A contestação amorosa de Chico César
O compositor e secretário de Cultura da Paraíba fala sobre música, carreira e sua faceta política
Divulgação
Os múltiplos interesses de Chico César envolvem além da música, a cultura e questões sociais, com afetuosidade
Aos 8 anos, ele já vendia música. Era em Catolé do Rocha, no Alto Sertão paraibano. A Lunik, loja de discos e livros que ficava na cidade, foi o primeiro contato que Chico César teve com o universo que passaria a habitar na vida adulta.
“Respeitem meus cabelos, brancos”, pede ele que, um dia, na juventude, teve a cabeça raspada após denunciar que um policial o havia tentado agredir. “Foi barra-pesada”, lembra o cantor. “Me deram logo uma coronhada na cabeça e depois cortaram meu cabelo, deram banho de água gelada e me fizeram varrer todo o quintal.”
Na entrevista a seguir, Chico refuta o título de contestador político e social: “Minha contestação é amorosa, movida pela afetividade.” Sobre a polêmica das biografias, se coloca em lado oposto ao de Caetano Veloso, Roberto Carlos, Gilberto Gil e Chico Buarque. “A vida é de cada um, é pessoal, mas a história ou o modo de contá-la é de todos, é coletivo”, acredita.
Hoje, o músico se divide entre os palcos do Brasil e seu gabinete na Secretaria de Cultura da Paraíba, onde assumiu a chefia da pasta em 2010. “O que tem é para todos. Pra mim, a discussão conceitual interessa muito e temos travado essa discussão aqui no estado. Cultura como instrumento de cidadania e de sentimento de pertença, distante dos ditames do mercado.”
O trabalho, aos 8 anos, em uma loja em Catolé, foi o seu primeiro contato com a música?
Na verdade, não. Ali foi o meu primeiro contato com o produto música e seus suportes, LPs, compactos simples e duplos. E o meu primeiro contato com a pirataria, ainda ingênua e romântica, das fitas cassetes de 45, 60, 90 e 120 minutos montadas a pedido do cliente.
Meus primeiros contatos com a música datam mesmo do comecinho de minha vida, de ouvir minha mãe cantar pra mim as cantigas de ninar, o “chô, chô, pavão, sai de cima do telhado” e de ouvir minha mãe cantar pra Deus os seus benditos tão bonitos quanto penosos, sofridos. Data daí também escutar a música de meu pai e seus primos brincando o reisado de novembro a 6 de janeiro. Mas essa música estava longe do mercado, bem como a música dos vaqueiros que passavam aboiando em frente a nossa casa na zona rural, e música dos violeiros e emboladores de coco das feiras e das cantorias de pé de parede, debaixo das latadas.
Essa música me marcou profundamente e foi surpreendente pra mim ver que música era vendida numa loja, que as pessoas tinham apreço por determinados artistas, esperavam seus discos e pagavam por eles. O encontro dessas duas vertentes, da música espontânea, cotidiana, e da música-produto foi fundamental para meu entendimento de gente e depois de artista, pois esse encontro se deu muito cedo, ainda quando eu tinha só 8 anos de idade.
O gosto era mais democrático naquela época? Menos segmentado?
Havia de tudo e havia público pra tudo. A mesma pessoa que comprava o disco de Dominguinhos podia levar junto o de Moacyr Franco, e o outro que comprava o de Odair José podia levar o do Caetano Veloso. Não podemos esquecer que era outro o rádio daquele período e que as músicas de Chico Buarque tocavam no rádio. Pra vocês terem uma ideia, lá nós vendíamos Marinês e sua Gente, Kraftwerk, Secos e Molhados, Mauro Celso. Tudo mesmo. Nunca havia devolução do que era encomendado. Podia até demorar um pouco, mas vendíamos. Vendemos muito a Orquestra de Paul Mauriat, Erlon Chaves, Jacob do Bandolim, ou seja, música instrumental. Tempo bom, de ouvidos limpos.
Camila de Lima Bezerra
Vsta de Catolé da Rocha: a cidade do sertão paraibano ficou pequena para as expectativas do músico e compositor
Quando Catolé começou a ficar pequena para o Chico?
A minha mãe me deu o sinal no dia em que cheguei bêbado em casa com 15 anos de idade e as costas todas lanhadas de uma queda na garupa de uma moto. “Meu filho, esta cidade está pequena demais pra você. Agora escolha: você quer ir pra Natal ou pra João Pessoa?” A distância era a mesma praticamente, e eu já tinha terminado o que na época se chamava o 2º Científico, já tocava e me apresentava em outras cidades com o Grupo Ferradura, levando os prêmios dos festivais, e ainda trabalhava no Lunik, a loja de discos e livros. Mas sobrava tempo e hormônios pra farra, isso a preocupava. Natal, no Rio Grande do Norte, podia ser bom, pois eu tinha uns amigos poetas lá, e lá também moravam duas irmãs minhas. Mas escolhi João Pessoa, pois já havia me apresentado na capital paraibana, na Escola de Teatro Piollin, e acompanhava a cena musical pelos jornais.
Quando você passa a refletir sobre a questão racial?
Desde sempre ou quase sempre. Meu irmão Gegê, que veio a se tornar liderança nacional do Movimento dos Sem-Teto, foi preso em 1969 por fazer parte do movimento estudantil de resistência à ditadura militar – quando eu tinha só 5 anos. Aquilo me marcou muito. Depois entendi que as razões eram amplas, e o próprio Gegê foi me fornecendo elementos para minha compreensão.
Depois que se mudou para São Paulo, ele me enviava jornais da imprensa alternativa: “O Trabalho”, “Em Tempo”, “Movimento” etc., mas desde a sua primeira prisão (ele foi preso várias vezes), sinto que ficava um pouco no ar o fato de ele ser negro, de os soldados falarem algo ou sugerir. E minha mãe sempre nos pedia para evitar se meter em confusão de brancos, ela dizia que sempre iria sobrar pra quem fosse negro. Depois, quando tinha 16 anos, também fui preso ao denunciar num quartel em Catolé do Rocha a tentativa de agressão que sofri de um policial armado e à paisana que estava junto com um marginal local.
Já em São Paulo é que vim me perceber mais como negro mesmo. E isso me deu uma alegria imensa. Creio que é por isso que minhas músicas que tratam da negritude são alegres: “Mama África”, “Mand’ela”, “Filá”, “Tambores”, “Respeitem meus cabelos, brancos”… Não são lamentos, são celebração. Antes eu tocava quase sempre sentado com o violão. Em São Paulo, passei a tocar sempre em pé, a incluir o corpo na parada. É como se me sentir negro tenha me colocado de pé, me levantado.
Como foi sua chegada em São Paulo e que dimensão a cidade ocupa em seu êxito artístico?
Minha chegada em São Paulo foi gloriosa. Meu irmão Gegê foi me buscar na Rodoviária Tietê na Kombi do Sindicato dos Coureiros, que na época era dirigido por Paulo Skromov. Me pegou e foi me levar na rua Aspicuelta, na Vila Madalena dos anos 1980, na casa de uma amiga minha chamada Malu Fontenele, uma historiadora e jornalista que morava com a mãe, dona Débora Fontenele, uma executiva da Nestlé. Era uma noite linda de lua cheia, 16 de maio de 1985. Me lembro que, ao chegar naquilo que as pessoas chamam de um aprazível bairro familiar, eu disse: ‘A televisão mostrando só enchentes, engarrafamentos e a Rota na rua queria me enganar, não queriam que eu viesse pra São Paulo’. Foi amor à primeira vista.
Quando acordei no dia seguinte, fui me sentar na calçada e eis que vem caminhando, todo encapotado, um sujeito muito misterioso em minha direção. Veio e passou. Era o Arrigo Barnabé. Fiquei boquiaberto, logo no primeiro dia de São Paulo ver um dos pilares da vanguarda paulista, era muita sorte. Fiquei deslumbrado com isso. São Paulo nunca me meteu medo, gosto demais desse lugar enorme e caótico. Talvez porque já tinha ido a Recife sozinho com apenas 11 anos de idade para comprar discos e livros e pagar duplicatas de meu chefe. De Recife tive medo, mas me saí bem. Então, depois de Recife, podiam vir São Paulo, Tóquio, Nova Iorque. Vieram, e eu não tremi mais.
O mesmo autor de “À primeira vista” e “Onde estará o meu amor” fez “Dá licença M’” e “Respeitem meus cabelos, brancos”, ou até mesmo “Béradêro”. O que lhe é mais necessário falar, do amor ou dos nossos problemas sociais?
Do amor, sempre. Todas as minhas canções são de amor. A minha contestação é amorosa, movida pela afetividade. Se me tomo de um ou outro tema, desta ou daquela questão, é o afeto que me aproxima e que me faz abordar, questionar, tratar. É preciso pensar no amor como instrumento de equilíbrio social e não como fator de alienação. Quando vejo meu irmão no centro de São Paulo lutando pelas travestis sem casa, pela gente dos cortiços, pelos que não têm pra onde voltar, penso que isso é um gesto político movido pelo amor, por exemplo.
Em Béradêro, você fala de “Praça de Guerra, onde o homem bode berra”. Qual a relação que isso tem com Catolé?
Total: Catolé do Rocha é o nome da praça onde começou a Chacina de Vigário Geral, no Rio de Janeiro, no fim de agosto de 1993. A praça tinha esse nome porque conterrâneos meus lá se instalaram anos antes. Eu já tinha a música “Béradêro” sem essa “coda” quando li a notícia numa banca de jornal da Avenida Paulista ao lado do Cine Belas Artes. Foi quando a “Folha de S. Paulo” havia começado a ilustrar as notícias com uma espécie de roteiro em quadrinhos, e aquilo me chocou muito: o nome de minha cidade, violenta desde suas guerras entre coronéis até hoje, associada àquela matança absurda no Rio de Janeiro. Pedi uma caneta a alguém e escrevi esse verso num papel. Nem precisava, ele não saía da minha cabeça. Estava lá, com melodia e tudo.
George Vale
Chico César em ação: “Ficar em torno da música de modinha é um tiro no pé da diversidade musical brasileira”
Você assumiu a Secretaria de Cultura da Paraíba em 2010. Tem conseguido equalizar a falta de recursos que, em geral, afeta as pastas de Cultura?
Não, a Secretaria de Cultura na Paraíba, nós a criamos, espalhamos pelo estado com 12 articuladores, tornamos paritário o Conselho de Cultura, dobramos o valor do edital do Fundo de Incentivo à Cultura e do edital específico para o audiovisual, aderimos ao Sistema Nacional de Cultura e trabalhamos arduamente para que mais de cem municípios também fizessem sua adesão, criassem seus sistemas municipais. Realizamos uma belíssima conferência estadual de cultura, com forte participação de todas as regiões. Sinto-me contente com o que conseguimos alcançar até agora. Não são régios os recursos, mas são republicanos. O que tem é para todos. Pra mim, a discussão conceitual interessa muito. E temos travado essa discussão aqui no estado. Cultura como instrumento de cidadania e de sentimento de pertença, distante dos ditames do mercado.
Ainda sobre gestão, você entende que o período de Ana de Hollanda no Ministério da Cultura foi um retrocesso em relação aos avanços conseguidos pelo Gilberto Gil?
Não creio. Águas passadas. Houve muitos avanços nas gestões de Gilberto Gil e de Juca Ferreira, mas estamos falando da gestão de Lula, aquele de “nunca antes na história desse país”, certo? Esse foi um tempo de encantamentos. A gestão de Dilma veio para dar uns choques de realidade na gente, com uma visão mais tecnocrática. Tudo é assim mesmo: respira/inspira, corre/descansa. Lula foi muito ambicioso pela cultura, a quebra de paradigmas se deu toda com ele, Dilma chegou para viabilizar parte do que foi pensado nas gestões do Lula. E ela está fazendo isso, no ritmo dela e com as pessoas que julga preparadas para executar seu projeto, inclusive que gozam de sua confiança. É preciso retomar com força a questão dos Pontos de Cultura e avançar, fazer justiça social distribuindo recursos e oportunidade de expressão para o Brasil profundo.
Há ritmos estigmatizados e marginalizados no Brasil, como o funk, ou o “melody” no Pará. O que pensa dessas manifestações?
Acho que essas manifestações têm sua importância superdimensionada pela mídia. Deixa os caras fazerem e pronto. Claro que há coisas boas no meio disso tudo. Dia desses, comentava com um amigo guitarrista que a base do funk, botando mais uns tambores de verdade, poderia ser muito boa pra tocar acid jazz. As misturas estão por vir. E virão. Acho que não dá pra olhar pro Norte do Brasil e só enxergar “melody”. Isso é de uma cegueira tacanha. Tem e sempre teve carimbó, sirimbó, siriá, guitarrada, batuque, marabaixo, toada de boi, lundu. E, bem para além do funk, há samba, jongo, partido-alto. Ficar em torno disso, de música da modinha, é um tiro no pé da diversidade musical brasileira.
*Texto originalmente publicado na revista Fórum, periódico de opinião inspirado no Fórum Social Mundial.
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