O incêndio da Catedral de Notre-Dame de Paris vai marcar o ato número 23 dos “coletes amarelos”, no próximo sábado (20/04). Revoltados com doações de quase € 1 bilhão para a reconstrução da igreja, os militantes têm o objetivo de lembrar os cinco meses de crise social no país, para os quais o governo pena para encontrar soluções.
“O ultimato 2” é como o ato 23 é chamado pelos “coletes amarelos”. Nas redes sociais, eles convocam seus militantes a sair em massa às ruas de diversas cidades francesas e em Paris no próximo sábado. A nova rodada de protestos vem sendo anunciada como uma das mais importantes do movimento, a exemplo do ato número 18, o “ultimato 1”, marcado em Paris por depredações e vandalismo da parte de elementos que se infiltraram no cortejo.
De acordo com o “colete amarelo” Frédéric Mestdjian, a manifestação terá diversos pontos de concentração na capital francesa. O incêndio da Notre-Dame não passará despercebido. Um cortejo partirá de Saint-Denis, na periferia de Paris, em direção à catedral parisiense, que será homenageada pelo movimento.
Os militantes não escondem, no entanto, sua revolta com a rápida mobilização em torno da reconstrução do monumento. Apenas algumas horas após o incêndio, quase € 1 bilhão foram recolhidos para reformas que devem durar vários anos na Notre-Dame. Duas das famílias mais ricas da França, a Pinault e a Arnault, ofereceram, respectivamente, € 100 e € 200 milhões. Além do grupo L’Oréal, da família Bettencourt-Meyers, que anunciou uma doação de € 200 milhões.
Outras empresas e instituições também anunciaram ajudas milionárias. É o caso do grupo Total, que pretende participar da reconstrução doando € 100 milhões. O Crédit Agricole é, até o momento, o único banco francês a ter dado detalhes sobre o quanto iria ajudar para a reforma: € 5 milhões. Société Générale, BNP, Crédit Mutuel e CIC também confirmaram participação na coleta de fundos, mas sem dizer a quantia exata. Já a empresa de informática francesa Capgemini se disse “solidária” com o esforço nacional e anunciou a transferência de € 1 milhão.
“O que aconteceu com a Notre-Dame é trágico e a maioria dos ‘coletes amarelos' estão tristes com incêndio na catedral. Mas, ao mesmo tempo, há pessoas que estão nas ruas há cinco meses reclamando por mudanças e ouvindo que o governo não tem dinheiro”, afirma o militante Jérôme Rodrigues.
Mestdjian endossa a reivindicação. “O que mais choca as pessoas é que, de um lado, conseguiu-se mobilizar todo esse dinheiro rapidamente para uma causa importante, mas material. Enquanto isso, há uma verdadeira emergência humana para a qual recebemos a resposta de que não há dinheiro”, afirma.
Notre-Dame sensibiliza mais que coletes amarelos?
Para Mestdjian, não há outra explicação para justificar a imensa coleta de doações para a reconstrução da Notre-Dame. “O movimento dos ‘coletes amarelos’ não representa os ricos. Ou seja, há menos interesse em financiar a ajuda a eles. Em relação à catedral, há um interesse fiscal e também de imagem. É uma jogada de marketing desses doadores”, afirma.
De fato, para estimular os franceses a contribuírem com os gastos da reconstrução, o governo anunciou uma redução de 75% no imposto de renda para dons de até € 1.000. Além desse montante, a vantagem fiscal será de um abatimento de 66%.
Desde quarta-feira (17/04), vários partidos franceses denunciam o que chamam de “golpe de marketing” de grandes empresas e fortunas. Para alguns, o gesto é visto como uma espécie de autopromoção de companhias e famílias bilionárias que fogem do pagamento de impostos em um país que vive uma grave crise social.
“Faz cinco meses que há pessoas sendo mutiladas nas manifestações, como eu, que perdi um dos meus olhos. Ou cerca de vinte amigos meus que tiveram membros arrancados. Ninguém fala sobre isso, nenhum euro foi desbloqueado para nos ajudar. Somos vítimas dessa crise social, com emergências médicas, psicológicas, financeiras. Enquanto isso, tem gente liberando montantes enormes para comprar pedra e madeira”, protesta Rodrigues, que está cego do olho direito depois de ter sido atingido por um tiro de bala de borracha em uma manifestação dos “coletes amarelos” em janeiro.
Medidas de Macron vazaram
O movimento também se sentiu desdenhado pelo presidente francês, Emmanuel Macron. O líder havia previsto realizar um pronunciamento na noite de segunda-feira (15) e apresentar medidas para apaziguar a crise social. Com o incêndio, o presidente mudou o discurso e as propostas, entre as quais algumas vazaram para as mídias francesas, não têm data prevista para serem anunciadas.
Mestdjian acredita que as medidas vazaram propositalmente. “Foi uma jogada inteligente. Ele conseguiu explorar o incêndio não anunciando as medidas, mas deixando-as vazar. Assim, pôde medir a reação do público e adaptar seu discurso sobre a tragédia da Notre-Dame”, afirma.
Entre as medidas vazadas, estão o aval favorável de Macron a uma das exigências dos “coletes amarelos”, os Referendos de Iniciativa Cidadã (Ric). Ele prometeria também a instalação de uma convenção de 300 cidadãos, escolhidos através de um sorteio, em maio, que terão a missão de trabalhar sobre a transição ecológica e às reformas a serem implementadas. No discurso que não foi realizado o presidente também previa afirmar que nenhuma escola ou hospital fecharia até o final de seu mandato e dar apoio aos serviços públicos.
Em relação ao poder aquisitivo – outro foco dos “coletes amarelos” -, Macron prometeu indexar o valor das aposentadorias de menos de € 2 mil à inflação. Também previa anunciar que o bônus de € 1 mil prometidos aos trabalhadores em 2018 deveria ser concedido todos os anos e sua intenção de diminuir os impostos à classe média.
No entanto, as medidas extraoficiais não convencem Rodrigues. “Essas propostas não têm nada a ver com o que viemos pedindo. Além disso, baixando os impostos, onde ele vai buscar o dinheiro para tapar esse buraco? Tenho certeza que ele vai tentar nos fazer trabalhar ainda mais”, afirma.
Os “coletes amarelos” prometem se manter mobilizados. Outros atos do movimento já estão marcados, inclusive para o próximo 1° de Maio, Dia do Trabalhador, quando os militantes pretendem sair às ruas ao lado dos sindicatos.
“A mobilização continua dentro da ideia de permanecermos visíveis, mostrando nossa insatisfação. Não somos violentos, mas apenas pessoas revoltadas. Enquanto nossas reivindicações não forem consideradas, continuaremos a sair às ruas. Desde que eu nasci, aqui na França, todos os movimentos de contestação acontecem nas ruas, isso é um direito nosso. A grande expectativa é de sermos ouvidos um dia”, conclui Rodrigues.
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Nas redes sociais, os ‘coletes amarelos’ convocam seus militantes a sair em massa às ruas de diversas cidades francesas e em Paris.