que cometeram esses crimes”, afirma. “É muito contraditório que um governo de um Estado democrático, que reconheceu por lei esses crimes da ditadura, agora venha a comemorar a ditadura.”
Confira abaixo a entrevista completa:
RFI Brasil: O Ministério Público Federal, ao entrar com uma ação para tentar impedir as comemorações do golpe, evocou apologia a “atrocidades massivas”. No Brasil, não é crime fazer apologia à ditadura militar?
Paulo Sérgio Pinheiro: Existe essa base usada pelo MPF. Na perspectiva da antiga Comissão Nacional da Verdade, uma das recomendações é de que fossem proibidas manifestações de apoio ao golpe de Estado. Mas como o relatório parece que foi jogado no lixo, isso não é lembrado. Não há absolutamente nenhum sentido em comemorar um golpe de Estado, que abriu um regime que fez detenções arbitrárias, promoveu desaparecimentos, tortura. Você celebrar tudo que a Constituição de 1988 condena e desautoriza, é preocupante.
Como o senhor vê essa tentativa de reescrever a história, que está em curso no Brasil atualmente?
Eu estou perplexo, porque não é só o relatório da Comissão da Verdade. Em 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso propôs uma lei ao Congresso sobre as reparações para os cerca de 434 familiares de desaparecidos, na qual está escrito que os crimes cometidos durante a ditadura são de responsabilidade do Estado. É muito contraditório que um governo de um Estado democrático, que reconheceu por lei esses crimes da ditadura, agora venha a comemorar algo que está assentadíssimo não só pelo relatório como pela historiografia francesa, inglesa, americana e latino-americana. Não há uma controvérsia no mundo que o regime de 1964, que durou 21 anos, foi uma ditadura.
Mas, para algumas pessoas no Brasil, parece que há controvérsia.
Eu acho que para algumas correntes do Brasil, sim, o que é bastante preocupante. Em um regime em que o presidente da República era escolhido pelo alto comando das Forças Armadas e depois eleito por um Congresso manietado, controlado, com cassações de membros, é claríssimo que não se tratava de um regime democrático. É escandaloso que um governo eleito democraticamente comemore um golpe de Estado e uma ditadura, que vão totalmente de encontro com os princípios presentes nas eleições democráticas para presidente do Brasil.
Na época em que o senhor estava na Comissão da Verdade, havia pressões para que isso acontecesse, ou seja, que a ditadura fosse encarada de uma outra maneira, que os livros de história fossem revistos? E se havia, elas vinham mais de políticos, da própria população ou sobretudo dos militares?
Para ser justo, durante o governo Dilma, o ministro da Defesa, o embaixador Celso Amorim, e os comandos militares nunca se pronunciaram a esse respeito. Ao contrário, no final do governo, o ministro da Defesa saudou o relatório e disse que as Forças Armadas atuais não têm absolutamente nada a ver [com a ditadura]. Esse é o paradoxo brasileiro: essas Forças Armadas não têm nada a ver com os seus predecessores que cometeram esses crimes.
É lamentável, ao contrário dos seus colegas da Argentina, do Uruguai e do Chile, para citar só três países, que se desvencilharam desse legado. Esse legado é algo a não ser mais celebrado por parte das Forças Armadas. É claro que grupos de extrema direita e direita criticavam muito a própria instalação da Comissão da Verdade, no Congresso, na imprensa. Ela nunca foi uma unanimidade nacional. E quanto à população, acho que mais de 50% nem tomou conhecimento, porque nunca houve nenhuma punição para esses crimes, graças ao Supremo Tribunal Federal. O STF ratificou a autoanistia que a ditadura se deu em 1979. O Supremo, em 1989, confirmou o entendimento de que a anistia prevalece para os crimes cometidos durante a ditadura. Graças a isso, não houve uma tomada de consciência dos horrores que foram perpetrados na ditadura, e ainda permite essa falsa controvérsia.
O senhor acha que se tivesse havido a punição, a percepção hoje sobre a ditadura seria diferente?
Certamente. Justamente nos países em que isso ocorreu, o clamor de celebração da ditadura acabou. No Chile, por exemplo, o presidente Sébastian Piñera, que é de um partido de direita, se viu na obrigação de se distanciar e criticar as saudações que o governo brasileiro fez à ditadura Pinochet. Na mesma semana em que o presidente Bolsonaro estava lá, três militares foram condenados por terem queimado vivos alguns prisioneiros. Os processos continuam.
Na Argentina, membros da junta militar que ainda não morreram continuam na prisão. Isso faz a sociedade tomar consciência e, aqui, isso não ocorreu, o que permite que alguns setores da sociedade ainda se permitam achar uma boa celebrar. Devo reconhecer que mesmo as Forças Armadas resolveram tomar um certo distanciamento e preferiam não ter de ser obrigados a comemorar.
Tendo em vista toda a sua experiência internacional, como o senhor acha que fica para o Brasil ser representado por um presidente que defende a ditadura? Em relação à comunidade internacional, isso pode colocar o Brasil em uma posição de isolamento?
O que posso dizer é que desde o governo Sarney até o governo Dilma, o Brasil tinha uma posição de interlocuteur valable, um negociador confiável, apesar dos horrores e das violações de direitos humanos no Brasil. Até a presidente Dilma, o Brasil nunca negou a sua situação em direitos humanos e foi capaz de pôr em prática uma política de Estado de direitos humanos, através de muitos governos, diferentes entre si.
Um exemplo disso é que, no lançamento da Comissão Nacional da Verdade, todos os presidentes vivos compareceram. É claro que na medida em que haja um retrocesso e uma negação dessa política de Estado, a condição de interlocutor válido do Brasil provavelmente vai decair. O Brasil é membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU; tem responsabilidades especiais. Um governo que venha a prestigiar esse retrocesso deverá ser preocupante.
Já foi o exemplo que vimos no Chile, com o presidente Piñera, que mesmo sendo de direita, se distanciou de Bolsonaro nessa questão?
E das estúpidas declarações do deputado Onyx Lorenzoni (chefe da Casa Civil), que saudou o banho de sangue no Chile. Nunca ninguém foi tão longe quanto ele. Foi de uma ignorância extraordinária e uma ofensa aos 30 mil desparecidos da ditadura no Chile, tudo comprovado por duas comissões da verdade, que até o governo de direita reconhece.
UN Photo/Jean-Marc Ferré
‘É escandaloso que um governo eleito democraticamente comemore um golpe de Estado e uma ditadura’, diz Paulo Sérgio Pinheiro