O mundo ficou sabendo na última quarta-feira (09/09) que o presidente dos EUA, Donald Trump, mentiu deliberadamente ao minimizar a pandemia do novo coronavírus, já que havia sido informado desde o começo do ano da mortalidade da doença. A revelação foi feita pelo jornalista Bob Woodward, e a informação foi tornada pública na campanha de lançamento de seu novo livro, Rage (Ira, em tradução livre).
Woodward entrevistou Trump em fevereiro, mas só revelou os diálogos no começo de setembro – tempo suficiente para o vírus matar 190 mil pessoas no país, além de infectar mais de 4 milhões. Logo após a divulgação, jornalistas e analistas de diferentes espectros políticos passaram a se questionar: por que Woodward não falou sobre isso antes? O jornalista, famoso pelo caso Watergate, pode ser considerado cúmplice de Trump?
Para a revista progressista Jacobin, a resposta à segunda pergunta é “sim”.
“Em fevereiro, existiam muitas questões sobre a letalidade do coronavírus e como ele era transmitido; […] poucas pessoas pareciam ter respostas definitivas. Mas o jornalista mais famoso do país sabia – e sabia que o presidente também sabia – mas decidiu não contar a ninguém e quase 200 mil norte-americanos morreram desde então”, escreveram o pesquisador Andrew Perez e o editor David Sirota.
De fato, a notabilidade de Woodward vem de longa data. Junto com Carl Bernstein, ele foi o responsável por divulgar o escândalo de Watergate em 1973, que levaria à renúncia do então presidente Richard Nixon. O jornalista já escreveu 19 livros sobre a política norte-americana, quase todos considerados recordistas em vendas.
“Sejamos claros: histórias demoram para serem confirmadas e checadas. Mas Woodward não segurou a história por meses para checá-la. Ele não estava usando o tempo para publicá-la. Ele tinha a maldita gravação do presidente dos Estados Unidos, que já é relevante e noticiosa por si mesma”, argumentam os autores do artigo da Jacobin.
David Dayen, da revista de esquerda norte-americana American Prospect, chegou a dizer que Woodward não é mais o “repórter faminto de 1973”, mas sim um “frequentador de palácios em 2020” e que um escritor com um “colchão financeiro tão grande” como Woodward deveria “agir pelo interesse da humanidade e não pela primeira impressão [do livro]”.
Por sua vez, Christian Cristensen, norte-americano professor da Universidade de Estocolmo e colunista do jornal britânico The Guardian, rechaçou a hipótese de que publicar imediatamente as descobertas abriria espaço para classificá-las como fake news.
Wikicommons
Para jornalistas, Woodward foi ‘cúmplice no crime contra a humanidade cometido por Trump’
“Dizer que não faria diferença Woodward revelar imediatamente o que Trump disse sobre a covid-19 porque seria classificado como fake news é estupidez, porque é uma rendição total às forças antidemocráticas de desinformação. Por essa lógica, de que serve publicar qualquer coisa?”, questionou.
O jornalista Charles P. Pierce, da Esquire, publicação de lifestyle, questionou duramente a atitude de Woodward.
“Sejamos claros. Ambos sabiam antes de qualquer pessoa que o presidente estava mentindo em público sobre a crise de saúde pública mais séria em um século. Ambos sabiam antes que qualquer um soubesse quão séria era essa ameaça, e quão mortal essa doença poderia ser. Ambos sabiam antes de todo mundo que um desastre em potencial não era apenas possível, mas cada vez mais provável. AMBOS SABIAM!“, escreveu Pierce.
E as críticas não vieram somente de progressistas. O jornalista Griffin Connoly, que escreve para o jornal britânico conservador The Independent, questionou: “cara, o que você estava pensando?”
“Você considerou, por um momento, que divulgar em tempo real os comentários do presidente feitos a você sobre o ‘mortal’ coronavírus poderia tê-lo pressionado para tomar ações mais firmes na esfera pública, ajudando a proteger milhares de norte-americanos de um dano respiratório irreparável e da morte?”, questionou.
Já nesta quinta-feira (10/09), Sirota, da Jacobin, voltou a criticar a decisão de Woodward e disse que “200 mil pessoas morreram por conta de… futuras vendas de livros”.
O assunto foi tratado inclusive pelo próprio presidente Donald Trump, que defendeu a decisão de Woodward e disse que o jornalista manteve as informações em sigilo porque eram “respostas boas e apropriadas”, em referência ao fato de o mandatário minimizar a pandemia para supostamente não criar pânico entre a população.
Checou a fonte, mas demorou mesmo assim
Quanto à primeira pergunta, em sua defesa, Woodward afirmou que a informação não foi divulgada pois era necessário confirmar se era verdadeira e qual era a fonte de Trump ao dizer que o novo coronavírus era mais mortal que uma gripe comum.
Em entrevista à jornalista Margaret Sullivan, do Washington Post, Woodward disse que descobriu a fonte de Trump – um comunicado de alta inteligência do governo – em maio, três meses depois da entrevista, mas ainda quatro meses antes da publicação de ontem.
Mas porque não publicar então em maio, quando as fontes e a veracidade haviam sido confirmadas? Segundo o jornalista, o objetivo do material era oferecer um quadro maior da situação e não apenas uma notícia regular, sempre tendo as eleições presidenciais do dia 3 de novembro como prazo definitivo.
Ok, mas quem é Bob Woodward?
Figura extremamente conhecida no meio jornalístico, Woodward é um dos mais notáveis repórteres investigativos do mundo, sendo frequentemente lembrado por seu trabalho na divulgação do escândalo do Watergate, em 1973, junto com Carl Bernstein.
À época, os jornalistas do Washington Post provaram que o então presidente Richard Nixon sabia dos atos ilegais cometidos contra o comitê do Partido Democrata e, após a série de reportagens, o ex-mandatário renunciou ao cargo.
Essa parte da trajetória de Woodward já foi inclusive retratada no cinema, em “Todos os homens do presidente” (1976), de Alan J. Pakula, considerado um clássico do subgênero de filmes sobre jornalismo.
O trabalho de Woodward já rendeu dois prêmios Pulitzer (considerado a premiação máxima do trabalho jornalístico) ao Washington Post: o primeiro em 1973, pelas reportagens do Watergate, e o segundo em 2001, pela cobertura dos ataques do 11 de setembro.
Desde Watergate, Woodward vem escrevendo livros sobre quase todos os presidentes. Em 1976, lançou The Final Days (Os dias finais, em tradução livre), sobre os últimos dias de Nixon na presidência, além de quatro obras sobre os oito anos de mandato de George W. Bush e dois sobre o democrata Barack Obama. Em 2018, o jornalista lançou Medo – Trump na Casa Branca, a primeira obra de sua autoria sobre o governo do republicano.