Em debate promovido na noite desta segunda-feira (12) na Fundação Perseu Abramo, em São Paulo, a filósofa Marilena Chaui falou sobre o novo totalitarismo, explicitado por governos como o de Donald Trump (Estados Unidos), Viktor Orbán (Hungria), além do brasileiro Jair Bolsonaro. Os regimes concebem o Estado “como uma empresa e o governante é um gestor, um gerente”. “Não tem mais política, mas gestores”, disse. Pior do que isso, “os gestores atuam como gangsteres, governando por meio do medo”. De acordo com a prática conhecida, “a gestão mafiosa opera pela ameaça e oferece proteção aos ameaçados, exigindo em troca a lealdade”, mostrou Chauí.
Para Marilena, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), as características da máfia, se repetem nos governos neoliberais totalitários atuais. Os discursos, por exemplo, são orientados pelos consiglieri, ou conselheiros: Steve Bannon, em relação a Donald Trump, e Olavo de Carvalho, no caso de Bolsonaro. “É um padrão, um modelo de funcionamento, um modelo mafioso de gestão.”
A comunicação por redes sociais e a atuação sem a mediação institucional também caracterizam esse modelo. “Eles põem em dúvida a validade do Congresso, das instituições jurídicas. Desvalorizam e criminalizam as instituições políticas e colocam a sociedade contra elas.”
No cerne desse totalitarismo está o neoliberalismo e a hegemonia do capital financeiro. “O neoliberalismo não é uma mutação do capitalismo, é uma mutação histórica, uma nova forma do totalitarismo. O totalitarismo se encontra em plena vigência, mas precisamos entender que ele opera com a invisibilidade.” Sua eficácia, avalia a filósofa, vem exatamente de sua invisibilidade, que permite esse totalitarismo ser instaurado sem ser percebido.
O totalitarismo neoliberal torna as instituições (escola, fábrica, empresa) homogêneas e as pessoas se tornam “empresárias de si mesmas”. Estas “são dominadas pelo princípio da concorrência disfarçado pela meritocracia, que esmaga os indivíduos”. Segundo essa lógica, o salário é renda pessoal, a educação é investimento para ser competitivo e o individuo é treinado para ser um investimento bem sucedido”. Direitos são eliminados em proveito de interesses privados. E os conflitos são resolvidos juridicamente, “que é como se resolvem as questões entre empresas”.
Como consequência, forma-se nas pessoas uma subjetividade narcisista, propensa à depressão, desencadeando ódios e violência contra imigrantes, índios, negros, mulheres, LGBTs, destruindo-se formas de solidariedade e fomentando o extermínio. “Toda forma de alteridade é exterminada.” Para Marilena, a ex-vereadora Marielle Franco é um símbolo desse processo.
Uma característica marcante dos modelos totalitários em vigor, para Marilena Chauí, é a transformação dos adversários em corruptos, “embora a corrupção mafiosa seja a única regra de governo”. “Eles perseguem a esquerda e os democratas e pretendem uma limpeza. Para isso, desenvolvem uma conspiração comunista. Seus conselheiros são autodidatas, odeiam intelectuais, artistas e cientistas.”
Sérgio Silva/FPA
Marilena Chauí: ‘Eles perseguem a esquerda e os democratas e pretendem uma limpeza. Para isso, desenvolvem uma conspiração comunista’
Nesse ambiente, “comunista” passa a significar todo pensamento que questiona o status quo. “O não comunista sabe que a terra é plana”, ironiza. “Quando o ministro das Relações Exteriores diz que não existe aquecimento global porque foi a Roma e sentiu frio, ele mostra total ausência de pensamento, de reflexão, a ignorância levada ao ponto máximo. O que se pode esperar? Não dá pra esperar nada”.
Justiça, soberania e educação
Eles transformam os medos e ressentimentos que existem silenciosamente em discursos do poder. É de uma gravidade e de um perigo fora do comum, e não estamos nos dando conta.” “Com exceção dos Estados Unidos, eles passam a ter controle total do Judiciário. Oferecem ao magistrado proteção em troca de lealdade. Não temos um judiciário atrelado, mas estarrecido pelo medo.”
Para Marilena, na atuação em relação à prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva “o PT não avaliou o papel que as revelações do Intercept tiveram ‘para nossa palavra de rua’”. “Temos que explicar às pessoas por que prenderam Lula. O PT tinha que ter pego as coisas que o Intercept divulgou e panfletado, explicando para as pessoas. Não fizemos isso. Não é explicar que ele é inocente, mas que não é culpado.”
Segundo ela, a esquerda não está avaliando as consequências de longo prazo daquilo que o governo Bolsonaro está implementando. “Se esse governo vai até o fim e se reelege, serão necessárias várias gerações para recuperar o país. A bandeira anticorrupção foi sequestrada pela extrema-direita e ela precisa ser retomada. Não estamos sabendo fazer uso politico do Intercept, que é resgatar essa bandeira.”
Bolsonaro também está promovendo a destruição da soberania nacional. Em decorrência disso, “no longo prazo o Brasil voltará a ser periférico e irrelevante na América Latina e no contexto mundial”. “Isso significa que o PT e a esquerda têm que recuperar a bandeira do nacionalismo e da soberania nacional.”
Sobre educação, a filósofa afirmou que o projeto do atual governo não significa apenas exclusão e desigualdade, mas muito mais. “Esse não seria o núcleo a ser avaliado”, disse. O mais importante é perceber que, hoje, a ciência é a principal força produtiva. “Ciência e tecnologia são agentes da produção. A sociedade se funda em ciência e tecnologia, nos processos produtivos e financeiros, nos setores de serviços, na educação e no lazer. Os termos capital intelectual e trabalho imaterial indicam que a força produtiva é a produção de conhecimentos.”
Por isso, é enormemente grave o programa bolsonarista, que “significa a destruição de centros de pesquisa e que o Brasil não vai formar pessoas para as próximas décadas”. O Brasil será inteiramente dependente do capital imperial. “A questão da educação está na base da nossa luta. Essa bandeira cobre as demais bandeiras por causa do lugar que ela tem.”