Em meio à crise sanitária causada pelo covid-19, muito se analisa sobre o impacto que a pandemia causará no atual sistema de produção e as possíveis transformações econômicas e sociais que resultarão desse processo.
Para entender um mundo em ebulição, imerso no caos e na incerteza, conversamos com o historiador e jornalista indiano Vijay Prashad, autor de inúmeros livros e diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, que vem lançando uma série de estudos e dossiês sobre o atual cenário político e econômico.
Para Prashad, vivemos “a maior crise da história do capitalismo”, após a pandemia ter imposto “a maior greve geral inesperada da história moderna”. “A crise está sendo usada para aprofundar os sistemas de vigilância, prender ativistas e enfraquecer as leis trabalhistas. Não há nada de contraditório nisso, uma vez que aqui se verifica precisamente os elementos de um sistema capitalista normal: tendo dominado o Estado, a classe capitalista garante sua sobrevivência a curto prazo e, em seguida, usa a fraqueza do povo para avançar com as políticas que lhes darão vantagens permanentes”, avalia.
Além de analisar a crise estrutural do capitalismo que nos levou a este cenário, e as consequências a partir das saídas que estão sendo propostas, Vijay Prashad também analisa a relação EUA e China e as respostas dos Estados socialistas perante a pandemia do coronavírus.
“Nas partes socialistas do mundo – do Vietnã a Kerala, da China à Venezuela – armazéns coletivos foram criados para fornecer alimentos diretamente à classe trabalhadora; essa é uma ação essencial, absolutamente normal em uma sociedade socialista, mas simplesmente não tão fácil de se reproduzir na ordem burguesa”.
Uma das ideias que virou clichê durante esse processo é a afirmação de que o mundo não será mais o mesmo pós-covid-19. Porém, Prashad é enfático: “Esperar que a classe capitalista seja benevolente em uma crise é entender mal a natureza do capitalismo (….) ao menos que alteremos a correlação de forças nessas sociedades capitalistas, as mesmas políticas irão permanecer – e piores”, afirma.
Leia a entrevista completa:
Estamos vivenciando uma crise econômica, política e social sem precedentes em decorrência da covid-19. O que a pandemia foi capaz de revelar sobre a ordem política e econômica que vivenciamos nas últimas décadas? Estamos diante da maior crise da história do capitalismo?
Primeiro, sobre a sua última pergunta, sim, essa é de fato a maior crise da história do capitalismo.
A pandemia impôs ao sistema social a maior greve geral inesperada da história moderna. Pelo menos metade da força de trabalho global está desempregada e a retirada dessa força de trabalho imediatamente afetou a taxa de crescimento em todo o mundo; isso prova, de uma vez por todas, a afirmação marxista de que a riqueza social é produzida pelo trabalho produtivo e não pelo capital ou por invenções. É o trabalho que produz valor, e do valor sai o capital acumulado que opera uma ditadura contra os trabalhadores; quando o trabalho entra em greve – mesmo que de forma imposta como agora – prova o ponto de vista marxista. Essa é a primeira coisa que é revelada.
Nas últimas cinco décadas, o sistema capitalista lutou com a lucratividade e produziu um sistema que canibalizou instituições sociais para fornecer vantagens ao capital. A globalização da produção ao longo das cadeias de suprimentos, em fábricas desarticuladas que exigem que o capital invista menos e arrisque menos, teve um impacto marcante em nosso mundo; esse avanço das forças produtivas obrigou as empresas terceirizadas a aumentarem o capital em seus países e a assumirem o risco do sistema, enquanto as grandes empresas transnacionais quase monopólicas usavam sua propriedade intelectual e seu controle sobre a cadeia de suprimentos para acumular vastas reservas financeiras que eram revertidas – não em investimento produtivo – mas colocadas em cassinos financeiros e paraísos fiscais. A retirada dos lucros da tributação deixou os Estados sem recursos adequados, então se viram forçados pela autoridade da classe dominante (pela necessidade dos Estados de manter suas reservas seguras) e pela autoridade do imperialismo (através do FMI) a cortar orçamentos. Portanto, austeridade é uma palavra que todos entendemos, em todos os países do mundo, e que se abateu, particularmente, sobre os investimentos públicos em educação, saúde, transporte e assistência social. Os baixos gastos com saúde pública em geral e a privatização da medicina deixaram a maior parte do mundo capitalista fragilizada diante da pandemia, o que fez com que diversos sistemas de saúde entrassem em colapso.
Por fim, a fragilização do aspecto social do Estado fez com que este não tivesse capacidade de dar assistência ao povo; o enfraquecimento dos sindicatos e outros órgãos públicos nos países capitalistas fez com que as mobilizações não estivessem mais presentes. É por isso que as pessoas nos países capitalistas dependem amplamente da ação do Estado, enquanto em lugares como Cuba e [o estado indiano de] Kerala, as organizações populares trabalham ao lado do Estado. Somente as organizações de esquerda nesses países capitalistas forneceram alívio sem nenhuma permissão ou ajuda do governo; de fato, muitas vezes elas são perseguidas por sua atuação.
Sem dúvida, o capitalismo mostrou nesta pandemia que não é capaz de fazer com que as pessoas lidem com uma crise e desenvolvam suas habilidades em tempos como estes.
Por outro lado, a maior parte dos governos pelo mundo foram obrigados a desembolsar uma quantia suntuosa de dinheiro para tentar salvar a economia e garantir minimamente programas sociais para a população sobreviver neste período. Há uma reavaliação do período anterior ou é possível que haja um maior aprofundamento das políticas neoliberais?
Os Estados que se subordinam às suas classes capitalistas têm uma resposta clichê a uma crise. Tudo o que parecem saber, apesar das evidências, é despejar dinheiro nas mãos das corporações para aumentar a liquidez. Durante essa pandemia, de fato não houve crise de liquidez. A crise surgiu da greve geral imposta e da diminuição drástica do trabalho durante o confinamento. Essa foi a razão da crise, não o erro de investidores que exigiram que as casas financeiras os pagassem por papéis sem valor (o que ocorreu na crise financeira de 2008-9); os governos se comportaram em 2020 como se estivessem lidando com uma crise de liquidez, quando estavam lidando com uma crise do trabalho. E essas quantias maciças de dinheiro não foram para lidar com a recessão causada pela pandemia de coronavírus, mas para as poderosas corporações. O Estado percebe que a força de trabalho deve ser mantida viva; qualquer alívio que isso proporcione às pessoas não é necessariamente em termos humanitários, mas em termos práticos e pragmáticos.
Qual teria sido uma melhor utilização dos recursos do mundo? Primeiro, um corte imediato na dívida de 11 trilhões de dólares dos países pobres. De que serve forçar a Argentina a outra crise mais profunda? O que os credores dela ganham com isso? Certamente não seu dinheiro. Por que não permitir uma redução da dívida, que não será paga de qualquer maneira, e cuja inadimplência simplesmente trará profundo sofrimento às pessoas nos países em desenvolvimento, dando continuidade a um ciclo de endividamento? Segundo, o dinheiro deveria ter sido destinado à criação de alívio financeiro em grande escala. Metade da população humana agora está passando fome; os recursos deveriam ter ido imediatamente para o combate à fome.
Devemos analisar esse momento pela maneira como os Estados capitalistas deixaram um número tão vasto de pessoas na fome. Na minha opinião, há algo muito obsceno nesta civilização humana – o capitalismo – capaz de produzir mísseis de cruzeiro hipersônicos que podem atingir qualquer parte da terra em menos de uma hora, mas que não erradicou a fome. Isso é um fracasso moral absoluto. E há pouca indignação em relação a isso. Não falo de indignação contra a existência de pessoas famintas, o que é enlouquecedor, mas indignação contra um sistema capaz de produzir armas tão sofisticadas, capaz de produzir comida suficiente para alimentar todos, mas depois permite que essa comida seja destruída em vez de doada a pessoas que não têm dinheiro. A moral de uma sociedade não está em suas constituições ou nas obras mais elevadas produzidas por seus filósofos; a moral de uma sociedade está na maneira com a qual trata as maiorias que vivem na fome e no analfabetismo.
Meu medo é que, ao menos que alteremos a correlação de forças nessas sociedades capitalistas, as mesmas políticas irão permanecer – e piores.
Nesse sentido, muito se fala que o mundo não será mais o mesmo depois desse processo e que ele foi capaz de escancarar as mazelas do modelo neoliberal. No entanto, a maior parte dos recursos públicos estão indo para o sistema financeiro e as grandes empresas, aumentando ainda mais a concentração e centralização do capital, ao mesmo tempo que assistimos uma flexibilização dos direitos trabalhistas para “garantir” o emprego dessas pessoas. Como explicar essas contradições?
Certamente os vastos recursos distribuídos pelos Estados capitalistas foram para as corporações e empresas financeiras. Isso ocorreu em todos os Estados capitalistas. O alívio fornecido não está sendo suficiente. A crise está sendo usada para aprofundar os sistemas de vigilância, prender ativistas e enfraquecer as leis trabalhistas. Não há nada de contraditório nisso, uma vez que aqui se verifica precisamente os elementos de um sistema capitalista normal: tendo dominado o Estado, a classe capitalista garante sua sobrevivência a curto prazo e, em seguida, usa a fraqueza do povo para avançar com as políticas que lhes darão vantagens permanentes. Na Índia, as políticas são tão grosseiras que o governo quer aumentar a duração da jornada de trabalho – de dez para doze horas. É obsceno, um retorno ao século XIX. A superexploração dos trabalhadores nunca foi estranha em lugares como a Índia, onde a violência no local de trabalho permanece comum e onde o trabalho infantil continua sem fiscalização. Mas agora, quando a crise acende o sinal vermelho na cara dos capitalistas, as únicas soluções que conseguem pensar são apropriar-se mais da riqueza e explorar mais a classe trabalhadora; não sabem fazer mais nada. Esperar que a classe capitalista seja benevolente em uma crise é entender mal a natureza do capitalismo. O sistema é projetado em torno da maximização do lucro e da concorrência feroz como a guerra; destaca o traço humano da ganância e lhe dá valor. Sendo esse o caso, essas políticas são necessárias tanto para a classe capitalista quanto para o Estado que domina.
A escala de dano é enorme. A Organização Internacional do Trabalho diz que 81% dos trabalhadores do mundo, mais de 2,7 bilhões de pessoas, estão efetivamente desempregados e perderão pelo menos 3,4 trilhões de dólares em renda. Os volumes globais de comércio cairão pelo menos 32%, segundo a Organização Mundial do Comércio. Tudo isso é muito significativo. Isso significa que as cadeias de suprimentos, que passaram a caracterizar a produção, serão danificadas, algumas de forma fatal. O isolamento significará que a produção agrícola poderá ser afetada, o que pode levar à fome em várias partes do mundo. Nada disso é trivial.
Acredito que a ordem burguesa não tem ideia de como lidar com esse problema e estão usando todos os seus velhos truques – inundando o mercado de liquidez, ameaçando a China, dando seguimento ao militarismo contra a Venezuela e o Irã. Em vez dessas abordagens, os governos precisam considerar rapidamente como gerenciar o comércio na era das possíveis pandemias, como transformar a atividade econômica para que seja menos dependente dos enormes volumes globais de comércio, construindo economias mais regionalizadas em vez de uma grande economia global, garantir que bilhões de trabalhadores e camponeses não sejam apenas peças comerciáveis, mas pessoas que possam ajudar a moldar a atividade econômica em que atuam. Haverá gastos maciços em saúde pública? Essa é a primeira coisa necessária, mas pouco se debate sobre isso. Durante a crise, todo mundo está dizendo que os enfermeiros são essenciais; quando a crise acabar, eles serão novamente esquecidos. Este é o fracasso da ordem burguesa.
Penn State/Flickr
Vijay Prashad: ‘sinto profundamente que teremos uma grande crise pela frente’
Um dos setores que mais cresce nesse processo é o de tecnologia. Não à toa, Jeff Bezos, dono da Amazon, pode se tornar o primeiro trilionário do mundo no próximo período. O que representa esse crescimento exponencial do “capitalismo de plataforma” e quais suas consequências?
Antes do isolamento, as principais plataformas digitais (sendo a Amazon a maior) já haviam absorvido quantidades consideráveis do mercado de varejo; o objetivo delas é que as pessoas comprem tudo online e, assim, eliminar as lojas físicas. Durante o isolamento, muitas pessoas experimentaram essas plataformas para comprar uma variedade de produtos. Foi o treinamento mais eficaz; muitos não retornarão às lojas físicas depois que o isolamento terminar, depois de ver como é conveniente comprar pela Internet. Já existe a expectativa de que mais bens e serviços sejam negociados online permanentemente, e não mais pelo varejo presencial. Mas não devemos exagerar; certamente se tornará dominante nos Estados capitalistas avançados, onde a cobertura da Internet é ampla, mas não deve ocorrer em partes do mundo onde esta é irregular. No entanto, as plataformas certamente acabarão com muitas empresas familiares, as quais – como mostram as evidências – empregam mais pessoas que essas plataformas. A ecologia social das cidades pode ser afetada, uma vez que as lojas de varejo vão fechar. Nem tenho certeza sobre o retorno de cafés e restaurantes, já que as pessoas, logo após a pandemia, ainda terão receio de retornar a esses espaços para comer; a entrega de alimentos, novamente por meio de plataformas, se expandirá. Ainda veremos o que tudo isso significará para o setor de varejo.
Mais do que tudo, o crescimento das empresas de plataforma tem implicações no setor produtivo. Já vemos que as empresas transnacionais – como a Amazon – têm tanto domínio sobre a cadeia de suprimentos que são capazes de ditar termos aos seus fornecedores, que geralmente são terceirizados menores que exploram intensamente os trabalhadores que contratam; a pressão das plataformas desenvolve uma corrida na camada inferior, entre os terceirizados e, portanto, torna a existência infernal para os trabalhadores dessas várias zonas de livre comércio, maquiladoras e fazendas industriais. Ao olharmos para o crescente domínio das empresas de plataforma, não devemos ignorar a pressão que isso colocará no setor produtivo.
Outro elemento que parece estar se intensificando com a pandemia é a crise entre EUA e China. A percepção é que o país asiático pode sair muito mais fortalecido desse processo pelas suas atitudes em relação ao enfrentamento da covid-19. O que podemos esperar na geopolítica mundial no próximo período em relação ao fortalecimento da China e uma possível perda de hegemonia dos EUA?
Sinto profundamente que teremos uma grande crise pela frente. A China agora é o lar da manufatura do mundo e usou seus superávits robustos para reforçar acordos comerciais em todos os continentes; também possui uma política externa baseada na ideia de benefício mútuo, o que permitiu obter a boa vontade de muitos países, incluindo a Itália, no coração da Europa. Além disso, a resposta da China à covid-19 tem sido exemplar. Uma vez que ficou claro para os cientistas que o coronavírus poderia ser transmitido a seres humanos, o governo chinês fechou a cidade de Wuhan, que é uma cidade de onze milhões de habitantes, depois conduziu o fechamento por fases, bem como convocou uma ação pública do Partido Comunista, sindicatos e organizações populares (incluindo comitês de bairro). Em qualquer outro mundo, os chineses seriam parabenizados por sua conduta.
Por outro lado, temos os Estados Unidos, que há muito tempo utilizam os meios necessários para manter seu poder hegemônico. O Brasil viu isso em primeira mão, quando os EUA participaram de um golpe de Estado em 1964 que fortaleceu as forças anticomunistas que se utilizaram do terror de Estado para fragmentar os movimentos populares e depois exportaram esse método para outros países da América do Sul; tais métodos não envergonharam os Estados Unidos, apesar de seus protestos formais. Essa violência se manifesta nos EUA, que possui a maior força militar do planeta e continuam desenvolvendo novos sistemas bélicos, incluindo mísseis de cruzeiro hipersônicos, que podem atingir qualquer lugar do planeta em uma hora. Eles são muito perigosos e derrubam qualquer hipótese de dissuasão.
Os Estados Unidos estão descontentes com o fato de a China ter emergido como uma das principais potências científicas e tecnológicas. Era aceitável que a China fosse a fábrica do mundo, fornecendo sua força de trabalho qualificada e saudável para o capital transnacional; mas uma vez que se tornou líder em alta tecnologia – como o 5G – tornou-se uma ameaça para o poder dos EUA. É nesse contexto que a guerra comercial ocorre e é nesse contexto que os EUA estão usando a pandemia da covid-19 para prejudicar a imagem da China e reorganizar sua cadeia de suprimentos. A linguagem beligerante reconhece a crescente independência chinesa do sistema dominado pelos EUA, e essa linguagem, combinada com o armamento perigoso, leva-nos à beira da guerra no mar do Sul da China. Vivemos tempos perigosos.
Por isso, lançamos o Apelo de Bouficha Contra os Preparativos para a Guerra. Esperamos que os movimentos e partidos populares façam campanha com esse Apelo para torná-lo uma força material na vida das pessoas em todo o planeta. Temos que construir um movimento internacional de paz contra a beligerância dos EUA.
Como você mesmo já disse, temos visto um certo sucesso no controle da propagação do vírus em países socialistas, como a própria China, o Vietnã, o estado de Kerala, na Índia, Portugal, Cuba e Venezuela, por exemplo. Quais lições podem ser tiradas desse processo e o que elas podem refletir na vida política do planeta?
Se você observar a ordem socialista – da China ao Vietnã, de Kerala a Cuba, passando pela Venezuela -, encontrará uma abordagem muito diferente da crise. No Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, chamamos essa diferença de CoronaChoque, um termo que se refere a como o vírus atingiu o mundo com tanta força e como a ordem social burguesa desmoronou, enquanto a ordem social nas regiões socialistas do mundo pareceu mais resistente. É crucial estudar cuidadosamente o que foi feito nestas últimas e informar as pessoas sobre o que essas experiências ensinam; há mais esperança no governo da Frente Democrática de Esquerda no estado indiano de Kerala do que em toda a liderança do G20 reunida.
A esquerda deve olhar em duas direções. Primeiro, precisamos trabalhar para fornecer o máximo de apoio possível aos nossos profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, paramédicos, motoristas de ambulância, cuidadores – que estão enfrentando uma doença muito infecciosa e estão fazendo isso sob condições de austeridade. Os valores de uma sociedade não estão na constituição de seu país, mas em seus orçamentos; e os orçamentos da ordem burguesa penalizam profundamente o setor da saúde. A crise diante de nós não é apenas fruto da pandemia, que é genuína, mas é agravada pela crise de um sistema de saúde que foi entregue para lucro privado e, portanto, depende da superexploração dos profissionais de saúde. Segundo, precisamos garantir alívio aos trabalhadores excluídos e desempregados – os do setor informal que vivem com seus salários diários e semanais, e geralmente não têm contas bancárias ou acesso a economias pessoais e transferências em dinheiro do governo. Nas partes socialistas do mundo – do Vietnã a Kerala, da China à Venezuela – armazéns coletivos foram criados para fornecer alimentos diretamente à classe trabalhadora; essa é uma ação essencial, absolutamente normal em uma sociedade socialista, mas simplesmente não tão fácil de se reproduzir na ordem burguesa.
Com base nessa percepção, precisamos entender fundamentalmente a diferença entre a ordem burguesa e a ordem socialista, como exemplificado pela diferença entre o Vietnã e a Itália, por exemplo. O primeiro, mais próximo da China, não teve mortes por Covid-19 e lidou com a entrada do vírus com uma metodologia científica; o último foi convulsionado pela doença e achou muito difícil quebrar a cadeia de infecção. O que explica a diferença entre a Itália e o Vietnã? São precisamente cinco fatores: uma abordagem científica dos líderes políticos, ação rápida do Estado para se preparar para o vírus, mobilização em larga escala por organizações populares, alívio imediato para permitir que se cumprisse o isolamento e um compromisso com o internacionalismo que incluía a produção de equipamentos de proteção para doações solidárias. Esse último ponto significava que não havia sequer um gesto de xenofobia na reação do Vietnã à doença; por isso, o primeiro ministro Nguyên Xuân Phúc deve ser parabenizado por sua liderança.
Por último, diante de um aprofundamento do neoliberalismo, o avanço da extrema direita e do neofascismo em diversos países, como no caso do Brasil, uma certa desorganização da esquerda e a impossibilidade de realizar manifestações de rua – a principal ferramenta de luta das organizações populares -, é possível ter esperança? Onde a agarramos?
A esquerda deve atentar ao fato de que as reservas de nossas forças – sindicatos e organizações camponeses – foram gravemente enfraquecidas. Construir organizações da classe trabalhadora e camponesa, bem como de trabalhadores precarizados, é essencial. Não há substituto para organizações sólidas. Não basta que tenhamos ideias e até mesmo a vocação popular. Se não tivermos capacidade organizacional, é impossível superar o neofascismo que se alimenta do sofrimento e o converte em ódio. Durante a pandemia, a esquerda ao redor do mundo busca manter suas forças, a acumular força e não desmoronar. É difícil construir o socialismo na solidão e a maioria de nossa classe não participa – por várias razões – do debate na internet (a falta de acesso é a principal razão, mesmo que hoje existam os celulares). Sabemos que o sofrimento é agudo. Acompanhamos as pessoas que prestam socorro. Devemos esperar que, quando a pandemia termine, possamos permanecer entre o povo com um programa de ação que capte suas ansiedades. O programa de ação para um mundo pós-covid-19 deve estar firmemente enraizado na imaginação socialista.
O fracasso dos Estados capitalistas em lidar com a pandemia é apenas mais um capítulo hediondo da experiência humana. Mas há outro lado que é a nossa capacidade de lutar para sermos decentes. Não vamos nos atolar no hediondo. Devemos lembrar dialeticamente que temos a capacidade de pessoas sensíveis de lutar por algo decente. É para isso que temos que viver. Não fique atolado isoladamente. Você deve viver com solidariedade social.
(*) Entrevista por Luiz Felipe Albuquerque, especial para Opera Mundi