Na Venezuela, há quase 20 anos, o Movimento Pobladores (Movimento Sem Teto) organiza o povo pobre em torno da luta por moradia. Em 2011, quando foi criada a Grande Missão Vivenda, o maior programa habitacional do país, conquistaram o título de entes executores de obras.
De lá pra cá, já conseguiram finalizar oito conjuntos habitacionais de maneira autogestionada, reunindo outras organizações de base, como o movimento de inquilinos, movimento de ocupações e o comitê de trabalhadoras de serviços gerais, somando cerca de 100 mil famílias em todo o território venezuelano.
“É algo um pouco inédito para América Latina, porque não se trata de uma organização de base executando um projeto, é um movimento que forma parte da execução de uma política de Estado”, conta um dos fundadores do movimento, Juan Carlos Rodríguez.
Em Caracas, há dez anos ocuparam um terreno no centro do município de Chacao, um dos metros quadrados mais caros da capital, para constituir o Acampamento Pioneiros 22 de Janeiro.
Os primeiros recursos assignados foram usados para estudar o terreno e elaborar o projeto de maneira coletiva, o que levou cerca de quatro anos até o início das obras. A comunidade possui 13 edifícios com 262 famílias.
Com o bloqueio econômico, a crise petroleira e a pandemia, houve uma redução nos recursos do programa social. Por isso, as famílias contribuem com US$ 2 (R$ 10,5) por mês para um fundo comum usado para financiar a construção.
“Nos últimos três anos, é maior a contribuição mensal por família do que a parte do Estado em termos financeiros”, relata Juan Carlos Rodríguez.
Além da contribuição financeira, o movimento estabelece que pelo menos 30% da obra deve ser levantada pelos próprios moradores.
“Nós partimos do princípio de que a classe trabalhadora não tem muitos recursos para contribuir, além do seu trabalho. Por isso estabelecemos um mecanismo semanal. Neste acampamento cada família teve que aportar com 16 horas de trabalho por semana”, explica o dirigente de Pobladores.
A maioria dos militantes do movimento social são de origem humilde, como Iraida Morocoima, que nasceu e cresceu em Petare, a maior favela da América Latina, na zona leste de Caracas, e teve um irmão morto pela repressão do Estado durante o primeiro levante militar liderado por Chávez contra os governos de direita da chamada Quarta República.
“Eu sou desse grupo de excluídos, que tinha que estudar à noite, saía para trabalhar cedo, viver na favela com toda as dificuldades de falta de água, luz, todas as carências da periferia. Então nos encontramos com Chávez e ele escutou as propostas do povo, que queria disputar, conviver e viver dignamente e aqui temos esse terreno. Essa é uma demonstração do que o povo organizado é capaz de fazer”, defende Morocoima.
No dia 8 de janeiro de 2011, os Pobladores se reuniram com o ex-presidente Chávez para expressar suas demandas por moradia digna. Duas semanas depois, ocuparam o terreno baldio da antiga empresa de eletricidade de Caracas, que hoje se tornou a Comunidade 22 de janeiro.
Michele de Mello / Brasil de Fato
Movimento Pobladores foi criado no início dos anos 2000, inspirados em experiências como o MST e o MTST do Brasil
“Quando uma comunidade termina de ser construída, nasce a comuna. Somos como borboletas, somos agora um casulo, estamos em transformação”, afirma Iraida Morocoima.
Moradia para todos
Na Venezuela, cerca de 90% da população vive em zonas urbanas e, desse total, 60% está nas periferias.
A Grande Missão Vivenda tinha o objetivo de construir 3 milhões de casas em 10 anos para acabar com o déficit habitacional registrado em 2011. Hoje, segundo dados oficiais, foram construídas 3,6 milhões de moradias, no entanto, as necessidades também aumentaram.
“Estimamos que exista um déficit atual de 2,5 milhões de moradias, ou seja, apesar de tudo que se construiu, ainda falta muito pela frente”, aponta Rodríguez. No início dos anos 2000, o movimento se inspirou nas experiências do MST e do MTST para começar sua própria organização.
Agora, ao intercambiar ideias com militantes de toda a América Latina, os Pobladores decidiram propor um projeto de lei de iniciativa popular para reconhecer os movimentos de construção de moradias com base na autogestão; criar um imposto sobre as construções de luxo, para diversificar as fontes de financiamento das obras; e legalizar a propriedade coletiva.
A proposta é que 15% do financiamento venha do Estado, outra parte do fundo coletivo criado entre as comunidades e o restante seja captado através dos lucros do mercado imobiliário.
O título de propriedade coletiva também seria uma forma de proteger as construções sociais, já que um apartamento no bairro de Chacao poderia custar em torno de US$ 200 mil (cerca de R$ 1,1 milhão).
“Poderíamos sofrer o que se chama ‘desalojamento indireto’. Construímos tudo isso e pela individualização da propriedade e a pressão do mercado imobiliário as famílias são desalojadas, substituídas por famílias que podem comprar apartamentos nessa zona”, explica Juan Carlos.
Com os três pilares: financiamento, autogestão e propriedade coletiva, o novo projeto de lei busca fortalecer a ideia de construção das comunas.
“Não há maneira de superar o déficit habitacional na América Latina sem organização popular, sem fortalecer formas de produção social de hábitat. Insistir nas empresas privadas, no modelo neoliberal, de promotores de moradia, não vamos diminuir nem solucionar o problema do déficit habitacional. O problema da moradia surge com as relações sociais na sociedade capitalista e é com outra visão que poderá ser resolvida. Com o povo organizado”, defende Rodríguez.
Da mesma forma, Morocoima defende que a existência de Pobladores faz jus à história de Simón Bolívar, de Guaicaipuro, de Chávez e outros que lutaram pela soberania e independência da Venezuela.
“Queremos disputar o poder, mas poder transformar, para fazer, poder para viver dignamente. E viver num sentido de igualdade, não para ser mais que ninguém, não para alimentar egos e de competição, mas para processos de igualdade, de justiça social”, avalia Iraida Morocoima.