A África do Sul, assim como tantos outros países do mundo capitalista, convive com um sério problema: trabalhadores rurais negros, em sua maioria mulheres, são excluídos da riqueza produzida pelo seu próprio trabalho.
O dossiê Esta Terra é a Terra de Nossos Ancestrais, do Instituto Tricontinental de Pesquisa, escrito pela ativista e pesquisadora sul-africana Yvonne Phyllis, explica esse cenário, trazendo um dado que chama a atenção: 72% das terras agrícolas do país estão em mãos de fazendeiros brancos, embora a população branca represente menos de 10% do contingente populacional.
“A fazenda, como muitos outros empreendimentos capitalistas, depende da desvalorização do trabalho dos negros”, explica Phyllis, que é descendente de trabalhadores rurais do país sul-africano, acrescentando que a questão da pobreza na região é algo geracional, ou seja, repassado pelas famílias no campo ao longo de várias gerações.
Por conta dessa exploração herdada, 1% dos sul-africanos mais ricos detêm cerca de 40,8% da riqueza total do país, enquanto os 90% mais pobres detêm 20,1%, segundo o documento da Tricontinental.
Nesse processo, os trabalhadores que produzem alimentos e cuidam da terra por anos são excluídos dos lucros e da estabilidade de sua posse e, portanto, têm acesso limitado à educação e serviços de saúde. Em 2022, o salário no país varia de 2 a 6 mil rands (cerca de 136 a 408 dólares) por mês, resultando em uma vida de subsistência mínima.
“Quando adulta, fiquei furiosa ao saber que cinco gerações da minha família trabalharam para a mesma família, mas não tínhamos nenhum direito a essa terra”, escreve Phyllis, apontando que não conseguia aceitar o motivo de décadas de trabalho de sua família terem resultado em uma vida de pobreza.
Os trabalhadores rurais estão presos à terra do proprietário em uma espécie de servidão, segundo a autora, e compelidos a serem leais, já que são ameaçados de perderem emprego ou serem despejados. “Questionar qualquer coisa é arriscar tudo”, avalia a pesquisadora.
Outra informação levantada pelo estudo é o fato de que a “maioria dos trabalhadores rurais não tem contrato formal de trabalho ou benefícios”, de tal forma que não conseguem se aposentar e nem se sustentar na velhice, ficando dependente de gerações mais jovens.
“Sob esse sistema, no qual os trabalhadores rurais estão vinculados à terra, mas não mantêm a propriedade sobre ela por várias gerações, seu emprego abrange todos os aspectos de seu mundo: trabalhar a terra, viver na terra, nutrir e sustentar a terra, criar filhos na terra, enterrar familiares e entes queridos na terra, ter uma conexão com a terra, amar a terra e chamar a terra de lar, mas nunca possuir a terra”, aponta Phyllis no dossiê da Tricontinental.
Jemal Countess/Solidarity Center
Dossiê mostra que maior parte dos trabalhadores rurais na África do Sul estão vinculados à terra, mas não a possuem
Ainda no estudo, a autora alerta para a desigualdade de gênero. As trabalhadoras são o elo mais frágil da cadeia de produção de alimentos na terra. Em partes do país, como no Cabo Norte e no Oeste, explica a ativista sul-africana, mulheres são operárias sazonais, exercendo serviços em vinhedos e pomares durante seis meses, o que causa insegurança no trabalho e na alimentação.
Além do trabalho agrícola, as mulheres também são responsáveis pelo trabalho doméstico, também conhecido como trabalho reprodutivo. “Esse trabalho está na base do nosso sistema econômico, pois reproduz não apenas nossa existência como espécie e sociedade, mas também fornece trabalhadores para a classe capitalista”, argumenta.
Para ela, é necessário abordar as desigualdades de gênero ao discutir a questão agrária no país, seja pela propriedade da terra, pela progressão na carreira e pelo “trabalho invisível que as mulheres realizam em seus domicílios”.
Conexão ancestral
As políticas pela reforma agrária implementadas depois do apartheid falharam em “remediar as injustiças do passado”, aponta o dossiê, exemplificando pela Lei de Desenvolvimento de Recursos Minerais e Petrolíferos, de 2002, na medida em que anula a proteção do patrimônio.
Além disso, elas desconsideraram questões espirituais e de ancestralidade importantes aos trabalhadores rurais, e também quando criaram condições favoráveis ao mercado.
“Os governos pós-apartheid adotaram uma abordagem orientada para o mercado para a redistribuição de terras, priorizando o modelo de vendedor livre, comprador livre, que apenas aprofundou a desigualdade”, escreve Phyllis, acrescentando que a concentração de terras ainda está na mão das elites.
A conexão ancestral existe porque os trabalhadores rurais veem as sepulturas de seus antepassados como prova de trabalho, “testemunho da vida daqueles que suportaram o peso do capitalismo”.
“Eles não apenas pensam na terra de seus ancestrais por meio de uma lente histórica; eles também a concebem como uma questão não resolvida de injustiça, entendendo-a como algo profundamente enraizado na história e em gerações exploradas por proprietários de fazendas brancos – uma história que continua até os dias atuais”, explica a ativista.