Nas redes sociais circularam vídeos em que um grupo de detentos grita do telhado do presídio de Bellavista, em Santo Domingo, no Equador, enquanto denunciam que os presos de segurança máxima assumiram e controlaram os pavilhões de segurança intermediários. “Os 'Lobos' estão com fuzis, querem nos pegar cercados. Estamos trancados nos pavilhões. Estamos sem armas. Estão escondidos nos arbustos verdes”, afirmaram os detentos, de acordo com áudios recebidos pelos familiares e as denúncias feitas.
O episódio retratado ocorreu por conta de um conflito entra duas facções rivais, “Los Lobos” e “R7”, deixando um saldo de 44 mortos e 10 feridos no presídio.
Motins como o que aconteceu em Santo Domingo não são incomuns no Equador, que enfrenta uma crise carcerária com uma população encarcerada de 38 mil presos, quando na verdade, tem capacidade para apenas 29 mil detentos.
As celas e complexos carcerários no Equador são palco de rebeliões generalizadas que afligem o governo de Guillermo Lasso. Desde fevereiro de 2021, apenas três meses antes do presidente assumir a administração do país, cerca de 350 pessoas morreram em motins e massacres nos presídios equatorianos.
O atual presidente é um ex-banqueiro, direitista e conservador que, desde a campanha, observa alguns dos principais problemas que encontraria na gestão: as desigualdades e crises vividas pela população equatoriana refletidas no declínio do sistema penitenciário.
O confronto em Santo Domingo foi o primeiro episódio de rebelião nas penitenciárias do país em 2022. Antes disso, o Equador já havia enfrentado diversas outras, que acabaram sendo uma das principais pautas dos primeiros meses de seu mandato. Em fevereiro deste ano, Lasso afirmou a pretensão de conceder um indulto a cerca de 5 mil presos para reduzir a superlotação nas penitenciárias.
Quando 118 presos foram mortos no pior motim penitenciário do Equador, em outubro de 2021, Lasso já tinha prometido suspender a pena de 2 mil. A prioridade seriam mulheres, idosos e pessoas com morbidades ou doenças terminais.
Como parte do plano para diminuir a violência e melhorar o sistema prisional, o governo também afirmou promover a chamada “Política Pública de Reabilitação Social”, com um orçamento inicial de 27 milhões de dólares. No planejamento, seriam desenvolvidos projetos de trabalho, justiça, educação, cultura, esportes, assistência social e direitos humanos para os presos.
A política de morte latino-americana
Os métodos punitivos praticados atualmente no Equador são extremamente ineficientes e precisam ser repensados com urgência, é o que defende o diretor do Comitê Permanente de Defesa dos Direitos Humanos do Equador, Billy Navarrete. Para ele, o processo de reabilitação “não existe”. “Então não há expectativas para um plano de desencarceramento ou para evitar a reincidência”, afirmou.
O encarceramento em massa afeta diretamente os países em desenvolvimento, principalmente os da América Latina e África. Uma das principais opções para desafogar o sistema carcerário equatoriano são as políticas públicas de desencarceramento.
Do total de presos equatorianos, cerca de 70% estão nas três prisões onde ocorreram as maiores incidências de rebeliões, Guayaquil, Latacunga e Cuenca, segundo dados do Serviço Nacional de Atenção Integral a Pessoas Adultas Privadas de Liberdade e Adolescentes Infratores do Equador (SNAI). Além disso, 15 mil desses detentos ainda não receberam condenação, e aguardam uma decisão judicial em custódia.
Para abrigar esse contingente de pessoas privadas de liberdade, ao todo, o país conta com 65 penitenciárias, a maioria construída na última década. Os números mostram a dimensão da crise e revelam o quão sobrecarregados estão outros presídios, e as consequências humanitárias são severas.
“A partir de 2018, a situação vem se intensificando. É um episódio de violência e descaso agudo. Nesse período, a responsabilidade estatal vem sendo totalmente negligente”, relata Navarrete. Em números absolutos, a incidência de rebeliões dentro dos presídios aumentou, bem como a taxa de superlotação e, consequentemente, decaíram as condições de vida dos presos.
O representante do órgão de direitos humanos afirma que um dos momentos mais traumáticos surgiu de uma série de rebeliões nos anos 1990, que incluíram a crucificação de presos em uma demonstração de sacrifício público.
Outra demonstração para atrair a atenção pública ocorreu em 13 de novembro de 2021, após confrontos em Guayaquil, que resultaram em 68 mortos e 25 feridos. Depois do episódio, foi informado pela SNAI que cerca de 8.400 presos das cidades andinas de Cuenca e Latacunga se recusaram a comer no dia seguinte, em solidariedade às vítimas do massacre.
Twitter/SNAI Equador
Celas e complexos carcerários no Equador são palco de rebeliões generalizadas
Os organismos ligados aos direitos humanos qualificam todos os presos como vítimas de tortura diante desses problemas.
“Nossa missão é fazer com que as pessoas privadas de liberdade sejam tratadas como seres humanos, independente de terem se comportado bem ou mal no passado, e fazer com que as autoridades do governo cumpram as obrigações que estão na lei”, declara Navarrete sobre o trabalho realizado pelo Comitê.
A crise carcerária como sentença perpétua
A atenção para o setor carcerário passou a ser redobrada no governo de Rafael Correa (2007-2017). Sua gestão estendeu a política intervencionista para tratar da crise penitenciária no país, com um projeto que incluiu o aumento do número de penitenciárias, investimentos na segurança das prisões e medidas como a revisão de penas e libertação adiantada, que diminuíram a população carcerária.
Ao mesmo tempo, não foram colocadas em prática ações voltadas à recuperação e ressocialização das pessoas privadas de liberdade.
Especialista em sociopolítica equatoriana e pesquisador do Núcleo em Estudos em Teoria Social e a América Latina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Daniel Henrique Ferreira relembra que a gestão de Correa foi responsável por uma “Constituição modernizada”, mas que não foi efetivamente aplicada.
“Apesar das políticas progressistas na teoria, na prática, Correa aplicou uma linha dura quanto às prisões durante seu governo”, disse.
No início de 2021, quando a crise se agravou e as rebeliões se tornaram mais intensas, o então presidente equatoriano Lenin Moreno afirmou que, por trás das rebeliões, havia uma disputa entre facções ligadas ao narcotráfico. Segundo Ferreira, as brigas entre grupos criminosos funcionam como um “estopim” para ondas de violência, considerando a situação precária dentro dos presídios.
Mais de um ano depois, agora com Lasso no governo, a explicação que guia a série de revoltas penitenciárias ainda é a mesma. São destacados pontos como o controle das facções dentro das penitenciárias, dificuldades em contornar a superlotação e uma supervisão mais rígida como forma de prevenção.
“Dentro de um presídio, você ser de uma facção é muito importante para se proteger de demais grupos criminosos, e também para conseguir qualquer tipo de privilégio que melhore as condições de vida lá dentro”, explica o pesquisador.
Em setembro do ano passado, Lasso declarou estado de exceção em prisões após as rebeliões em Guayaquil, tendo o narcotráfico como culpa da violência no país, inclusive nos presídios. Essa medida estatal suspende visitas e tempo de socialização entre os presos, além de legitimar a presença das Forças Armadas para segurança.
“Processo de reabilitação não existe”
No entanto, para diretor do Comitê Permanente de Defesa dos Direitos Humanos, a situação precária dos presídios do Equador é um reflexo pelo qual está submetida a população. Navarrete afirma que as pessoas em liberdade enfrentam a mesma invisibilidade dos problemas sofridos pelos presidiários.
Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos do Equador (INEC), a cidade portuária de Guayaquil tem mais de 370 mil habitantes em moradias precárias e com acesso limitado ou inexistente a serviços básicos. “O processo de reabilitação não existe, então não há expectativas para um plano de desencarceramento ou para evitar a reincidência”, afirma Navarrete.
Uma pesquisa realizada pela empresa Clima Social, em dezembro de 2021, apontou que 56,5% da população equatoriana reprovava o governo de Lasso. Destes, 42,5% classificaram a gestão como ruim, e 14% como péssima.
Alexis Brito, professor e advogado criminalista com especialidade em direito penal, comenta a importância do investimento em políticas públicas que prestem atenção nos demais problemas da sociedade que os delitos esbarram, impedindo que políticas públicas sejam aplicadas nas demais áreas necessárias à reabilitação social.
Brito confirma a existência da criminalização da pobreza: “usamos o sistema penitenciário para fazer higiene social, uma vez que o sistema penal é extremamente seletivo e a lei aplicada a pobres e a ricos é diferente”. Para ele, isso acontece porque o método de punição é a seleção dos crimes contra patrimônios, que é potencializado pela falta de condições sociais da população.
A Organização das Nações Unidas (ONU) projeta um número ideal de 300 a 500 pessoas por penitenciária, e na maioria dos países latino-americanos são construídas prisões com capacidade para 750 detentos, com superlotações que chegam a atingir um número de duas a três vezes maior do que o planejado.
O jornal The Intercept Brasil apurou que a América Latina conta hoje com uma população carcerária de mais de 1,5 milhão de pessoas. Entre os presos, 57% são de presídios brasileiros, o que corresponde a cerca de 860 mil pessoas.
(*) Com Telesur