A poucos dias da quinta-feira 21 de novembro, dia da grande greve geral, 350 militares chegaram ao centro de Bogotá. Chegaram à noite. Vieram de vários lugares de Cudinamarca: de Las Águilas, de Facatativa, do Páramo de Sumapaz, de Tolemaida. “Basicamente temos gente de todo o departamento [Estado], disse o major Luis Fernando Barco à Caracol Notícias. Chegaram armados com fuzis e camuflados. Logo depois de uma reunião no Batalhão da Guarda Presidencial, foram aos bairros do centro, fizeram revistas e confiscaram armas brancas e drogas. “A intenção”, disse o major Barco, “é apoiar a Polícia Nacional. Que nossa gente da capital, do centro de Bogotá se dê conta de que o Exército Nacional da Colômbia está em Bogotá e está acompanhando a Polícia Nacional.” Esperam-se mais militares para esta semana.
A militarização do centro de Bogotá, cenário de enfrentamentos entre manifestantes e forças de segurança, chega em meio a uma escalada de discursos contra a greve.
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Tudo começou em 4 de outubro: “o governo de Iván Duque e os grêmios anunciaram a necessidade de reformas trabalhista e previdenciária (…) que buscam piorar as condições dos trabalhadores, pretendem aumentar os lucros dos empresários (…), garantir o fortalecimento dos fundos privados de pensões ao custo de eliminar ou murchar a Colpensiones [empresa pública que gere as aposentadorias na Colômbia].
Com este comunicado, a Central Unitária de Trabalho (CUT) fez o primeiro chamado à Greve Nacional de 21 de novembro. A decisão foi resultado do Encontro Nacional de Emergência, um evento ao qual compareceram mais de 100 organizações sociais, estudantis, indígenas e sindicais.
No dia 30 de outubro, quase um mês depois, líderes indígenas da Organização Nacional Indígena da Colômbia (Onic) e do Conselho Regional Indígena do Cauca (Cric) reiteravam suas intenções de fazer parte da greve. Faziam-no um dia depois do assassinato de quatro indígenas do povo nasa, que se somavam aos mais de 60 indígenas assassinados neste departamento [Cauca] desde o início do governo.
E, no dia 4 de novembro, o senador Roy Barreras denunciou no Congresso que o Ministério da Defesa, encabeçado por Guillermo Botero, ocultou a morte de oito crianças durante um bombardeio em Caquetá. O senador promovia uma moção de censura contra Botero, que renunciou ao cargo antes que se finalizasse o processo. Duque aceitou a renúncia e aproveitou para fazer uma homenagem a Botero.
Durante este tempo, de 4 de outubro até hoje, a convocatória para Greve Nacional do dia 21 não parou de crescer, mas, tampouco, não pararam os discursos, oficiais e não oficiais, que rechaçam a mobilização e asseguram que o dia 21 estará protagonizado pela violência promovida pelas “forças obscuras” e que as causas da mobilização são todas mentirosas.
Na semana passada, em dois eventos distintos – um painel chamado Construindo País e o Congresso da Associação das Caixas de Desconto -, o presidente Duque assegurou que seu governo está sendo vítima de críticas que só buscam desvirtuá-lo e chamar à violência. Um par de dias depois, no Congresso Agropecuário Nacional, disse que a mobilização não via onde achar problemas, que buscava “jactar-se do fracasso das políticas” e que isso somente era “politicamente vampiresco”.
O ex-presidente Álvaro Uribe foi mais longe. Em uma série de tuítes, disse que a greve fazia parte da “estratégia do Foro de São Paulo, que tenta desestabilizar as democracias da América Latina”; fez referência a “anarquistas internacionais” que poderiam se infiltrar na marcha e disse que as reformas trabalhista e previdenciária, pelas quais muitos sairão a protestar, eram “notícias falsas que fazem parte do plano de desestabilização”.
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Há medo. As acusações que os líderes políticos têm feito repercutem na opinião pública e começaram a correr correntes de WhatsApp em que se alerta dos possíveis caos que poderiam ocorrer e em que se pede não ir, nem “deixar que seus filhos saiam” para a marcha. Isso, sem mencionar a aparição de vídeos como o que aparece Jaime Arturo Restrepo, conhecido nas redes como El Patriota, em que anuncia a criação de grupos civis antidistúrbios em Medellín.
Há medo. Nenhuma outra mobilização social havia gerado tanto nervosismo em um governo como a próxima greve geral.
Nem representação, nem transparência
A greve chega em um momento de grave inflexão no governo. A popularidade de Iván Duque segue baixando: segundo a última pesquisa Gallup, o presidente tem uma imagem favorável de apenas 26%. Nas sinalizações do presidente de e outros membros do Centro Democrático, sente-se um medo latente.
“Imagino que o governo sente angústia de que esse nível de insatisfação das pessoas se converta em um movimento social enorme nas ruas que não esteja em condições de negociar com ou deter”, diz Sandra Borda, professora da Universidade dos Andres e especialistas em relações internacionais. “A isso, deve-se somar que estamos ante um governo que, em um ano e meio, não aprendeu a falar com ninguém: nem com o Congresso, nem com outros partidos políticos. Teria que se perguntar se chegou o momento de negociar com os líderes dos movimentos sociais, o que iria sair disso. Parece complicado. Se eu fosse eles, também estaria assustada”.
“Em geral, o uribismo segue trabalhando na mesma retórica que tinha como oposição”, diz Carlos Cortés, jornalista da Mesa de Centro e analista político. “O vídeo que Uribe subiu dizendo que isso [a greve] era uma agenda alimentada pelo Foro de São Paulo é uma mostra. Claro, não podem seguir dizendo que é algo que se faz em Havana ou no processo de paz, porque isso já não acontece mais, então, agora, é o Foro de São Paulo: um fantasma criado que é uma bobagem.”
Para Cortés, além disso, o discurso do presidente Duque sobre a greve do dia 21 mostrou uma virada em sua atitude, que se afasta da mensagem de diálogo e consenso com a qual chegou à presidência e que, agora, se aproxima mais da narrativa uribista. “Me parece que, à medida em que o tempo foi passando e que se sente um pouco mais pressionado, fica com a cabeça mais quente.”
No extremo dessa “narrativa uribista”, além do próprio Uribe, estão outros como Paloma Valencia, que transmite as mesmas mensagens com muito mais afinco. Em um vídeo que a senadora publicou no Twitter, ela afirma que os promotores da greve não têm nenhum interesse nos temas que estão colocando, e que tudo é um esforço para que o governo de Duque não dê certo, porque, quando as pessoas não gostam do governo, acreditam que podem tomar as ruas – e, isso sim, sair a marchar é um direito protegido que serve para expressar a inconformidade, entre outras coisas, com o governo. “Não é verdadeiro que o governo planeje uma reforma da previdência (…). Tudo isso são mentiras que dizem, porque o que realmente querem é sabotar o governo”, diz Valência no vídeo.
Apesar disso, no dia 14 de outubro, a revista Portafolio publicou um artigo em que assegurava ter tido acesso exclusivo ao projeto de lei de reforma da previdência, um documento que propunha eliminar o regime de conta única de aposentadorias – operado em grande parte pela Colpensiones – e aumentar o valor das contribuições. “A mudança tem como objetivo que a Colpensiones opere tal como as Administradoras de Fundos de Pensões (AFP), o que eliminaria os subsídios. Assim, o Estado economizaria cerca de 15 bilhões de pesos anuais depois do fim da entidade, o que levaria uns 35 anos”, afirma a revista.
A ministra do Trabalho, Alicia Arango, afirmou que não há a intenção de acabar com a Colpensiones, e que a informação que circulou seria falsa e que só virou “desculpa para as manifestações”.
Inter-American Dialogue
Iván Duque, presidente da Colômbia: fake news e militares para desmobilizar greve
Luis Carlos Reyes, diretor do Observatório Fiscal da Universidade Javeriana, diz que essas afirmações, por parte do governo, são desonestas, pois há mais de um ano o governo tem escutado especialistas e distintos setores sobre uma reforma da previdência na qual estaria trabalhando. E ele sabe disso: o próprio Reyes foi uma das pessoas convidadas para as discussões.
“Creio que quase todas as propostas dos que temos participado nestes diálogos dizem que há que reconsiderar o regime de conta única, que é o da Colpensiones. Que o governo saia a dizer que é mentira que vão acabar com a Colpensiones é desonesto”, conta Reyes, que agrega que, o que o governo parece estar dizendo é que não deixará de existir uma entidade chamada Colpensiones, mas não explica quais são as mudanças pelas quais a entidade passaria.
“Quando o governo diz isso, está dizendo ao leitor casual que tudo vai continuar igual, mas nenhuma das propostas de reforma contempla que seja assim. Por isso entendo que isso irrite muita gente, porque estão tratando de nos enrolar com manobras fraudulentas, com a existência da pessoa jurídica, enquanto estamos querendo conversar sobre o que vai acontecer com esse sistema de aposentadoria que temos”, diz o acadêmico, que assegura que essa raiva é o que levou muita gente a apoiar a greve e a se unir à convocatória que assusta o governo.
“Com essa imagem violenta que o governo vem construindo da greve”, diz Cortés, “cultiva-se o medo nas pessoas”.
A estigmatização da greve
As afirmações da ministra do Trabalho, de Duque, de Paloma Valencia e até de Uribe são, de alguma forma, a face oficial do discurso contra a greve que tem circulado nos últimos dias. Não obstante, há outra face nas redes sociais, menos visível, que se alimenta desse relato de estigmatização mais oficial e que se torna, evidentemente, mais violenta. No Facebook, por exemplo, circula uma publicação de um sujeito que se identifica como membro do Exército e cuja mensagem é claramente ameaçadora:
Não é casual encontrar no mesmo perfil do Facebook informação distribuída por membros do Centro Democrático: a acusação de supostos infiltrados estrangeiros nas marchas – que definiram como “sabotadores profissionais” – ou o vídeo do homem encapuzado que defende a greve, ao mesmo tempo em que coloca o link de um manual no YouTube de como fazer bombas caseiras.
“Precisamos de mais elementos, mas a mim parece muito possível que tudo seja parte da fabricação de certo tipo de fatos para que a pauta da discussão vá nesta direção”, diz Cortés. “O [vídeo] do encapuzado é uma coisa que, segundo muita gente que o analisou, tem uma quantidade de elementos questionáveis que colocam em xeque sua veracidade. Provavelmente há agitadores que se infiltram nas marchas, alguns meios reportaram que há na Colômbia espiões que buscam desestabilizar o governo, mas o que o presidente e o uribismo buscam é que essas coisas, de alguma forma, tornem-se o argumento para que as pessoas não saiam de casa”.
Com essa imagem violenta que o governo vem construindo da greve, diz Cortés, se está cultivando o medo: “É basicamente o mesmo manual que usavam quando eram oposição: o do medo. Mas, dessa vez, como partido do governo (…). A tensão está se a greve terminará em caos, e provavelmente vão pichar edifícios e quebrar vidros, e isso será uma disputa de quem interpreta qual é o balanço da marcha. Mas, se acontece algo grave, eu responsabilizaria de imediato o governo, porque eles estão se encarregando de gerar condições muito adversas para esse protesto.”
Medo
Desde a posse de Iván Duque, a mobilização no país aumentou consideravelmente. Segundo um informe da organização Defender la Libertad, somente nos três primeiros meses deste governo houve 348 protestos, 59% a mais do que os protestos que ocorreram no mesmo período de 2017. Apesar de mobilizações, como as dos estudantes, terem provocado reações do governo, nenhuma marcha até agora, sobretudo ainda durante o período de convocação, suscitou tantas atitudes prévias e estigmatização por parte do governo como a greve do dia 21 de novembro. Desta vez, algo diferente está acontecendo.
“Me parece que esse nervosismo se deve ao cenário latino-americano”, diz a filósofa Luciana Cadahia. Segundo ela, o que aconteceu no Chile e no Equador demonstra que há um mal-estar na região frente aos governos de direita que tomaram medidas impopulares – e que geraram a mobilização da população. “Neste cenário de protestos cidadãos, o uribismo tem muito medo de que aqui se produza um cenário similar, que os protestos exponham o mal-estar da sociedade colombiana que, igual ao Chile, já leva muitas décadas.”
Para Cadahia, ese mal-estar terminaría refletido na greve com a exigência de paz, igualdade e democracia, três demandas que, afirma, Duque não consegue satisfazer.
“Este é um governo contrário à paz porque reativou a lógica da guerra, o assassinato das 18 crianças é o exemplo mais paradigmático. É um governo que é contra a igualdade. A lei de financiamento, por exemplo, favorece aos que já concentram o poder econômico e desfavorece as classes médias e populares. E também é um governo que não promove a democracia, porque os mecanismos institucionais se veem corrompidos e interrompidos pela violência e pela corrupção. O governo de Iván Duque se sustenta sobre as antípodas dessas três demandas e isso é o que causa nervosismo”, diz.
A onda de protestos na América Latina responde também a um mandato internacional de austeridade econômica. O caso mais claro é o do Equador, cujas manifestações começaram depois de o presidente Lenín Moreno anunciar várias reformas econômicas – como a eliminação do subsídio à gasolina e a diminuição dos salários no setor público – para ficar em dia com a dívida externa que vem acumulando há anos.
“Como nos anos 80 e 90, estamos vendo outra vez uma onda de mobilizações que têm a ver com questões econômicas. Não há que se generalizar, porque, por exemplo, o Chile foi uma surpresa, mas se alguém analisa, vê que é um país que, apesar de ter baixado muito mais seus níveis de pobreza em comparação com outros países, conserva uma desigualdade altíssima”, diz María José Álvarez, socióloga e professora da Universidade de los Andes.
Mesmo assim, a professora sublinha que as questões econômicas por si só não causam os protestos. Tem que haver, diz, uma politização destes temas e uma conjuntura em que o protesto pode ser efetivo. Prova disso é que, apesar de a desigualdade e a pobreza serem, às vezes, uma constante, ou pouco se modifiquem, os protestos sobre esses temas não o são. “As questões econômicas têm que se juntar com oportunidades políticas. Quer dizer, com sinais do sistema político de que isso de protestar serve para algo. Quando se combinam as necessidades econômicas como oportunidades políticas de algum tipo e com os recursos das organizações que atuam juntas, isso gera mobilização.”
“Creio que, mais ou menos a partir do governo de Uribe, deixou de ser certo isso de que, na Colômbia, eleições poderiam ser ganhas distribuindo-se pedaços de leitão nos povoados. Foram surgindo outros movimentos fortes, com um voto de opinião que tem cada vez mais força.” Neste contexto, diz Reyes, há cada vez mais políticos eleitos que chegam ao Congresso e às prefeituras representando efetivamente a cidadania que os elege e, nesse sentido, legislam de acordo com os interesses da população.
Toda essa conjuntura se configurou sob o mandato de um governo que, sobretudo, falhou em representar uma grande parte do país e que, na greve do dia 21, deve receber as demandas de uma cidadania que pede que tome conta dos temas que havia tirado de sua agenda. Uma prestação de contas. Por isso, o governo tem medo.
(*) Tradução: Rafael Targino. Texto publicado em cerosetenta com o título ¿Por qué tienen tanto miedo?