O impacto da exportação e do uso da soja na alimentação de animais destinados ao consumo humano é o foco do relatório “Quando o desmatamento chega à nossa mesa”, publicado nesse mês pela ONG Mighty Earth (“Poderosa Terra”, em inglês), em parceria com a RFI. No documento, ativistas alertam para o desmatamento desenfreado, a perda de propriedades de pequenos agricultores e problemas de saúde na população ligados ao uso de pesticidas.
“Eu, que nasci e cresci aqui, não acredito que a soja seja um alimento. Para mim, ela é uma doença. A soja é para as grandes empresas, não para nós”. É com a denúncia da agricultora argentina Catalina Cendra, da região do Chaco, que começa o longo relatório da ONG Mighty Earth, chamando a atenção para as consequências da exportação e da utilização da soja no mercado global. “Os aviões pulverizadores passaram às 6 horas da manhã. Eles envenenaram a água e os reservatórios. Eles nos deixaram doentes”, declara Cendra.
O cultivo da soja e sua exportação para alimentar animais pelo mundo todo é um problema complexo e que tem consequências locais, como mostra o caso de Catalina Cendra na Argentina, e globais, como é o exemplo da França, que tem o produto como uma das principais fontes de alimentação na criação de animais. Todos os anos, o país importa de 3 a 3,5 milhões de toneladas de resíduo de soja, sendo boa parte oriunda do Brasil, que é o maior exportador do produto para a Europa.
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Documento publicado neste mês trata dos impactos causados pelo uso da soja na alimentação de animais
O relatório teve como foco a região do Chaco, cuja área verde se estende pelo Brasil, Argentina, Bolívia e Paraguai. Menos conhecida que sua vizinha Amazônica, a floresta do Chaco possui uma biodiversidade extremamente rica, com 110 milhões de hectares onde habitam 3.400 espécies de plantas e 500 de pássaros, além da maior variedade de tatus no mundo. Várias comunidades indígenas também vivem no local e dependem basicamente da caça e da colheita – sendo uma das principais vítimas do desmatamento.
Devido ao cultivo da soja, o Chaco já perdeu oito milhões de hectares de floresta em 12 anos. 15.125 hectares de árvores foram abatidos somente em janeiro de 2018, segundo a organização ambiental Guyra Paraguai. Na Argentina, uma lei nacional de 2007 tenta proteger as áreas verdes, mas é dificilmente aplicada na prática. “Hoje, somente 27% das florestas primárias sobrevivem no país. A multa por desmatamento é facilmente compensada”, lamenta o Greenpeace Argentina.
A soja e a globalização
A América do Sul é o continente que mais produz e exporta soja destinada à alimentação de animais, sendo o Brasil o grande exportador do grupo. Em seu total, as plantações ocupam um território de mais de 40 milhões de hectares, ou seja, maior que a Alemanha.
A soja sul-americana é geneticamente modificada para sobreviver à exposição massiva ao pesticida “Round Up Ready”, da empresa Monsanto. O interesse para os produtores é sobretudo econômico: as plantações são mais resistentes e exigem menos cuidado, o que possibilita um cultivo em maior escala, destinado essencialmente à exportação.
Quatro empresas multinacionais detém o monopólio desse mercado. São as chamadas “ABCD”: Archers Daniel Midland (ADM), Bunge, Cargill e Louis Dreyfus Company (LDC). Elas se encarregam de recuperar a soja dos produtores e de exportá-la.
O que interessa aos criadores de animais é o resíduo da soja, obtido após a extração do óleo e de um processo de trituração. Essa etapa pode ocorrer antes ou depois da exportação. Em seguida, a soja passa pelas mãos dos transformadores, que propõem, finalmente, produtos de complementação alimentar destinado aos animais.
Paraguai, vítima da própria produção
94% das terras cultiváveis do Paraguai são dedicadas ao agrobusiness et 65% ao cultivo da soja, de acordo com Marielle Palau, socióloga e pesquisadora do Centro de Pesquisa Sociais Base, de Asunción. “Cerca de 20% dessas terras estão nas mãos de proprietários estrangeiros, sobretudo brasileiros. Quase toda a soja produzida no Paraguai é exportada. Isso representa 32% do total de nossas exportações e beneficia apenas os grandes proprietários de terra, já que eles quase não pagam impostos”, declara Palau.
Os principais países beneficiários da soja paraguaia são a Rússia, a Turquia, a Alemanha, o México, a Espanha e o Brasil. Esse contexto impacta diretamente os pequenos produtores: em doze anos, o número de hectares desses últimos passou de 600.000 a 300.000.
Os pequenos agricultores não beneficiam de nenhuma ajuda do Estado e muitos decidiram vender seus terrenos, após terem recebido uma boa oferta. Os que ficaram viram suas condições de vida se deteriorar, com as frequentes fumigações de pesticida que contaminaram a água, intoxicaram os animais e deixaram a população doente.
“As famílias foram forçadas a partir. O último método utilizado foi incitá-los a começar um cultivo fadado ao fracasso, para que eles percam tudo e tenham que hipotecar suas terras. Estamos face a uma política de exterminação de fazendeiros e de povos indígenas”, denuncia Palau.
Alimentação transgênica
O que chama a atenção no relatório da Mighty Earth é o fato de que a maior parte da soja utilizada para alimentar os animais que chegarão aos pratos dos franceses é geneticamente modificada. Os ovos e a carne encontrados nos supermercados, nos fast-food e nos restaurantes fazem parte, portanto, dessa roda-gigante global da soja.
12% da soja que a França importa vem da Argentina e do Paraguai, mas a grande maioria vem do Brasil. “A soja de origem brasileira é de uma boa qualidade proteica para os bichos”, afirma Patricia Le Cadre, reponsável do polo de alimentação e filiais de produção animal no Centro de estudos e de pesquisa sobre a economia e a organização de produções animais (Céréopa).
Esse processo é contraditório porque, ainda que os produtos dos supermercados franceses contenham a etiqueta “Criados na França”, eles não fazem nenhuma menção à origem da alimentação dos animais, nem se eles foram ou não alimentados com soja transgênica.
“A alimentação animal à base de soja transgênica é legal na União Europeia e os criadores estão cientes da natureza do produto”, afirma Christophe Noisette, editor-chefe do jornal Inf’OGM, especializado no assunto. Ele chama a atenção, entretanto, para o “fenômeno das etiquetas”. “Existe um fenômeno particular na França: o estômago dos animais metaboliza a etiquetagem. Em outras palavras: a soja transgênica deve ser etiquetada como tal, mas um presunto oriundo de um porco alimentado com soja transgênica não”.
Esse “fenômeno” está longe de mudar, tendo em vista o medo das empresas de que uma etiqueta informando o tipo de alimentação dos animais criaria uma revolta entre os consumidores. Fica aos franceses a ambiguidade de um produto que pode ou não ser de origem transgênica.
Combate ao desmatamento
A importação da soja na França não é indispensável, já que é possível cultivá-la no país. Mas a operação sairia mais caro e aumentaria o preço da carne; o conflito é, portanto, econômico. As “ABCD” alegam todas lutar contra o desmatamento. Em entrevista à RFI, Hervé de Praingy, diretor da Cargill France, rejeita as acusações do relatório da Mighty Earth. “Não comentarei esse documento enquanto não o tiver lido. Mas o grupo se engajou na redução de 50% da taxa de perda de florestas naturais em escala mundial daqui até 2020”, declara Praingy.
O grupo Bunge permanece vago quanto às acusações e lembra, como a Cargill, que tem um plano de “desenvolvimento sustentável”. A companhia afirma trabalhar com agências governamentais e ONGs para identificar as áreas suscetíveis para acolher uma agricultura mais durável. “Nós vigiamos nossas terras através de ferramentas como o Global Forest Watch. Não descobrimos nenhum caso de desmatamento”, alega.
A Louis Dreyfus Company tem um discurso similar às outras multinacionais: “A durabilidade está no centro de nossas práticas, especialmente em termos de produção da soja”. Quanto a suas atividades na região do Chaco, a LDC explica “não possuir nenhuma fazenda de exploração agrícola na Argentina”.
As ABCD assinaram, há mais de uma década, um acordo para proibir o comércio com produtores de zonas desmatadas da floresta Amazônica brasileira. As empresas também têm o ambicioso objetivo de chegar a 100% de cultivo sustentável, com zero desmatamento, até 2025, sem deixar claro se isso inclui o desmatamento legal ou não.
Publicado originalmente na RFI Brasil