O terremoto de 27 de fevereiro de 2010 foi o quinto pior da história.
Mudou o eixo da Terra. Fez o planeta mover-se oito centímetros, os dias
ficarem 1,26 microssegundos mais curtos e a plataforma continental do
Chile crescer 1,2 mil quilômetros quadrados. A hecatombe que deixou um
rastro de 524 corpos e encolheu o PIB (Produto Interno Bruto) do país em
18% também antecedeu em 12 dias um outro rearranjo de dimensões
históricas. Em 11 de março, a direita voltou a ocupar a presidência do
Chile.
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Há exatamente um ano, o milionário empresário Sebastián Piñera
recebeu a faixa presidencial na cidade de Valparaíso, com a missão de
reerguer um país destroçado por um terremoto de magnitude 8,8 graus na
escala Richter e ainda politicamente dividido pelas cicatrizes de uma
das ditaduras mais brutais do mundo. Como para lembrar a dureza da
missão, no exato momento da posse, o teto do Congresso ameaçou desabar
com uma réplica de 6,9 graus, deixando atônitos os sete chefes de Estado
convidados para celebração da primeira vitória democrática da direita
chilena em meio século.
Wikimedia Commons
Sebastián Piñera e sua esposa no dia da posse, no Palácio La Moneda, em Santiago
A ascensão de Piñera fez a política local se assentar sobre um
novo eixo e teve impacto até mesmo no equilíbrio de forças numa América
do Sul claramente divida entre dois modelos conflitantes. Sua chegada ao
poder pôs fim à hegemonia que a coligação de centro-esquerda
Concertação vinha exercendo no Chile desde 1990. A posse do
mega-empresário marcou a primeira vez em 20 anos que o cargo máximo da
política nacional não esteve ocupado por um presidente ligado aos
partidos da Concertação – PPD (Partido pela Democracia), o PS (Partido
Socialista), a DC (Democracia Cristã) e o PRSD (Partido Radical Social
Democrata).
Esta foi também a primeira vez que a direita chilena exercitou
seus músculos desde a morte de Pinochet, enterrado três anos antes, em
Santiago, numa cerimônia que teve a presença de 60 mil pessoas e mostrou
quanto o passado sombrio deixou saudades em muitos chilenos, muitos
deles membros ativos da vitoriosa campanha de Piñera.
Do lado de fora da festa da posse, o luto e os escombros do
terremoto embalaram o réquiem da candidatura de Eduardo Frei Ruiz-Tagle,
um democrata-cristão que havia presidido o Chile (1994-2000), mas
fracassou no segundo intento, com uma campanha tímida, incapaz de
empolgar até mesmo parentes. Como os frágeis casebres de pescadores das
cidades de Llico ou Dichato, o reinado da Concertação desabou
inapelavelmente diante do tsunami que Piñera representou.
Nem mesmo os 84% de aprovação que a então presidente socialista
Michelle Bachelet tinha ao entregar a faixa foram capazes de conter o
que seria batizado como o ascensão da “nova direita”.
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Começo difícil
Ganhar a eleição de janeiro de 2010 com 51% dos votos não foi tão
difícil quanto herdar a missão de reconstruir um país arrasado por um
terremoto que, seguido de um tsunami, varreu cidades inteiras do mapa,
fazendo com que, da noite para o dia, o emprego de Piñera trocasse o
glamour pela dureza das funções de um bombeiro.
Ao apresentar sua campanha pela Coalizão pela Mudança, formada
pelos partidos de direita União Democrática Independente (UDI), Chile
Primeiro (CH1) e Renovação Nacional (RN), além de outros movimentos
menores, Piñera esperava levar de prêmio um dos países mais estáveis e
desenvolvidos da América Latina, com um índice de desenvolvimento humano
classificado como “alto” (45.º no mundo) e padrões de vida comparáveis
em muitos aspectos aos dos países mais desenvolvidos. Mas o terremoto
devastador ocorrido apenas 12 dias antes da posse mudou radicalmente o
cenário.
De cada três hospitais chilenos, um foi afetado pelo terremoto. A
mesma proporção de danos foi registrada entre as escolas do país,
especialmente na região centro-sul. As perdas para a economia chegaram a
30 bilhões de dólares. Mais de 200 mil habitações foram arruinadas.
Outras 370 sofreram danos importantes. Pelo menos 211 pontes caíram. O
país estava no chão.
João Paulo Charleaux/ Opera Mundi
O terremoto causou prejuízos de 30 bilhões de dólares. Mais de 200 mil habitações foram arruinadas
A ambição que a direita chilena tinha de deixar sua marca, virando
a página suja dos 17 anos de ditadura e apresentando uma alternativa ao
mesmo tempo democrática e economicamente liberal, teve de ser
redimensionada diante da tarefa de reconstruir o país. Para piorar,
Piñera tem um mandato de apenas quatro anos – o mais curto entre os
países latino-americanos – e sem direito a reeleição. Em resumo, seu
governo está quase completamente paralisado pela reconstrução, uma
tarefa difícil em termos práticos, mas modesta quanto aos lucros
políticos.
Apesar do cenário interno negativo, a economia chilena cresceu
5,2% em 12 meses, motivado principalmente pela alta de 43% na demanda
internacional pelo cobre, principal produto de exportação do país. As
exportações somaram 70 bilhões de dólares no mesmo período e a economia
chilena atraiu seis bilhões de dólares em novos investimentos.
Se o terremoto arrasou a infraestrutura em grande parte do
território, ofereceu também oportunidade de crescimento para a
construção civil, um dos setores que mais emprega mão-de-obra de baixa
qualificação. Em um ano, foram criados 420 mil novos empregos e o
presidente ganhou um calendário inesgotável de obras públicas para
inaugurar.
“No primeiro ano do meu governo, fizemos pouco mais de 50% da
reconstrução”, disse Piñera no primeiro aniversário do terremoto. “Ainda
falta a outra metade”, admitiu. A lentidão em reconstruir as casas
destruídas pelo terremoto – o déficit habitacional do Chile pulou de 600
mil para 820 mil em apenas três minutos – é um dos fatores que mais
pesaram contra o presidente em seu primeiro ano de governo.
Uma pesquisa realizada em cooperação entre a consultora
Imaginacción, a rádio Cooperativa e a Universidade Técnica Federico
Santa Maria revelou que 61,3% dos chilenos acreditam que o governo
Piñera tem sido pior que o esperado. “Nenhuma pesquisa pode substituir a
satisfação de estar cumprindo com os compromissos que assumimos com o
povo chileno”, minimizou o vice-presidente Rodrigo Hinzpter. Ele mesmo
teve a maior queda na aprovação entre os membros do gabinete de Piñera,
segundo levantamento do instituto Adimark; perdeu cinco pontos
percentuais, caindo de 64% para 59% no mês passado.
Direita x esquerda
Historicamente, as eleições no Chile são definidas por uma
estreita margem de votos e o país é um dos poucos onde a divisão entre
“direita” e “esquerda” se faz sentir até mesmo em conversas informais. O
país é quase dividido ao meio quando se trata de apoiar um ou outro
campo. E a cada quatro anos, o equilíbrio entre estes dois setores é
posto à prova.
Wikimedia Commons
Michelle Bachelet, que terminou o mandato com alto índice de aprovação, não conseguiu eleger seu sucessor
Na primeira eleição depois do fim da ditadura, em 1990, o
candidato da Concertação Patricio Aylwin venceu o ex-ministro
pinochetista Hernán Büchi com 55% dos votos. Nas eleições seguintes,
Eduardo Frei Ruiz-Tagle chegou à presidência com quase 58%, no que pode
ser considerado um ponto fora da curva, uma margem incomum para o padrão
chileno. Basta ver que Ricardo Lagos venceu o direitista Joaquín Lavín
por apenas 30 mil votos – o equivalente a um voto por mesa eleitoral –
nas eleições de 2000. E a socialista Michelle Bachelet teve 53% contra
Piñera na primeira vez em que ele disputou o cargo, em 2006. Os números
mostram um equilíbrio constante. Este padrão só foi alterado no ano
passado, com a chegada de Piñera ao poder.
Direitos humanos
Hoje, a “nova direita chilena” diz que o passado autoritário foi
superado. Mas mantém entre seus quadros figuras como o advogado Sergio
Romero, premiado com o cargo de embaixador do Chile em Madri, apesar de
ter sido vice-ministro da Agricultura da ditadura Pinochet e ter
presidido a SNA, entidade patronal da agricultura que teve papel
fundamental na desestabilização do governo socialista de Salvador
Allende (1970-1973).
Romero também se opôs à tentativa do juiz Baltazar Garzón de
julgar Pinochet por crimes contra os direitos humanos quando o ditador
estava internado numa clínica de Londres, em 1998. O próprio Piñera fez
discurso contra a iniciativa de Garzón em Santiago, na mesma época. “O
senador Pinochet e sua família estão vivendo tempos difíceis em Londres
neste momento. Por isso, merecem toda nossa solidariedade. E queremos
dizer ao juiz Garzón, e que ele entenda muito bem: Chile sempre foi e
continuará sendo um país livre e soberano”, disse num comício de apoio
ao ditador.
Outro colaborador da ditadura promovido no governo Piñera foi o
general Guillermo Castro, que, apesar de ter sido agente da Central
Nacional de Informações (CNI) de Pinochet, assumiu o cargo de chefe do
Estado Maior do Exército este ano. Pressionado pelo Grupo de Familiares
de Detidos e Desaparecidos (AFDD), o ministro da Defesa de Piñera,
Andrés Allamand, deu uma justificativa reveladora. Para ele, o fato de
Castro ter sido membro da sombria SNI não é razão suficiente para
sacá-lo do cargo. “Não há processos contra ele”, disse Allamand. Mas,
como chefe do Estado Maior, o general será responsável por entregar as
informações que a Justiça solicitar nas investigações dos crimes
cometidos pela ditadura contra os direitos humanos. “É como pôr o gato
para cuidar do açougue”, disse a presidente da AFDD, Lorenza Pizarro.
Para os que acreditam que as violações aos direitos humanos foram
muito mais daninhas para o Chile que os logros econômicos da ditadura
Pinochet, os sinais emitidos por Piñera ainda são titubeantes quando se
trata desvincular-se de figuras como Romero ou o general Castro. E se é
certo que Piñera não representa a simples continuidade da direita que
governou o país nos anos 1970 e 1980, também é verdade que não foi capaz
de imprimir uma marca que vá além do slogan da “nova direita”.
Mais que reerguer estruturas físicas destruídas pelo terremoto e o
tsunami do ano passado, os chilenos estão vivendo quatro anos de
alternância no poder, algo inédito por gerações – primeiro, com 17 anos
de ditadura e, depois, com 20 anos de governos democráticos da
Concertação. Como as placas tectônicas que se reacomodam sob a
cordilheira, direita e esquerda ainda terão três anos para aprender a
viver papéis trocados fazendo valer na prática os logros e revezes da
democracia.
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